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Fotografia: Margarida Rocha e Silva
Publicado a: 23/12/2023

O músico prestou tributos a Pharoah Sanders e John Coltrane.

Dose dupla de Shabaka Hutchings em Londres: prenúncios do final de um ciclo

Fotografia: Margarida Rocha e Silva
Publicado a: 23/12/2023

Num misto de celebração e saudade antecipada, Shabaka Hutchings despediu-se do saxofone com dois concertos em Londres. Demonstraram acontecimentos recentes que esta não foi uma despedida definitiva, já que Shabaka continua a tocar o instrumento ao vivo, inclusive em Londres (por exemplo, como convidado do trio do pianista inglês Alexander Hawkins), apesar dos anúncios que anteriormente tinha feito em sentido contrário. Não obstante estes detalhes, os concertos que Shabaka protagonizou nos dias 7 e 8 de Dezembro podem ser considerados como a sua despedida de facto do instrumento com o qual se celebrizou em bandas como Shabaka and The Ancestors, Comet is Coming ou Sons of Kemet. A crer nas palavras do próprio, o início do hiato definitivo estará para breve, mas entre a sua etiqueta Native Rebel Records, projetos como Kofi Flexxx, e um novo interesse marcado por instrumentos de sopro de madeira, antecipa-se que continuaremos a falar do músico londrino com regularidade, analisando e discutindo a importância da sua arte para a cultura contemporânea.

Músico fundamental para o renascimento do jazz britânico na última década, Shabaka Hutchings prestou homenagem, nestes concertos-tributo, a duas figuras seminais do jazz – Pharoah Sanders e John Coltrane. Além de serem óbvias influências musicais de Shabaka, a escolha destes dois titãs teve também em contra outros fatores conjunturais: tanto Coltrane como Sanders afirmaram-se como saxofonistas, embora cultivassem um profundo interesse pelas potencialidades musicais de instrumentos de sopro de madeira, os quais exploraram em grau variável durante as respetivas carreiras. Inclusivamente, fizeram-no juntos na faixa “To Be, parte do álbum póstumo de John Coltrane, Expression, lançado alguns meses após a sua morte, em 1967. 

Passados mais de 50 anos, chegou então a vez do músico londrino embarcar na mesma jornada de (auto)descoberta. No seu último trabalho, o solo Afrikan Culture (Impulse! Records, 2022), Shabaka já havia dado pistas relativamente ao seu interesse por madeiras. Contudo, desta vez, é possível predizer que estará para breve uma imersão total do músico num universo vibracional essencialmente constituído por flautas de bambu. Para Shabaka, o momento atual é de aprendizagem, evolução e transformação. Os próximos passos da sua carreira são uma incógnita, mas a expectativa de ouvir os resultados desta sua nova fase musical é enorme. Para a história, ficará um par de concertos memoráveis que fizeram jus a todo o burburinho gerado pela ocasião. Shabaka Hutchings elevou-se ao reino dos colossos do saxofone – e essa aura mística assentou-lhe muito bem.

Uma viagem vibracional pela música curativa de Pharoah Sanders

Quinta-feira, 7 de Setembro de 2023. O teatro do Institute of Contemporary Arts (ICA) encheu-se para ouvir Shabaka Hutchings a homenagear Pharoah Sanders. Esta não foi a primeira vez que um tributo destas características aconteceu, tal como já tinha sido anteriormente relatado por estas páginas. No entanto, o concerto no ICA foi verdadeiramente especial, revelando-se como a despedida com que qualquer admirador de Shabaka Hutchings havia sonhado. A atmosfera intimista da sala, onde se encontravam cerca de 300 espetadores, proporcionou momentos de grande proximidade entre o músico e plateia, os quais não se repetiram no concerto do dia seguinte. Esse à-vontade fez com que Hutchings falasse bastante com os presentes acerca de diversos assuntos, começando por contar uma história simbólica sobre a sua relação com Pharoah Sanders:

