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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 18/04/2024

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #134: Shabaka

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 18/04/2024

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.


[Shabaka] Perceive Its Beauty, Acknowledge Its Grace (Impulse! Records)

Quase nunca temos por cá exemplos de gestos que noutros lugares, mais no centro de tudo, dominam atenções mediáticas quando tomados. A “reforma” do saxofonista Shabaka Hutchings, cujo clamor repentista incandesceu a música de Sons of Kemet, The Comet is Coming ou Shabaka and The Ancestors, tem na reinvenção de Rão Kyao operada na primeira metade dos anos 80 um claro reflexo. O saxofonista português que assinou o primeiro álbum de jazz da nossa ainda jovem discografia do género, Malpertuis, lançado em 1976, também trocou, de forma mais ou menos súbita, o saxofone que lhe valeu um grande sucesso em 1983 com Fado Bailado primeiro álbum português a ser distinguido com o então recentemente criado galardão de platina — pela flauta de bambu com que no ano seguinte registou um ainda mais retumbante êxito com Estrada da Luz, trabalho que o levou até ao topo das tabelas nacionais de vendas por várias semanas. Mais ainda, Kyao sustentou essa transformação num dedicado estudo do instrumento sob a orientação de mestres na Índia, onde passou uma dilatada temporada em finais dos anos 70, e com muitas viagens pelo mundo fora, da China ao Brasil, de onde regressou com mais saber que sempre reinvestiu na sua música. De igual forma, Shabaka também viajou para entender os mais fundos segredos da flauta de bambu, chegando mesmo a estudar a sua construção com um mestre japonês. E do Oriente, como recentemente documentado nas suas plataformas sociais, Shabaka viajou igualmente até ao Brasil para mergulhar numa cultura que no seu popular flautismo retém ainda hoje marcas das suas ancestrais identidades tribais, tanto a índia como a africana.

Na recensão sobre Flowers in The Dark, trabalho creditado a Kofi Flexxx lançado na Native Rebel Recordings (etiqueta de Shabaka Hutchings), detalhou-se com algum cuidado a transição de Shabaka do tenor para as flautas, processo que se manifestou em diferentes momentos colaborativos. Em tempos mais recentes, encontrámo-lo já com a sua nova ferramenta a ser usada em pleno efeito nos novos registos de André 3000 e Amaro Freitas, duas almas que, definitivamente, parecem vibrar na mesma frequência que a sua.

O EP Afrikan Culture, que data de 2022, também já prenunciava a transição/transformação que agora se confirma de forma plena com Perceive Its Beauty, Acknowledge Its Grace. Na altura, escrevia-se por aqui: “Não foi apenas o apelido Hutchings que Shabaka deixou de lado neste projecto: não há por aqui sinais do seu poderoso saxofone tenor e mesmo o seu igualmente frequente clarinete cede a maior parte do espaço disponível neste Afrikan Culture à flauta japonesa shakuhachi. Apesar deste ser um rigoroso registo a solo de Shabaka, com o outro único crédito a ser entregue ao produtor Dilip Harris, escutam-se por aqui ainda algumas contribuições de Kadialy Kouyate na kora, Alina Bzhezhinska na harpa e de Dave Okumu na guitarra, que não se entende se são samples recolhidos em sessões prévias ou contributos directos para este projecto”. Entende-se também na linguagem gráfica escolhida que Afrikan Culture marca um ponto de viragem e que o novo trabalho de Shabaka, que volta a ter um retrato seu de tons sépia como principal motivo do artwork, se apresenta portanto como um registo de continuidade.

Okumu repete a dose e tem igualmente um crédito no novo álbum, com a sua guitarra a fazer-se ouvir na expansiva “I’ll Do Whatever You Want” em que também participam Esperanza Spalding e Tom Herbert nos baixos, Marcus Gilmore na bateria, Floating Points no piano eléctrico, André 3000 na flauta, Carlos Ninõ na percussão e Laraaji na voz — um verdadeiro encontro de estrelas de primeira grandeza. Mas se este tema revela, de alguma forma, uma espécie de fórmula para o conceito do álbum, essa não será tanto a de “estrelas” no mais lato sentido pop do termo — i.e., de figuras proeminentes na sua área —, antes de “estrelas” num sentido cósmico e espiritual, astros que brilham com um mesmo propósito tão exploratório quanto humanista. Se existe alguma coisa que todos estes músicos — e ainda os restantes que são creditados na ficha técnica: o baterista Nasheet Waits, os pianistas Jason Moran e Nduduzo Makhathini, a harpista Brandee Younger, o também harpista Charles Overton, o violinista e arranjador Miguel Atwood-Ferguson, os vocalistas Moses Sumney, Saul Williams e Anum Iyapo as igualmente vocalistas Lianne La Havas e Eska, o teclista Surya Botofasina, o percussionista Rajna Swaminathan, o guitarrista e produtor Christopher Sholar e o rapper E L U C I D — partilham é um absoluto comprometimento com o poder regenerador da arte, com a capacidade que a música tem de curar e elevar.

