pub

Fotografia: Paradigm Disc
Publicado a: 02/03/2022

Techno, house, hauntology e outras ondas.

Oficina Radiofónica Série II | #8: Ghost Box

Fotografia: Paradigm Disc
Publicado a: 02/03/2022

Oficina Radiofónica é a coluna de crítica de música electrónica do Rimas e Batidas. Música Electrónica? Sim. Techno e footwork, house e hauntology, cenas experimentais, ambientais, electro clássico e moderno, drum n’ bass e dubstep, dub e o que mais possa ser feito com sintetizadores e caixas de ritmos, computadores e osciladores e samplers e sequenciadores e outras máquinas que façam “bleep”, “zoing”, “boom” e “tshack”.



[Vários Artistas] Intermission / Ghost Box

[Pneumatic Tubes] A Letter From The Treetops / Ghost Box

O programa “hauntológico” da Ghost Box é fascinante na sua mais fundacional proposta estética: encontrar uma forma de manifestar no presente os efeitos de uma muito particular memória passada. Nesse sentido, a noção de hauntologia colocada em marcha há 18 anos por esta editora é muito singular e deriva de uma experiência geracional muito específica: a amálgama de sons e imagens retidos por quem, entre inícios dos anos 70 e meados dos anos 80, possa ter passado muitas horas da sua infância e pré-adolescência em frente da televisão, sem beneficiar da possibilidade que a tecnologia presente oferece de navegação entre canais em busca de gratificação instantânea. Quando mais nada havia para ver, não era difícil encontrar pontos de interesse em séries sobre a natureza, documentários sobre indústria, arquitectura ou civilizações remotas ou ainda em séries dramáticas e filmes que espelhavam os anseios de uma era ensombrada por um perigo nuclear constante, por um lado, e o entusiasmo com as infinitas promessas do espaço sideral, por outro. Anos volvidos, o que a memória colectiva de uma determinada geração retém é uma mistura de imagens e sons que remetem para a tal dieta catódica absorvida naquele tempo particular. 

A Ghost Box fez um trabalho excelente ao transformar esses fragmentos de imagens numa estética gráfica de vincado carácter, mérito total do designer Julian House, que também é o cérebro por trás do interessante Focus Group, ele que é ainda um dos fundadores do selo ao lado de Jim Jupp (aka Belbury Poly). Os detalhes do livro de estilo gráfico da Ghost Box estão carregados de referências ao universo televisivo atrás descrito, mas também ao tipo de publicações que poderiam fascinar os jovens adolescentes do período mencionado (1970-1985): enciclopédias, Atlas, revistas técnicas de electrónica, o mundo retratado nas páginas da National Geographic, as publicações da Nasa, a banda desenhada, capas de romances de ficção científica. E de discos, pois claro, mas sobre isso tecem-se outras considerações mais adiante.

Há também na Ghost Box um constante sublinhar de que o seu já considerável acervo de lançamentos – o mais recente álbum, A Letter From The Treetops, do projecto Pneumatic Tubes de Jesse Chandler, é a entrada número 40 de um catálogo que ainda se estende para lá dos álbuns em duas séries de singles, a Study Series e Other Voices – resulta de um espírito colectivista e cooperativo, algo que se manifesta não apenas em várias experiências de colaboração que pontuam oo seu historial, mas até nos nomes dos projectos individuais: Belbury Poly, The Advisory Circle, Focus Group, as três identidades musicais que marcaram o arranque do catálogo, remetiam todos para essa ideia de uma experiência partilhada de um conjunto muito concentrado de referências. E isso é algo que não se voltou a repetir já que as gerações seguintes – mercê da televisão por cabo, dos jogos de computador, da explosão do mercado de vídeo em VHS e, sobretudo, da internet – passaram a ter acesso a muitas outras referências, produzindo dessa forma identidades múltiplas e bastante mais diferenciadas em termos geográficos.

Para lá da identidade gráfica da Ghost Box e da tradução dessa sintonia colectiva derivada da ideia de uma geração inteira sentada na sala a absorver as imagens que a televisão difundia, há a música. Esse é o ponto realmente distinto da Ghost Box cuja constante actividade ao longo da melhor parte de duas décadas tem, aliás, influenciado decisivamente as orientações estéticas de outras etiquetas, em Inglaterra, claro (Café Kaput, Castles In Space ou A Year in the Country), mas também noutros pontos do globo, incluindo Portugal (Russian Library, Prisma Sonora Records são exemplos óbvios). A primeira referência musical da Ghost Box é a da library music, sobretudo das etiquetas KPM e Bruton que forneciam muita da matéria que constava nas bandas sonoras dos já mencionados produtos televisivos consumidos pela geração que hoje cria música nesta e noutras editoras. E não apenas a música, mas também a ideia de uma vincada identidade gráfica, manifestada na economia extrema do verde das capas da KPM ou na gestão quase monocromática dos grafismos da Bruton. O Radiophonic Workshop (que inspira, aliás, o nome desta coluna) é o outro pilar decisivo que suporta a identidade da Ghost Box: o trabalho de estetas como Delia Derbyshire ao nível da colagem de sons concretos que ficou ligado ao arranque de séries televisivas como Dr. Who influenciou de forma decisiva a abordagem de criativos como Julian House no seu Focus Group, por exemplo. A electrónica pioneira de White Noise, as vertentes mais kosmische do krautrock ou mais pastorais da folk psicadélica britânica e, avançando no tempo, as distintas explorações laboratoriais de gente como Stereolab, Broadcast ou Boards of Canada proporcionaram à Ghost Box uma rede referencial que se condensou numa forte identidade sonora.