Perguntei a Pharoah Sanders o que é que ele me recomendava, e ele disse-me: ‘Não carregues o saxofone ao ombro, porque quando chegas à minha idade, acabas por ficar com o ombro muito mal’. E são coisas assim… Não são espirituais, no sentido de se preocuparem com o crescimento espiritual, com os elementos espirituais da nossa ideologia ou das particularidades da nossa viagem através da música e da vida – na verdade, são apenas as coisas básicas que fazemos que nos impedem de avançar. Isso fez-me pensar ‘sim, o saxofone é fixe, mas não o carregues ao ombro’”.

Tal como um integral é a soma de infinitos elementos infinitesimais ao longo de um determinado intervalo, também o ser na sua imediatez – isto é, em sua realização presente – se manifesta como efeito de todas as ações elementares, atómicas, que realiza consciente ou inconscientemente ao longo do intervalo temporal que é a sua vida. Shabaka Hutchings regressou várias vezes a esta temática de forma tangencial, fundamentando parte do seu discurso filosófico na importância do detalhe e da intencionalidade que se deve impor mesmo aos aspetos mais ínfimos do quotidiano. Já sobre a postura com que Pharoah Sanders tocava saxofone – tópico também já discutido anteriormente por estas páginas –, recordou Hutchings o seguinte:

Outra coisa em que reparei é que, sempre que ele [Pharoah Sanders] tocava, estava sempre muito grounded. E é fácil dizer: ‘grounded, grounded, grounded’. Mas, na verdade, ele parecia estar firmemente plantado no chão, como se fosse uma árvore. Na altura, olhei para trás, para os meus vídeos, para ver o que poderia fazer melhor, e reparei que subia muito o saxofone. Especificamente, ao ver o Pharoah a tocar num festival na Alemanha, o ÜBERJAZZ, apercebi-me de que, na verdade, precisava de manter os pés no chão e tocar saxofone. O que é interessante porque, por vezes, o espírito apodera-se de nós e queremos mexer-nos ou deixar o nosso corpo fazer o que achamos natural, mas, na verdade, ao ver o Pharoah nessa atuação, apercebi-me de que muitas coisas podem ser naturais para nós se aplicarmos elementos de vontade – de força de vontade – para mudar.”

Perante uma plateia profundamente compenetrada, o concerto teve início ao som de “Harvest Time”, clássico do saxofonista norte-americano, que este ano ressurgiu no mercado com selo da Luaka bop, numa box que é uma das melhores reedições de 2023. Assim como no tema original, inicialmente apenas a guitarra de Dave Okumu e o baixo (aqui elétrico!) de Tom Herbet se escutaram, na sala iluminada em tons de vermelho, diante de uma massa humana que se mantinha num silêncio arrepiante – algo tímido até –, denotado pelo próprio Hutchings quando deixou escapar um sorriso rasgado logo após a primeira ovação. Inicialmente, Shabaka tocou flauta, seguindo-se, depois, o primeiro de muitos solos de saxofone que preencheram uma noite plena de sonho e catarse. Na bateria, esteve Jas Kayser, que perfez o quarteto, ora conferindo-lhe assertividade rítmica e tração, ora se misturando na massa espectral em que o grupo se transmudava em momentos de coletiva dissolução do ego.

O embalo geral, as vibrações orgânicas dos sopros, as ondas sintéticas do baixo e da guitarra, a oscilação ordenada da plateia a mover-se ao som de um groove subentendido, o respirar de uma espiritualidade latente que rebentava no peito de cada pessoa, os fechares de olhos que sinalizavam entendimento, os suspiros assinalando redenção. De isto se fez uma atuação em que o cosmos se reorganizou numa transiente unidade de sentido, trazendo à terra um espírito, uma criação, uma ideia de música da qual Pharoah Sanders foi autor, mas que na verdade se trata de uma obra universal, teofânica, mítico-poética e sideral. E no meio de todo esse sincronismo espiritual, Shabaka explorava diferentes instrumentos, alternando entre diferentes madeiras e percussões. Cada vez que pegava no saxofone, transmitia uma sensação de prazer absoluto ao tocá-lo, a ponto de sentir a necessidade de justificar o seu afastamento gradual deste instrumento:

