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Fotografia: Micael Hocherman
Publicado a: 22/03/2024

Jazz na rota da ancestralidade.

Amaro Freitas antes do Belém Soundcheck: “O nosso som pode chegar às pessoas, transmitir cura, abraçar alguém”

Fotografia: Micael Hocherman
Publicado a: 22/03/2024

Em Novembro de 2022, Amaro Freitas apresentou-se ao vivo em São João da Madeira no âmbito do festival Novembro Jazz, uma programação que se estendeu por todo aquele outonal mês na Casa da Criatividade e que levou ainda até essa sala artistas como Carlos Bica ou Ricardo Toscano. Nessa ocasião, tive a oportunidade de salientar a estranheza que se poderia adivinhar no facto de tamanho pianista — já então alvo de amplos aplausos internacionais — não ter à data ainda na sua concertografia registo de uma passagem por Lisboa: “É algo surpreendente, diga-se desde já, que o pianista que tantos e tão rasgados elogios tem conquistado no plano internacional, que ainda agora deu por si em estúdio em Londres na companhia de Shabaka Hutchings, Isaiah Collier e dos Blue Lab Beats, cujos dois últimos álbuns, Rasif (2018) e Sankofa (2021), mereceram críticas entusiasmadas por parte da imprensa especializada internacional e que agora se prepara para tocar na edição brasileira de um festival como o Primavera Sound, não tenha ainda conquistado espaço nas mais centrais (e visíveis) salas de Lisboa ou Porto”. E depois acrescentava: “O que só sublinha a importância das mais aventureiras programações que vão acontecendo nas ‘periferias’ destes pólos. Mérito, pois então, de quem decidiu levá-lo até estes públicos do Norte que assim puderam testemunhar um talento desmedido em absoluto topo de forma”. Mérito, sem dúvida.

Esta noite, sexta-feira dia 22 de Março, no arranque de uma primavera de destroços eleitorais ainda bem visíveis, a vinda de Amaro Freitas ao excelente programa do nascente Belém Soundcheck relembra-nos o quão urgente é a cultura e como a sua defesa se poderá afigurar prioridade nacional caso a inflexão de políticas neste sector ocorra como consequência directa das acções (ou inacções) do novo executivo. Esperar sentado poderá não ser opção…

O pianista pernambucano vem apresentar o seu mais recente trabalho, o excelente Y’Y, álbum que foi lançado (algo surpreendentemente) pela etiqueta da Carolina do Norte (e não, não existe um estado brasileiro com esse nome — é mesmo nos Estados Unidos) Psychic Hotline. Este selo é propriedade de Amelia Meath e Nick Sanborn, dupla que quando não está ocupada a gerir os destinos de uma pequena editora responde ao nome Sylvan Esso, duo electropop de considerável notoriedade indie.



Numa intermitente chamada Zoom, Amaro Freitas atendeu o Rimas e Batidas horas antes de mais uma apresentação no Brasil ao lado de Zé Manoel, outro pianista pernambucano. Juntos, e secundados por uma banda, os dois pianistas homenageiam o eterno Clube da Esquina, álbum de Milton Nascimento e Lô Borges que é justamente apontado como um dos melhores trabalhos musicais de sempre nascidos no Brasil (que é como quem diz “no Mundo”…). Seria incrível, obviamente, poder ver e ouvir esse concerto em Portugal, mas desta vez Amaro Freitas antecipava a sua inaugural visita a Lisboa em modo solitário para tocar material do seu novo álbum, o já mencionado Y’Y.

