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Ilustração: Riça
Publicado a: 09/05/2020

Techno, house, hauntology e outras ondas.

Oficina Radiofónica #23: Demdike Stare / Plone / Ghost Box

Ilustração: Riça
Publicado a: 09/05/2020

A Oficina Radiofónica é a coluna de crítica de música electrónica do Rimas e Batidas. Música Electrónica? Sim. Techno e footwork, house e hauntology, cenas experimentais, ambientais, electro clássico e moderno, drum n’ bass e dubstep, dub e o que mais possa ser feito com sintetizadores e caixas de ritmos, computadores e osciladores e samplers e sequenciadores e outras máquinas que façam “bleep”, “zoing”, “boom” e “tshack”.


Demdike Stare – Embedded Content

Saturated in chaotic colour and pushing fugged-out and screwed neo-soul aesthetics to the Nth degree, ‘Embedded Content’ renders Demdike Stare at their most elusive and experimental, distilling edits made for their February 2020 Cafe Oto residency into a properly red-eyed and mazy sound running around a hypnagogic 6 BPM and sounding something like Mica Levi getting on it with DJ Screw at the GRM.

[Demdike Stare] Embedded Content / DDS

O primeiro lançamento dos Demdike Stare em 2020 é mais uma abrasiva viagem pelo seu difuso, diverso e misterioso universo sónico. Embedded Content é, como nos revela a sua apresentação na página daquela que tem sido a loja oficial de boa parte dos lançamentos da dupla, a Boomkat, uma mixtape feita a partir de uma série de edits preparados propositadamente para a residência que em Fevereiro último protagonizaram no Cafe Oto de Londres: “soa a algo como Mica Levi a fazer a sua cena com DJ Screw no GRM”. Traduzindo: ecos de pop obtusa e algo psicadélica retalhados e remontados para rodarem em câmara extremamente lenta. Tudo para impor uma lisérgica ideia de distorção de tempo, numa camada de detritos sónicos de tons cinza, como se fosse possível escutar uma colecção de discos de vinil depois desta ter sido derretida e misturada. Sean Canty e Miles Whittaker têm escolhido estas edições em cassete, que normalmente documentam apresentações ao vivo, como as suas mais recentes adições a uma já deveras impressionante discografia. Desta feita, Embedded Content impõe-se como um abstracto mural de 40 minutos, desenhado com recurso à matéria disparada a partir dos CDJs da dupla, em que se cruzam fragmentos de tudo: electrónica r&b, ruídos industriais, library progressiva, electro-acústica de origens misteriosas, vagas de neblina ambiente, experimentalismos múltiplos, drum n’ bass implodido e múltiplas gravações de campo para boa medida. Esta sempre foi a perspectiva dos Demdike Stare: a de transformarem uma mais obtusa perspectiva da história da música – que no seu caso se alarga dos alvores da música concreta aos mais remotos recantos da cultura electrónica pós-rave – em matéria para derivas de liberdade absoluta. Se o free-jazz traduzia um libertário pensamento político em subversão de normas e convenções musicais, isto será uma aguda manifestação de free-DJing para clubes pós-apocalípticos.


[Plone] Puzzlewood / Ghost Box

A destrutiva crítica que Ryan Schreiber da Pitchfork assinou a propósito do álbum de estreia dos Plone – For Beginner Piano, lançado em 1999 na toda poderosa Warp – ajuda-nos a entender porque é fácil apanhar esse pioneiro registo a partir de meros 99 cêntimos no Discogs. À época, o então trio de Birmingham formado por Mark Cancellara, Michael Johnston e Mike Bainbridge tinha que disputar espaço no catálogo da prestigiada etiqueta electrónica com nomes de considerável apelo: Broadcast, Squarepusher, Aphex Twin, Plaid, Jimi Tenor, Autechre, Nightmares on Wax, Boards of Canada, The Black Dog e Two Lone Swordsmen editaram todos nesse ano (que ano, aliás!) na Warp, facto que justifica que se possa ter pensado em Plone como um nome a abater, o elo mais fraco de uma poderosa corrente.

Na verdade, ver o trabalho dos homens de For Beginner Piano ser encarado, lado a lado com o dos já citados Broadcast ou Boards of Canada ou ainda com os igualmente “obscuros” Position Normal de Stop Your Nonsense, como uma referência fundacional da identidade hauntológica tão bem defendida pela Ghost Box de Jim Jupp e Julian House faz pleno (e absolutamente retrospectivo) sentido. As melodias de caixa de música, os órgãos infantis, a atmosfera onírica e a produção deliciosamente retro do álbum de estreia dos Plone afastava-se completamente da tendência de fundo representada no catálogo da Warp e posicionava-se num limbo sem contexto que permitisse à época que a Pitchfork percebesse o que pretendiam afinal estes senhores da terra dos Peaky Blinders: “Na verdade”, concluía Schreiber, “é um novo tipo de música de elevador”, como se tal coisa fosse um insulto.

Puzzlewood é apresentado pela Ghost Box como o “há muito aguardado terceiro álbum dos muito amados maestros dos sintetizadores Billy Brainbridge e Mike Johnston”. Na verdade, ninguém sabe muito bem o que terá acontecido ao segundo álbum, que teria sucedido a For Beginner Piano, e há um claro exagero na forma como a etiqueta que funciona como reserva natural da hauntologia se refere a este álbum como “muito aguardado” e aos dois membros que resistiram à passagem destas duas décadas como “muito amados maestros dos sintetizadores”. Não que isso belisque a deliciosa qualidade de Puzzlewood. De facto, ao reclamarem os originalmente pouco amados Plone como uma influência decisiva, os patrões da Ghost Box estão a seguir à risca o programa da sua etiqueta e a salvarem mais uma muito pouco estimada memória do esquecimento absoluto.

