Pontos-de-Vista

João Morado

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A música e espiritualidade de Sanders através do olhar do saxofonista londrino Shabaka Hutchings.

80 anos de Pharoah Sanders, o maestro do jazz espiritual

Três de Dezembro de 2017, The Pickle Factory, Londres. Uma sala a meia-luz, sobrelotada, claramente em tempos pré-pandémicos. Poucos eram os que mantinham os olhos abertos; afinal, não havia assim tanto para ver, a experiência resumia-se a sentir. Transpirava-se espiritualidade no ambiente sobreaquecido. A atmosfera era densa, hipnótica, ritualística, quase cerimonial. A plateia movia-se uniformemente, balançando-se de forma homogénea. As ondas sonoras atingiam-na violentamente, não propriamente pela agressividade do tocar, antes sim pela profundidade da mensagem transmitida. Às tantas, essa energia sonora dispersava-se por entre o público, aleatoriamente acumulando-se em pequenos núcleos que, ciclicamente, eram devolvidos ao palco. Uniam-se, assim, dois elementos –os músicos e os espectadores — numa simbiose orgânica e complexa, formada apenas por algumas horas, mas de uma consciência e presença digna de um singular organismo, uma nova entidade. No palco encontrava-se Shabaka Hutchings (e ilustres amigos), que, numa vénia entre saxofonistas, prestava tributo ao lendário Pharoah Sanders.

Por ocasião dos oitenta anos de Farrel Sanders — ou Pharoah Sanders, nome pelo qual, porventura, será mais conhecido –, foi recentemente anunciado que os Seed Ensemble juntar-se-ão a Shabaka Hutchings para celebrar esta data num concerto que ocorrerá no Barbican Centre, onde será revisitado o rico reportório do saxofonista americano. Apesar disto, já não são de agora as homenagens prestadas por Hutchings a Sanders, músicos geograficamente separados pelo Oceano Atlântico, mas unidos num plano superior, transcendental. Escutar a música de Hutchings é, aliás, mergulhar, de certo modo, nessa espiritualidade de Sanders: da electrónica messiânica de Comet is Coming, passando pela ancestralidade dos Sons of Kemet, até à busca profunda e profética dos Shabaka & The Ancestors, é perceptível que o éter — ou fio condutor — que agrega os distintos projectos do londrino é, indubitavelmente, a espiritualidade. Não é surpreendente, por isso, que o saxofonista britânico tenha o seu par como uma das suas grandes referências no plano musical, afirmando mesmo que Sanders moldou o seu sentido “de musicalidade e forma”.

Numa iluminada crónica recentemente publicada na Vinyl Factory intitulada “The Spiritual Power of Pharoah Sanders”, Hutchings celebrou o octogésimo aniversário de Sanders através de uma reflexão sobre a influência que este teve na sua vida. Para este fim, abordou a música do saxofonista originário do Arkansas, meditando sobre a sua forma, mensagem e propósito. Recorreu, também, ao trabalho seminal Black Unity, que usou como principal referência para a sua argumentação, este que foi um disco lançado em 1972 pela Impulse! Records e que, a par de Karma (1969), é tido como um dos zénites do spiritual jazz. Ambos os discos foram lançados na era de Sanders pós-Coltrane, um claro sinal das mútuas influências cósmicas partilhadas entre os dois saxofonistas.



Para Hutchings, Sanders representa o “princípio criativo que centra o comunalismo como a força motriz através da qual o espírito é manifestado através do som”. Com esta afirmação, o saxofonista londrino pretendeu demonstrar a elevação de Sanders no plano espiritual, alguém que conscientemente renegou à sua individualidade — que reconheceu como transiente — em detrimento de uma abordagem de grupo, à qual recorreu como forma de “alcançar a eternidade”. Além disso, tal negação do foco no indivíduo não tem unicamente consequências na dinâmica e hierarquia de um grupo de músicos, mas também na sua relação com o público, visto que gera uma “construção cíclica” onde não existe nem “princípio nem fim para a música” — ideia que, segundo Hutchings, é consumada com as “exclamações dos membros da audiência ao soar da nota final”, visto que o público é o intérprete da mensagem dos músicos, funcionando como o trampolim que “devolve à fonte a energia que alimentou os músicos”.

São também pertinentes as observações sobre quem é o objecto de análise na música de Sanders: será o ouvinte que analisa a música, ou será a música que analisa o ouvinte? Para Hutchings, quando falamos de música que reside em domínios com esta profundidade e densidade espiritual, o ouvinte colocar-se na posição de observador e analista é apenas adequado para uma “apreciação superficial”, dado que “mais é preciso” para alcançar “os níveis de significação que constituem o espectro total da sua visão musical”. Esta conclusão reside na crença de que “objectificar alguma coisa ou alguém é negar (ou ignorar) a existência de uma consciência fora do conhecimento e compreensão do indivíduo, e assumir algum controlo em relação a como o objecto pode actuar nesse mesmo indivíduo”. Portanto, nesta perspectiva, a música de Sanders questiona-nos, analisa-nos, e não o contrário; a sua audição é uma experiência na qual quem é realmente o objecto de análise é o ouvinte, e não a música. Qual é, então, a solução, de um ponto de vista prático, para assumir esta atitude de “prostração” perante a música? Contemplação ou, pelas palavras de Hutchings, “silenciarmos a mente, permitindo que visões e ideias se manifestem fora do âmbito do que se assume ser conhecido sobre a música”. Além disso, apesar de ideias como “o conceito de tempo”, aquando da audição da música de Sanders, “revelar-se como uma construção que é em grande parte uma construção social” serem questionáveis de uma perspectiva filosófica — e implacavelmente rebatidas sob uma visão científica –, não há dúvidas de que a experiência humana do tempo é subjectiva, especialmente quando estamos perante música desta elevação espiritual, na qual existe “um potencial de transcendência”.

Shabaka Hutchings recorda, também, que a primeira vez que viu “Pharoah tocar ao vivo” ficou “impressionado com a sua postura” pois “parecia que ele estava enraizado no chão e era capaz de extrair energia de todo o corpo para ser canalizada através do saxofone”. Neste ponto, o paralelismo entre os dois saxofonistas estabelece-se de forma plena: quem já teve a oportunidade de assistir a uma actuação de Hutchings reconhece o significado da expressão “tocar saxofone com o corpo todo”. Por fim, Black Unity, para além de ser um álbum com música tanto “do céu como da terra”, fornece igualmente – através do seu título — a resposta “à pergunta de como como nós, negros, triunfamos sobre um sistema de supremacia branca que afectou até mesmo a nossa visão para definir os parâmetros da realidade?”. Como porventura será aparente, esta é uma mensagem que, apesar dos seus quase cinquenta anos, é, ainda, de uma relevância superlativa na conjectura actual.

Curiosamente, já tivemos a oportunidade de questionar o saxofonista londrino qual o seu disco favorito de Pharoah Sanders. Apesar das constantes referências a Black Unity ao longo da sua crónica, Heart Is A Melody foi a sua resposta. Sem dúvida, outro disco essencial do octogenário maestro do spiritual jazz.


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