Uma óptima porta de entrada no universo da Ghost Box pode ser encontrada na sua mais recente compilação: Intermission, apresentada na capa como “Ghost Box Contemporary Connections”. Lançada digitalmente em 2020 (e por aqui alvo de atenção) como resposta ao confinamento global e com receitas a reverterem para a ONG Médicos Sem Fronteiras, Intermission foi mais recentemente alvo de edições físicas em vinil e CD, facto que justifica a nossa renovada atenção. É que esta compilação ganha especial relevância por incluir material inédito criado propositadamente para esta edição ao lado de algumas antecipações de futuros lançamentos. No alinhamento encontram-se praticamente todos os nomes do catálogo: Belbury Poly acompanhado por Justin Hopper a assinarem as faixas de abertura e fecho da compilação (e há também peças em que surgem separadamente), e ainda The Advisory Circle, Plone, Roj, ToiToiToi, Pye Corner Audio, The Focus Group, The Hardy Tree, os “nossos” Beautify Junkyards e Sharron Kraus. Um mosaico de contributos musicais que partem de todas as referências mencionadas para a criação de múltiplas interpretações desse “cache” de memórias colectivas. O escritor e narrador Justin Hopper começa por questionar “what are the dimensions of a memory? What is its square footage and where do its boundaries lie?”, estabelecendo dessa forma o tom para o que se segue: um conjunto de “intervalos”, aqueles espaços liminares onde tudo é possível, em que as margens, as que separam o tempo que passou do que está para chegar, se diluem, criando um corpo musical coeso. E isso resulta num disco de toadas electrónicas tranquilas e evocativas, passagens por exercícios melódicos de carácter lúdico e quase infantil, tangentes a uma ideia de pop movida a electrões, assomos de techno naquele tipo de câmara lenta que só existe nos nossos sonhos ou folk de insustentável leveza bunyana. Música que, de alguma forma, remetendo para um outro tempo bem difuso, acaba por nos tocar neste estranho presente de que ainda não nos livrámos.

De certa forma, A Letter From The Treetops, o novo lançamento dos Pneumatic Tubes de Jesse Chandler (músico com ligações aos Midlake e Mercury Ver que tem um passado que se cruza com o de alguns nomes da história mais ou menos recente do jazz português… e mais sobre isso noutra altura), condensa todas as experiências anteriores do catálogo da Ghost Box: contém um pronunciado lado electrónico que explora as mesmas pistas identitárias que marcam boa parte dos títulos lançados por este selo britânico, delicados ecos folk expressos sobretudo nas melodias extraídas das madeiras para que remete o nome do projecto (os seus clarinetes e flautas são os “tubos pneumáticos” aí referenciados), e uma aura de hipnótica e difusa viagem no tempo, como se esta música não tivesse sido produzida neste período pandémico, mas numa era impossível de precisar, mas que cabe na baliza temporal hauntológica já antes sugerida. 

Logo às primeiras notas de “Summer Children” não há como enganar: um título que sugere imediatamente memórias de infância servido por um delicado arranjo de filigrana harmónica rendilhada em guitarras e clarinete, com tudo a ser envolto num reverb que parece convidar à levitação. A ajudá-lo, Chandler tem Paul Alexander (que também já gravou com Midlake ou John Grant) no baixo, Bill Campbell na bateria (ele que já contribuiu para trabalhos de gente como Andrew Bird ou Lapland), e Robert Gomez na guitarra (faz parte de Nonagon). Marissa Nadler contribui com etéreas vozes em “Witch Water”. A música – as tais cartas das copas das árvores – inspira-se nas paisagens dos bosques e montanhas de Adirondacks e Catskills, na zona norte do estado de Nova Iorque, zonas por onde Jesse Chandler vagueou na infância e cujas memórias aqui evoca. Trata-se de música que pede luz nos olhos e que não escusa a terra ou a relva alta sob os pés, uma intensa fantasia que poderia muito bem ilustrar documentários sobre parques naturais americanos.

O futuro poderá não ser tão assombrado por este tipo de memórias até porque as experiências que a geração de criativos da Ghost Box registou em frente à televisão só puderam, precisamente, ser resguardadas nessa difusa dimensão que se abriga algures entre os nossos neurónios. Hoje, com tudo devidamente registado e instantaneamente arquivado, nenhuma imagem ou som carece de ser guardado na memória para ser futuramente lembrado: está permanente acessível e ao alcance de um toque. Os fantasmas do futuro serão, certamente, diferentes.

pub

Últimos da categoria: Oficina Radiofónica

RBTV

Últimos artigos