E Puzzlewood surge em 2020 como se na verdade estivéssemos ainda em 2000 e a estreia em álbum dos Plone permanecesse fresca na memória de todos. Que Billy, que trabalhou como músico de digressão dos Broadcast e que formou os Seeland com Tim Felton (que colabora nos Hintermass que também já editaram na Ghost Box), acabasse a revelar a Jim Jupp que tinha voltado ao trabalho com o seu antigo companheiro de banda e que o novo material soava a uma continuação natural da estética originalmente apresentada pelos Plone reveste-se de uma aura de justiça poética porque desta vez o catálogo em que são enquadrados não acentua o seu deslocamento, antes pelo contrário: oferece-lhes a perfeita “vizinhança” estética que a sua música sempre procurou.

Puzzlewood é, assim, um delicioso objecto, feito de pequenas sinfonias para parques infantis retratados em filmes super-8 de cores esbatidas dos anos 70, decididamente influenciado por alguma library music de recorte mais lúdico. Em evidência está o plano melódico: os Plone escrevem, definitivamente, canções sem palavras, subtis maravilhas pop em miniatura que remetem para uma certa era do cinema europeu, para dias cheios de sol e imagens distorcidas pelo excesso de luz. Não há um único elemento musical, nem sequer alguma sugestão oferecida nos títulos dos temas, que nos remeta para a noite: as memórias evocadas pela música dos Plone são diurnas, estivais, de uma inocência infantil clara, e assentam como uma luva na cartilha hauntológica que assume o filtro das experiências de uma certa geração como parte do jogo emocional que precisa de ser levado a cabo para que a audição de um trabalho como Puzzlewood resulte em pleno.


[Vários Artistas] Intermission / Ghost Box

“Quais são as dimensões de uma memória?”, começa por perguntar Justin Hopper, sobre banda sonora proposta por Belbury Poly, só para que não haja confusões e para que sejamos imediatamente atirados para dentro do particular universo da Ghost Box. “What is its square footage? And where do its boundaries lie? We speak sometimes of gaps in our memories as though our past exists only in what we can still see in the mind’s eye. But what if there are no gaps? What if they are instead memories themselves? Memories of a pause. Let’s experiment together: let’s take a moment to forget all of the actions and events of our lives and gather up instead all of the gaps, string them together into one long memory of intermissions. And if we do, will it be silent? I don’t think so. I think it will be the sound of a hum, a hum that slowly builds until it begins to buzz and eventually quietly to roar”.

A preparação através da tranquila, mas sugestiva narração de Justin Hopper é perfeita. A música que depois nos é proposta por The Advisory Circle, Plone, Roj, ToiToiToi, Pye Corner Audio, The Focus Group, The Hardy Tree, The Beautify Junkyards, Sharron Kraus e Belbury Poly (e alguns dos nomes surgem representados com mais do que uma faixa) é a tal sequência de “intervalos” que por vezes as nossas memórias tendem a esquecer, pedaços de sonhos que pontualmente nos assaltam em pleno dia. A Ghost Box tem neste Intermission um toque a reunir numa altura em que o isolamento nos obriga a repensar a ideia de comunidade. O alinhamento faz-se de antecipações de futuro material a lançar pela etiqueta de Jim Jupp e Julian House e há até um nobre propósito na sua base – reunir verbas para uma doação aos Médicos Sem Fronteiras.

Musicalmente, é-nos oferecido um verdadeiro festim de electrónica deslocada e fantasiosa que remete para um tempo que ninguém sabe se realmente alguma vez existiu porque, lá está, foi construído nas nossas memórias colectivas a partir de uma série de fragmentos: ideias coligidas em páginas voltadas para o passado, em velhos programas de televisão, em documentários, em discos e, talvez até, para quem tenha a idade certa, em experiências reais e pessoais.

Se os ToiToiToi nos propõem uma visita a um velho filme de animação produzido do lado de lá da cortina de ferro (e de que resta apenas a curiosa banda sonora), já os Pye Corner Audio continuam a tratar a memória da rave como o tranquilo lago em que todos podemos mergulhar, The Advisory Circle insiste em propor material para as compilações da Bruton do arranque dos anos 80 e o jardim perto do mar que os nossos bem conhecidos The Beautify Junkyards nos desenham diante dos ouvidos é verde, luxuriante e tão misterioso quanto envolvente. Há também espaço para fantasias folk a cargo de Sharron Kraus ou The Hardy Tree, recuos aos tempos do Radiophonic Workshop imaginados por Belbury Poly e deliciosas miniaturas que o Focus Group parece apostado em resgatar das bobines do arquivo de um qualquer laboratório académico de electrónica da década de 60.

Intermission é assim uma excelente porta de entrada no singular universo que a Ghost Box vem construindo desde que Belbury Poly e The Focus Group estrearam o catálogo em 2004, à época ainda com singelas edições em CDr, um edifício (brutalista, claro) cheio de memórias assombradas e em permanente reinvenção. O interessante, no caso da Ghost Box, é que nós, os ouvintes, somos parte fundamental da equação estética proposta ao oferecermos através da nossa interpretação individual um ângulo para toda esta música. A minha Ghost Box será, certamente, diferente da vossa. Mas cada uma será igualmente envolvente. Experimentem lá carregar no play.

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