Focando-nos então no propósito desta visita, começámos por sublinhar o quanto este novo álbum, que teve a sua origem numa inspiradora e realmente exploratória viagem de Amaro Freitas ao encontro da comunidade indígena Sateré-Mawé no Amazonas, parece ser consequência não apenas de uma deslocação num vasto espaço geográfico, mas também de um salto no tempo, até uma era remota, pré-colonial. O pianista concorda: “Fui em busca de um outro roteiro brasileiro, investigar a cultura indígena e afro-brasileira. Porque todas as histórias sobre essas culturas indígena e afro-brasileira que eu escutei quando era um garoto sentado num banco de escola foram-me apresentadas a partir de uma perspectiva branca, passaram por um crivo branco”, sublinha Freitas. “Portanto, esse trabalho de resgate que eu procuro fazer na minha obra através das minhas músicas resulta de uma pesquisa de envolvimento, de visita aos lugares. E cada vez que eu visito esses lugares eu aprendo um pouco mais sobre a real cultura brasileira. Foi assim no Rasif, foi assim no Sankofa e é assim ainda no novo Y’Y. Quando eu chego ali em Manaus, me deparo com um Brasil totalmente diferente daquele que eu conhecia. É um lugar que não se parece nada com Pernambuco, talvez seja mais próximo dos bolivianos, dos peruanos. É um Brasil com uma natureza extremamente exuberante e onde sobrevivem fenómenos ancestrais incríveis. Vi uma árvore gigante em que os indígenas batiam para se comunicar com outras tribos no período da colonização. Cada toque significava uma coisa, havia um código, e a quilómetros de distância outros indígenas ficavam sabendo: ‘estão invadindo o nosso território’, e para isso dava três toques na árvore. A um quilómetro de distância outro indígena escutava e respondia com dois toques – ‘entendi, vou passar para a comunidade’”.

Amaro Freitas conta estas histórias com generosa vivacidade, percebendo-se na forma como o seu olhar se ilumina que está a reviver momentos que o marcaram de forma profunda. “Cara, são tecnologias de outro tempo, experiências que deixam marcas. Como por exemplo o encontro das águas entre o Rio Negro e o Amazonas, com a água preta e a água barrenta, e perceber que elas não se misturam. A vastidão das águas esmaga. Eu pude falar com membros da comunidade Sateré-Mawé sobre o balanceamento do planeta, sobre a importância da floresta, da água, e eles têm muito para ensinar, mesmo sendo uma comunidade primitiva. E nós no Brasil temos uma das maiores comunidades primitivas do mundo. E a conexão deles com as águas, a forma como buscam alimentos — comem carne de jacaré, por exemplo, peixe, formiga. Presenciei um ritual pelo qual os garotos passam para se tornarem homens, a dança da Tucandera, que é um ritual que envolve a formiga tocandera. O rapaz tem de colocar as duas mãos dentro de um saco com essas formigas, que o começam a ferroar. O garoto tem de suportar e os mais velhos ficam cantando em seu redor. Nesse dia, uma pessoa visitante quis experimentar uma ferroadela de uma única formiga. Desmaiou e teve que ir para o hospital. Isto para lhe dizer que a conexão que eles têm com a natureza muito estranha: ‘Amaro?’, me dizia um indígena, ‘fui picado por um escorpião’. ‘E aí?’ ‘Não senti nada’. É muito absurdo porque eles ensinaram para mim que é como se a nossa vida fosse extraterrestre, porque a gente vive na Terra, mas parece não ter conexão com a terra. ’Quando chegar o fim do mundo’, eles me disseram, ‘vocês não estão preparados, mas nós sim’”.

Essa viagem de Amaro Freitas, entende-se nitidamente no seu discurso, foi na verdade ao encontro de uma era ainda liberta da prática e da violência colonial. Amaro Freitas tem procurado de forma muito consciente e assertiva descolonizar a sua própria música. “Perfeitamente, é isso mesmo. Quando se encontravam referências nos livros de escola aos indígenas, eram para dizer que eram pessoas preguiçosas, por exemplo, que não queriam trabalhar para os colonizadores portugueses ou espanhóis. Mas, mano, a galera estava sendo escravizada. E os africanos que chegaram aqui estavam sendo escravizados”. O pianista, com o discurso cortado pela tecnologia moderna e pouco fiável de uma ligação de Internet fraca, continua a referenciar lendas que se perderam porque, no seu entender, foram obliteradas por séculos de colonização, deitando a perder uma ancestral e milenar ligação aos ciclos naturais da terra e dos rios. “Esse Brasil que eu vi… não adianta ver só na televisão. A experiência de estar lá”, assegura o músico e compositor, “é muito maior do que qualquer outra coisa a que se possa recorrer para tentar compreender isso”.