Gosto tanto de tocar saxofone que parar faz-me realmente apreciar a natureza do sacrifício. O saxofone é bom, é divertido e faz alguma coisa, mas o que precisa de acontecer para que eu cresça é deixar de lado o saxofone e concentrar-me noutras coisas. Poderia falar muito acerca disto, mas… espero que seja inspirador. A inspiração vem em ondas: vemos alguém a fazer algo que nos inspira a fazer outras coisas. Não tive esta ideia sozinho, foi algo que aconteceu por ver a determinação de artistas que vieram antes de mim, o que fizeram para seguir os seus caminhos, o tipo de sacrifícios que fizeram […].”

Inspiração, sacrifício e força de vontade. É difícil imaginar alguém que tenha saído dali sem sentir o desejo de mudar aspetos da sua vida menos satisfatórios. Não é, por isso, descontextualizado descrever o estado semiconsciente a que a sala lentamente se deixou submeter como uma espécie de meditação coletiva ou hipótese voluntária. Os solos de saxofone em que Hutchings não foi acompanhado pelo restante quarteto foram sinónimo de mestria técnica e sensibilidade artística – dimensões por vezes difíceis de conciliar –, baseando-se em arpejos tocados durante vários minutos, num sopro único mantido pela respiração circular, e explorações de multifónicos. Mas a verdade é que Shabaka tem sido representante deste tipo de unificação entre técnica e talento, graças à sua visão holística totalizante das várias dimensões humanas. É precisamente isso que o permite extrair, numa frase melódica, um sopro enraivecido e violento das profundezas do inferno, para na seguinte arrancar um mundo de beleza e vulnerabilidade do núcleo da sua alma. Shabaka é um instrumentista de técnica superior, um artista de enorme sentido estético e um humano de sensibilidade apurada. Por isso, compreende-se que a sua autenticidade enquanto artista seja uma prioridade e que o caminho em direcção a ela uma inevitabilidade. Relativamente à sua decisão de se focar completamente nas madeiras, explicou Shabaka:

A dada altura, apercebi-me de que a minha prática privada não estava alinhada com as minhas performances públicas. O que não tem problema nenhum, e eu podia continuar a dar concertos. Mas não quero ir em direção a uma espécie de comoditização das performances. E, de certa forma, [o que vou fazer no futuro também] vai ser uma mercadoria, porque estamos num mercado. Mas o máximo que posso fazer é tentar tornar a minha experiência holística num certo sentido, o que significa que aquilo que pratico, me influencia e interessa fora do palco também é nele representado. E neste momento, na minha vida, isso é fazer peças de bambu, que são coisas que ressoam, e a ver qual o seu efeito no meu temperamento, nas minhas escolhas e em tudo o resto.”

Sempre que Shabaka intervinha, o público escutava-o com a máxima atenção. As interpretações criativas que se escutaram de outros temas de Sanders, como “Village of the Pharoahs”, foram sempre representações livres que, embora tenham permanecido, grosso modo, fiéis aos esboços originais, foram complementadas com novas cores e texturas. No final, após quase duas horas de concerto, que se estendeu muito para além da hora prevista, sentimos que Shabaka tinha vontade de continuar a tocar e a falar. A noite tinha sido mágica e a empatia com o público, genuína. Teria sido ainda melhor se não houvesse horários a cumprir, mas saímos do ICA com a sensação de que as expectativas para o concerto foram superadas. A honrar com absoluta dignidade o maestro do jazz espiritual que tanto lhe ensinou, Shabaka tocou e iluminou: mais do que um músico, tivemos diante perante um guia espiritual, fonte de luz e inspiração.