Perceive Its Beauty, Acknowledge Its Grace abre com esparsas notas de piano de Jason Moran, autor de um dos grandes álbuns de 2023, From the Dancehall to the Battlefield, e ele mesmo alguém apostado em mergulhar nas raízes em busca de uma remota identidade. E nessa breve peça, que arranca como se já estivesse a rodar em silêncio há muito, Shabaka expõe um meditativo discurso em clarinete, quase como se nos mostrasse a sua própria origem (foi o instrumento que estudou formalmente com maior profundidade) antes de nos revelar o seu futuro. Há, igualmente, quase a finalizar o álbum, um breve regresso ao tenor na planante “Breathing”, diálogo entre Shabaka em diferentes sopros — flautas, clarinete e saxofone — e Rajna Swaminathan em percussões, uma peça de intensidade contida que ainda assim parece explodir no seu derradeiro minuto quando o antigo solista dos Sons of Kemet e The Comet is Coming regressa ao instrumento que arrumou em 2023: o seu solo angular é tão expressivo como sempre foi e parece existir aqui com o singular propósito de nos relembrar que uma mudança de “interface” não significa um abandono da entrega. Quando, em Dezembro de 2023, usando apenas um longo email — como se explica numa peça recente do Guardian — em jeito de score conceptual, Shabaka se atirou sem qualquer ensaio a uma colectiva celebração de A Love Supreme na igreja de St John (pois claro…) em Hackney, Londres, o que procurava era, precisamente, uma ligação ao poder elevatório do espírito.

Nesse artigo assinado por Alexis Petridis, Shabaka explicou ainda o que o levou a trocar o saxofone pela flauta: “Para as pessoas que não são músicos a quem contei, havia uma sensação de descrença: ‘Deves estar louco para desistir de tudo isso’. Mas a única forma de manteres a centelha que te fez ter sucesso é seguires a tua intuição artística assim que ela te sugere uma determinada direção. Mesmo que essas bandas sejam bem-sucedidas e a música que estamos a criar seja realmente fantástica e satisfatória, se eu não seguir essa intuição… a certa altura, a música tornar-se-á obsoleta. Não quero ser aquele tipo de intérprete de reportório em que as pessoas vêm ter comigo para ouvir os restos do que costumava ser realmente excitante — para que se lembrem de como festejavam em 2018, sabes?” É, na verdade, muito simples: para Shabaka Hutchings, o saxofone liga-o à tradição, a uma prática e a um cânone. A flauta representa o futuro, o desconhecido, um novo desafio.

O resultado é um álbum tremendo, muito diferente daquele que André 3000 nos deu: o rapper dos Outkast não esconde em New Blue Sun que é um principiante no instrumento e assume a sua fragilidade técnica ressalvando, ao mesmo tempo, que há uma inegável verdade e honestidade em expor-se de tal forma num terreno novo quando já era unanimemente reconhecido como um dos GOATs na arte do MCing. Shabaka parte de um plano diferente, já que o seu longo percurso académico e a extenuante carreira de palcos na última década o dotaram de uma invulgar destreza técnica e de uma disciplina que lhe permitiu muito mais rapidamente alcançar um nível muito sério no seu novo instrumento (ou melhor, nos seus diferentes novos instrumentos, já que usa várias flautas provenientes de diferentes culturas, cada uma delas com implicações técnicas muito particulares). Em “The Wounded Need to be Replenished” (e lá está a ideia de cura…), em diálogo com um piano uma vez mais de vincado tom meditativo, desta vez tocado pelo sul-africano Nduduzo Makhathini, numa peça em que também há pó de estrelas espalhado por Carlos Niño, Shabaka toca quena, uma flauta tradicional peruana, com uma entrega que é tão emocional e espiritual quanto física, exibindo uma notável capacidade poético-discursiva no instrumento. E ter o californiano Niño, homem tão sintonizado com as cristalinas vibrações da new-age, juntamente com o sul-africano Makathini, um dos expoentes do pianismo jazz na África contemporânea, numa faixa em que explora o eco ancestral dos Andes diz-nos algo sobre o lugar não-geográfico para que Shabaka aponta, um sítio remoto que vai para lá das culturas e que só se encontra, na verdade, quando se olha muito para cima e se vislumbra o cosmos, ou muito para baixo, bem para lá da superfície, e se sentem as raízes.

Há também palavras neste álbum de Shabaka, como de resto sempre houve: Siyabonga Mthembu deu voz a temas dos Ancestors nos dois incríveis registos que assinaram sob a condução do saxofonista; Joshua Idehen entoou poemas em diferentes trabalhos dos The Comet is Coming, tal como Kate Tempest; Idehen foi igualmente argumento vocal recorrente nos Sons of Kemet, grupo que ainda encontrou nos seus trabalhos espaço para as vozes de Congo Natty, Angel Bat Dawid e Moor Mother, Kojey Radical e D Double E; e em Flowers in the Dark de Kofi Flexxx destacavam-se prestações vocais de Billy Woods, E L U C I D, Anthony Joseph, Confucious MC, Ganavya ou, uma vez mais, Mthembu. Desta vez, em Perceive Its Beauty, Acknowledge Its Grace escutam-se Moses Sumney, Saul Williams, Laraaji e Eska, Lianne La Havas, uma vez E L U C I D e ainda Anum Iyapo, alter-ego poético de Orville Hutchings, o pai de Shabaka Hutchings que em 1985 assinou um solitário clássico de dub poetry ao lado do produtor Cosmo Ben Imhotep, Song of the Motherland, que agora actualiza, quase 40 anos depois, numa tocante leitura que encerra o alinhamento.

Mas os principais discursos são mesmo os do próprio líder, Shabaka, que nas diferentes flautas parece buscar a voz da paz interior a que almeja expondo um outro tipo de personalidade musical, menos impositiva e directa, menos baseada em frases curtas e agora mais apostado em longos mantras de carácter contemplativo e regenerador. Como se tivesse passado boa parte a gritar palavras de ordem e agora descobrisse numa poética contemplação outro propósito, menos urgente, mas certamente mais necessário ao seu próprio equilíbrio.


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