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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 27/04/2023

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #119: Especial Clean Feed

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 27/04/2023

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.


[Luís Lopes ABYSS MIRRORS] echoisms (Clean Feed)

Estes espelhos do abismo são um verdadeiro “quem-é-quem” da nossa avançada cena de música improvisada que se faz de talento transnacional que a moderna Lisboa acolhe: Luís Lopes à frente na guitarra eléctrica e – ao lado, atrás, por baixo e por cima, por dentro e por fora – Flak noutra guitarra eléctrica, Jari Marjamaki nas electrónicas, tal como Travassos, Felipe Zenícola em baixo eléctrico, Yedo Gibson nos saxes alto, tenor e soprano, Bruno Parrinha em menos um, já que “só” toca alto e soprano, Helena Espvall no (violon)celo, Maria da Rocha no violino e o grande Ernesto Rodrigues (todos os outros e outras são também enormes, claro) na viola. Cordas com e sem faísca, bleeps e bloops, pulmões. Não há bateria (“as such…”), mas ainda assim, estes echoisms são, naturalmente, rítmicos. Até porque os ecos são uma das formas da natureza nos responder com matemática.

Caos e (des)ordem, uma capacidade imensa de escuta mútua, vontade de mergulho no abismo profundo do inesperado futuro (improviso) e uma música que nos belisca e questiona, que nos espanta e seduz, em permanente revolução interna. Como tem que ser. A construção do espaço sonoro é de Joaquim Monte (mais um gigante), homem que conhece como a palma da mão cada canto ressoante ou reverberante do Namouche, uma sala que parece ter sido feita a pensar nestes grandes ensembles. E pelas entranhas da sua Nieve circularam todos estes sons que se arrumam com feng shui sublime no estéreo aqui de casa ou de qualquer sítio para onde auscultadores possam transportar esta música. E é curioso como após 3 ou 4 audições se chegue ao fim a achar que cada uma foi dedicada a um disco diferente. Se calhar estes ecos todos – são sete os echoisms aqui apresentados – são, na verdade, portais para um diferente universo. Ou abismo, o que vai dar ao mesmo. Ou não.


[Move] The City (Clean Feed)

Yedo Gibson nos saxofones, Felipe Zenícola no baixo e João Valinho na bateria: um trio aparentemente clássico que, no entanto, pouco ou nada demora a implodir (literalmente) qualquer expectativa quando, logo no primeiro momento, nos leva onde já antes foi a Naked City para uma sessão de porrada aural que só nos faz bem: um bem assente murro no estômago pode servir para abanar a letargia, certo?

Yedo é um monstro capaz de transmutar o saxofone numa máquina de soprar tempestades, dono de um incansável par de pulmões (de facto soa como se tivesse dotado de três ou quatro…), João tem, obviamente, uns 8 ou 12 membros (tenho a certeza de que são múltiplos de 4), um verdadeiro Dr. Octopus com consideráveis super-poderes rítmicos e Felipe Zenícola é um headbanger que se mostra bem capaz de ensinar uma coisa ou duas ao Robert Trujillo se estiver para isso. Juntos, movem-se como um só, qual avalanche montanha abaixo (não é lava que essa escorre devagarinho…), submergindo-nos sem apelo nem agravo. O disco foi gravado no Desterro, nesta Lisboa que treme, e, portanto, é precioso documento da intensidade desterrada que se libertou ali está a fazer um ano. Quem não esteve presente e sentiu esta avalanche em directo pode agora captar um pouco dessa gigante descarga de energia. E suar também.


[André Carvalho] Lost in Transmation II (Clean Feed)

Mais palavras que não se traduzem: “Mencolek”, “Tagumi”, “Poronkusema”, “Zhaghzhagh” ou “Waldeinsamkeit”. Quer dizer, não se traduzem facilmente, sobretudo em palavras singulares de outras línguas e culturas, já que são tão específicas que se entranham no entendimento de quem com elas convive quotidianamente. Tipo “azémola” (tentem explicar a um amigo inglês sem recorrer a três ou quatro frases, vá…). André Carvalho explica que isto o lembra de um ditame famoso de Wittgenstein (tipo curioso…): “Os limites da minha língua significam os limites do meu mundo”. Pensem nisso.

Musicalmente, nesta segunda aventura nessa tradução do desconhecido e inusitado, o contrabaixista e compositor André Carvalho, o guitarrista André Matos (que assina uma das peças) e o saxofonista José Soares investem pelos terrenos do detalhismo, da minúcia filigrânica, da delicada construção harmónica e isso obriga-nos a realmente escutar: com ambos os ouvidos, com a cabeça e com o corpo porque esta é música exigente que foi cuidadosamente gravada e masterizada por Tiago de Sousa. André Carvalho lançou também em paparelo vários vídeos do trio realizados por Pedro Caldeira, com fotografia de João Hasselberg e assistência de Martim Torres. São interessantes peças visuais que permitem compreender bem melhor como esta música parece nascer do silêncio e como se entrelaçam os três músicos. A ambição de André Carvalho não se queda por aqui: previsto está ainda um documentário em que uma vez mais colaborará com o realizador Pedro Caldeira, e que, revela, “contará com os contributos de vários linguistas, antropólogos, psicólogos, bem como com o acompanhamento do trio desde a sua génese até à gravação e apresentação musical”. Venha ele que queremos ver isso.

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