As histórias que Amaro Freitas nos conta têm um propósito, ele procura ilustrar como essa busca, essa demanda por uma outra forma de viver acabou por ter uma ligação directa ao seu pianismo. “Eu estava vivendo o piano preparado há cinco anos, colocando coisas dentro dele para lhe alterar a sonoridade, obviamente influenciado pelos meus estudos do John Cage”, explica. “Mas eu procurei fazer isso a partir de uma perspectiva brasileira que trouxesse esse som do trópico brasileiro, esse som quente dos ritmos afro-indígenas-brasileiros, como o maracatu, a ciranda, o bumba-meu-boi, o samba… Essa imensidão desponta no tema ‘A Dança dos Martelos’, com o piano a soar de uma forma tropical, alterado com coisas que trouxe dessa viagem, sementes secas de frutos, por exemplo. Quero exaltar essas raízes. Quando se estuda a bossa nova, por exemplo, percebe-se que o contributo de músicos como Pixinguinha ou Johnny Alf é menorizado, porque eles são músicos pretos, tiveram uma vida muito dura. E na televisão, os músicos brancos da bossa nova se apresentavam sendo aplaudidos e colhendo todo o mérito por uma música que era puramente negra”.



No tal primeiro encontro com o pianismo de Amaro Freitas no concerto de 2022 na Casa da Criatividade em São João da Madeira, explicou-se como uma parte importante do concerto foi devotada, precisamente, ao piano preparado, num solo longo que evidenciava uma ligação do músico ao seu instrumento que esta noite, no Pequeno Auditório do Centro Cultural de Belém, será levada ainda mais longe, fruto da experiência entretanto acumulada. 

Nessa ocasião, escreveu-se por aqui: “A arte de Amaro Freitas é ritmicamente complexa, exuberante até, e melodicamente poética. Tanto surge de amplas paisagens melódicas servidas por um entendimento inteligente do que Ed Motta costuma descrever, quando se refere à tradição brasileira, por ‘música de harmonia rica’, como mergulha em dissonâncias exigentes, nascidas de acordes contrastantes que nos mantêm na beira dos nossos assentos, esperando resoluções que às vezes só são tangencialmente apresentadas. E no plano rítmico vale tudo: velocidades e tempos impossíveis, numa espiral de crescente fantasia que tanto deve à tradição do pianismo jazz (de Monk a Tyner, de Hancock e Corea a Hamasyan) como a uma evidente formação clássica que estudou a fundo todos os cânones. A meio há um longo solo, com a secção rítmica fora do palco e Amaro Freitas debruçado sobre as cordas, dispondo molas de roupa (‘pregadores’, como se diz no Brasil) que preparou previa e cuidadosamente com fita adesiva nas cordas de forma a abafar-lhes o brilho e tornando-as mais percussivas. E nas suas mãos o piano transforma-se em ancestral tambor, uma ponte directa entre Olatunji e John Cage, entre África e o espaço. O solo durou uns bons 20 minutos e prendeu a atenção do primeiro ao último segundo. Freitas é, indubitavelmente, um artista de amplos recursos, capaz de com total pertinência citar peças do cânone clássico europeu enquanto resolve o solo de uma composição que pode nascer no folclore nordestino, mas sem nunca soar indulgente ou rendido apenas aos encantos da forma. A sua música apela ao espírito, tem profundidade, mas não esquece o corpo e a dança. Tudo serve, afinal de contas, para libertar”.

Curiosamente, na peça que o New York Times lhe dedicou e que foi publicada há algumas semanas — e que tem assinatura de Carolina Abbot Galvão — Amaro Freitas tenta explicar como esses dois mundos — o que apreendeu academicamente e o que agora encontrou na sua espiritual demanda por um tempo ancestral — coexistem em si: “Há momentos em que me divido entre as sementes do Amazonas, os ritmos africanos, e, na outra mão, toco melodias europeias. É como se a minha mão esquerda seja África e a direita a Europa”. Forma feliz de evidenciar como o seu corpo é fruto de uma História particular, como se o seu pensamento é capaz de acomodar dois mundos e duas realidades distintas, consequência de um percurso tão particular que levou o vetusto New York Times a declarar no título da supracitada peça que “Amaro Freitas está a levar o seu jazz a um lugar novo: o Amazonas”.