Forgiveness. Mercy. Compassion. Peace. A Love Supreme.

Sexta-feira, 8 de Dezembro. Shabaka preparara uma apresentação de A Love Supreme de John Coltrane, que ocorreria na igreja de St John, em Hackney. Depois do intimista tributo a Pharoah Sanders do dia anterior, a expetativa para este concerto era máxima. A sala que recebeu este espetáculo era bastante maior do que a do teatro do ICA, facto que tornou a apresentação mais impessoal, com o saxofonista surpreendentemente a resumir-se ao essencial na sua comunicação com o público (ligeiramente abaixo dos 2 mil espetadores). Shabaka preferiu focar-se na performance que tinha em mãos, o que é compreensível, pois tocar o A Love Supreme é de uma enorme responsabilidade. Afinal, falamos de um álbum que é por muitos tido como um dos mais importantes da história do jazz. Não havia dúvidas de que Shabaka estaria à altura da interpretação, mas a curiosidade residia principalmente na forma como essa seria feita. Gravado no final de 1964 no estúdio de Rudy Van Gelder por um quarteto formado por John Coltrane (saxofone), McCoy Tyner (piano), Jimmy Garrison (contrabaixo) e Elvin Jones (bateria), os cerca de 30 minutos de duração de A Love Supreme teriam de ser estendidos para um concerto que acabou por durar hora e meia.

Com a entrada da banda em palco, a ansiedade da espera transformou-se em entusiasmo, dada a imediata constatação de que a noite seria épica: para tocar ao seu lado, Shabaka trouxe nada mais, nada menos do que 4 bateristas, 2 contrabaixistas e 1 guitarrista. Na prática, o quarteto da noite anterior foi ampliado com a entrada dos bateristas Moses Boyd, Edward Wakili Hick e Tom Skinner, e do contrabaixista Neil Charles. A potente e sensível reimaginação de A Love Supreme que se seguiu provou que a escolha deste octeto foi acertada: para momentos especiais, ensembles únicos.

Ainda que a atmosfera de proximidade do ICA tenha sido ideal para a despedida de Shabaka do saxofone, a apresentação de A Love Supreme foi a sua saída pela porta grande. Novamente, as interpretações dos temas desta suíte épica de jazz modal espiritual foram bastante livres, utilizando uma instrumentação alternativa (piano em vez de guitarra) e uma variedade de instrumentos de sopro e percussão tocados por Shabaka, tudo interligado por improvisações coletivas. De quando em vez, Shabaka adensava a solenidade frenética da atuação, repetindo o mantra:

Forgivenesss
Mercy
Compassion
Peace
A Love Supreme

Como momentos altos desta noite histórica, destacam-se o início arrepiante de “Part 2: ‘Resolution’”, a que Shabaka soube impor sublimemente toda a intensidade que o saxofone requer neste tema, além das várias improvisações coletivas – principalmente aquela em que os 4 bateristas se juntaram em profusos jogos polirrítmicos. Dave Okumu também teve um papel de destaque – o visionarismo e a genialidade que o músico tem demonstrado nos múltiplos projetos em que se desdobra são sempre transportados para o palco, tanto quando atua como sideman quanto quando se assume como líder de banda (relembre-se o extraordinário concerto que o músico ofereceu este ano no We Out Here).

Com mais um concerto de excelência, Shabaka Hutchings demonstrou o porquê de ser um ícone da música contemporânea, que arrasta fãs que transcendem em muito o domínio do jazz. Manter-nos-emos extremamente curiosos por perceber os avanços que Shabaka fará nas madeiras e como é que as suas experiências com os diferentes aspetos sonoros – da ressonância ao ritmo, da altura ao movimento melódico – moldarão a sua visão artística futura. Abriu-se um novo mundo de possibilidades, e que privilégio é estarmos cá para vivenciá-lo.


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