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Ilustração: Riça
Publicado a: 03/10/2020

Techno, house, hauntology e outras ondas.

Oficina Radiofónica #39a: Acid Acid / Bardino

Ilustração: Riça
Publicado a: 03/10/2020

Oficina Radiofónica é a coluna de crítica de música electrónica do Rimas e Batidas. Música Electrónica? Sim. Techno e footwork, house e hauntology, cenas experimentais, ambientais, electro clássico e moderno, drum n’ bass e dubstep, dub e o que mais possa ser feito com sintetizadores e caixas de ritmos, computadores e osciladores e samplers e sequenciadores e outras máquinas que façam “bleep”, “zoing”, “boom” e “tshack”.



[Acid Acid] Jodorowsky / Nariz Entupido

Tiago Castro é Acid Acid, um autêntico estudioso de uma gloriosa linhagem musical que começando por usar guitarras, primeiro, o estúdio e as tecnologias electrónicas, pouco depois, se foi aproximando das estrelas. E isso significa um vasto campo de investigação que se estendeu da Haight Ashbury psicadélica à Bahia tropicalista, da Berlim cósmica à Lisboa contemporânea onde todas as derivas parecem ser possíveis. E é aí que Acid Acid se encontra, depois de na sua anterior realização musical (já datada de 2018 e até hoje apenas disponível digitalmente – “problema” que merecia resolução analógica, se possível) se ter cruzado com um grande cosmonauta português que responde ao nome Vítor Rua.

JODOROWSKY, a presente edição (lançada digitalmente e também em vinil pela Nariz Entupido), é um trabalho de discreta, mas ainda assim real, ambição. Desde logo porque se propõe a ler musicalmente a obra do realizador chileno que nos deu obtusas pérolas como El Topo ou Holy Mountain. Esse impulso, de acercar a música instrumental de imagens expressivas, é transversal a muitos criadores desta área que usam muitas vezes uma espécie de fio condutor narrativo invisível e secreto para estruturarem as suas peças, inspirando-se em imagens que, frequentemente, só existem mesmo nas suas imaginações. O desafio de escrever para imagens ou para obras já existentes será igualmente estimulante. E quando tal desafio lhe foi apresentado pelo festival lisboeta Motelx, Tiago Castro não recuou, e avançou para um concerto-homenagem a Alejandro Jodorowsky que teve lugar em 2017 e cujo material, como o próprio teve oportunidade de explicar em entrevista ao Rimas e Batidas, serviu de ampla base para este registo.

Como se começou por referir, é imediatamente perceptível a vasta bagagem musical de Tiago Castro e entende-se que tenha estudado o passado da música que lhe interessa, mas é igualmente óbvio que a forma como combina as suas particulares referências, por um lado, e o desprendimento com que as encara, por outro, resultam numa música que nunca resvala para o mimetismo simplista, que nunca procura soar “retro” ou encaixar-se nalgum padrão pré-existente. Muito pelo contrário: a música que Acid Acid cria e particularmente a que nos mostra neste JODOROWSKY é panorâmica, no sentido em que admite ideias mais exploratórias das correntes atrás mencionadas – a criação de ambiências e de espaço através dos efeitos, tal como o psicadelismo ensaiou, uma certa expansividade orquestral, por vezes quase coral, como a que animou tantas das criações dos Popol Vuh – mas também reclama um pulso de energia viva, actual, presente. Dessa forma, aliás, ao admitir o futuro que o passado sonhou e o presente em que todos esses tempos habitam, a música que Acid Acid aqui nos apresenta parece escapar-se para fora dos calendários para simplesmente existir, sem referências estilísticas óbvias que a prendam a uma época concreta.