Ainda assim, nessa viagem, o pianista não segue sozinho e apesar de hoje à noite apresentar Y’Y em modo de solo absoluto, no disco — na segunda metade, mais precisamente — surgem uma série de importantes convidados, como o agora flautista Shabaka Hutchings, a harpista Brandee Younger, o guitarrista Jeff Parker, o baterista Hamid Drake e o baixista Aniel Someillan. “A gente foi-se cruzando em vários festivais na Europa”, explica-nos Amaro Freitas. “A Europa tem-se revelado lugar de encontro para músicos muito diferentes, que apresentam visões muito diferentes, e eu tenho vivido muitas experiências incríveis nos festivais europeus. A Brandee encontrei-a num festival de Cork onde ela fez uma apresentação a solo, em harpa. Nessa ocasião trocámos ideias muito bacanas e eu vi na Brandee uma intenção semelhante à minha, mas a partir de uma perspectiva distinta: ela tenta conectar-se com a música de John Coltrane e de Alice Coltrane, com o jazz americano, as suas origens, e de colocar isso na sua fala, nos seus concertos. Pensei logo que precisava de fazer algo com ela”, diz-nos Amaro. “Com Shabaka foi igual. Ele é uma pessoa que tem procurado conectar-se com a sua ancestralidade. Ele nasceu em Inglaterra, mas na sua música sente-se muito esse retorno a África. Ele está a tentar encontrar sons que ilustrem essa conexão espiritual e ancestral com outros lugares do mundo. Já o Hamid Drake”, elabora o pianista quando menciona o mestre baterista, “ele surge para mim como uma espécie de Naná Vasconcelos, que é um ancestral da música, uma lenda do jazz. O Jeff Parker também o encontrei no Cork Jazz Festival. Esses encontros resultam de uma diáspora pulsante. São músicos que buscam ou exploram uma ligação a África e que no momento do play têm na música um fio condutor através da nossa ancestralidade. Esse é o nosso elo”. 

O pianista exemplifica: “Quando a gente gravou a música ‘Encantados’” — revela, referindo-se à composição que é a mais longa de Y’Y, que encerra o seu alinhamento e que conta com as participações de Shabaka Hutchings, Hamid Drake e Aniel Someillan — “e, atenção, o primeiro que gravámos é o take que se escuta no disco, a gente se olhou e não precisou de muita conversa para entender a música. É que apesar de muitas informações poderem ter sido perdidas e eu não saiba a linhagem da minha família, mesmo que eu não tenha escutado muitas histórias sobre os meus antepassados, a música existe dentro de mim, ela existe dentro de você, dentro de Shabaka, dentro do Hamid e do Aniel, e quando a gente se conecta através dela isso leva-nos para um outro lugar, e talvez eu não saiba explicar onde é, o que é, mas sei que é real”. 

Amaro Freitas tem ainda a oportunidade de nos elucidar de onde vem o título dessa composição-chave de Y’Y: “No Maranhão existe uma coisa chamada ‘Brinquedo de Encantamento’. São pessoas que podem ser possuídas pelos ‘Encantados’ e há vários, como o Kazumba. São ‘Encantados’, não vivem entre o povo, mas sempre surgem quando o povo precisa. Eles vêm, ajudam aquele povo e depois regressam à floresta ou ao rio. No Maranhão, os ‘Brinquedos de Encantamento’ representam a capacidade de uma ligação espiritual tão profunda e potente, elas vão receber uma bênção. No momento em que eu estou tocando com o Shabaka, o Hamid e com o Aniel, naquele exacto momento do play em que a gente não está se preocupando com o mundo e simplesmente existe com a nossa música, posso dizer que nesse momento todos viramos ‘Brinquedos de Encantamento’, somos possuídos pela Deusa da Música e através do nosso som a gente pode chegar às pessoas, transmitir cura, abraçar alguém, a gente pode trazer o por do sol para quem não teve a oportunidade de nesse dia ver o por do sol”.

“Nesse concerto”, conclui Amaro Freitas quando questionado sobre a sua estreia em Lisboa, “vou juntamente com o meu engenheiro de som, através de loops e efeitos de reverb, trazer uma mistura do orgânico com alguma tecnologia, através do piano preparado, mas também com pedais, computador. Posso prometer um show muito real, muito semelhante ao que as pessoas podem escutar no disco. Só não vou conseguir fazer a ‘Encantados’, porque essa eu faço no disco com um quarteto com o Shabaka, não é? Mas toda aquela parte do piano preparado, com as vozes e os loops, essa vai acontecer. E o show também vai tocar no reportório dos meus outros discos”, avisa.

Ouvindo Amaro Freitas, de permanente sorriso no rosto, ligar-se a nós mesmo com uma difusa ligação de Internet, poucas dúvidas restam de que esta noite seremos todos “Brinquedos de Encantamento”, ligados num outro plano.


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