A “suite” estruturada em duas partes ou dois andamentos de cerca de 19 minutos cada (correspondentes aos dois lados de um disco de vinil) começa por nos apresentar drones em suspensão que depois avançam para um crescendo de proporções épicas pontuado pelos timbalões de Pedro Morrison. O rico arranjo textural que depois se desenvolve, em que Acid Acid explora de forma imaginativa uma série de opções sintetizadas e em que, sobretudo, dá expansivo uso às suas guitarras de que extrai momentos de absoluto deleite harmónico através de um criativo uso dos efeitos, acaba depois por desembocar, na segunda parte do primeiro lado, numa ampla paisagem electrónica, propulsionada por uma percussão algo marcial. No lado B, a suite começa com detalhes de delicadeza quase pastoral expostos na guitarra a que depois se junta a planante flauta de Violeta Azevedo, naquela que será, provavelmente, a mais arrebatada passagem melódica de todo o álbum. Rui Antunes é o outro convidado creditado, mais uma fonte de delícias electrónicas que se adiciona a esta sonicamente entusiasmante viagem através de densas selvas harmónicas e texturais, amplas planícies de melodias que parecem estender-se dos Andes às montanhas do Nepal, a julgar por alguns subtis pormenores. Mas, lá está, talvez isso seja a música a completar estes circuitos de comunicação e empatia: nasceu de imagens cinemáticas muito concretas e da inspiração gerada pelo visionamento dessas obras e impôs-se, ela mesma, como capaz de gerar outros “filmes”, mesmo na mente de quem porventura possa nem sequer conhecer o trabalho de Jodorowsky.



[Bardino] Centelha / Saliva Diva

Bardino é um trio da Invicta composto por Diogo Silva no baixo, Nuno Fulgêncio na bateria e Rui Martins, que assegura os sintetizadores, o piano eléctrico e algumas vozes. Em três das passagens deste álbum (que soma nove temas), os Bardino contam com a colaboração dos guitarristas Leonardo Outeiro (que se escuta em “Volição”) e Pedro Cardoso (que marca os temas “Zona” e “Limbo”).

Neste Centelha, o grupo acerca-se de uma certa ideia de jazz (Floating Points é a referência apontada na entrevista que concederam ao Rimas e Batidas), evocando por vezes certas marcas do jazz de fusão dos anos 70 (escute-se “Clarão” se provas forem necessárias), o que não espanta tendo em conta os pergaminhos prog do solista do grupo, Rui Martins, que militou numa banda do género de nome O Corvo Mudo.

Nesta Centelha o que imediatamente se sente é, bem… muito mais do que uma mera centelha, antes um óbvio e salutarmente descarado prazer que estes três músicos retiram do simples acto de tocarem juntos. Isso parece bastante claro quando se escuta, por exemplo, “Zona”, peça em que o entrosamento da secção rítmica é pleno, proporcionando aos dois solistas (como já mencionado, além dos teclados de Rui Martins, nessa peça também se sente a vincada presença da guitarra de Pedro Cardoso) sólida base para se alongarem em solos de natureza puramente lúdica, tal como quando nos colocamos num carro e partimos em viagem retirando todo o prazer da estrada percorrida e não necessariamente da chegada a um qualquer destino. E até quando adoptam um pulso mais rock (em “Baleia” parecem aproximar-se dos terrenos navegados pelos norte-americanos Zombi nos seus álbuns mais recentes), os Bardino evitam – sabiamente, diga-se – cair num registo demasiado “sério” (como tantas vezes acontece no “prog” contemporâneo, por vezes excessivamente preocupado em demonstrar elevados graus de competência técnica), não temendo explorar a ideia do riff para daí extraírem a matéria essencial. Manter as coisas simples e vibrantes às vezes é exactamente o necessário para captar a nossa atenção…

Com a responsabilidade na construção de um tecido harmónico totalmente entregue aos teclados, outra das relevantes qualidades que se podem apontar aos Bardino é a de nunca soarem repetivos, ainda que a sua música viva de uma considerável economia tímbrica. Mas também, mérito de Rui Martins, é inegável o bom gosto na escolha dessa mesma paleta tímbrica, parecendo que consegue sempre ir buscar o sintetizador certo para expor as suas ideias musicais (e esta capacidade de fazer o “casting” correcto, as melhores escolhas, no que à personalidade dos instrumentos diz respeito, nem sempre é óbvia). E será nesse assumido prazer exploratório que os três músicos partilham e no simples facto de não se importarem de ir até onde a própria música os possa carregar que se encontrarão as recompensas que repetidas audições de Centelha poderão trazer.

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