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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 24/04/2024

Na pele de intérprete para cantar a Liberdade.

JP Simões: “A intervenção, mais do que nunca, é necessária”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 24/04/2024

Numa bela manhã soalheira de Abril, fomos conversar com JP Simões. Foi uma aventura que pôde contar com linguagem gestual, vespas, o Povo de Sucupira e muitas coisas que não fazem parte da entrevista. Há sempre momentos divertidíssimos quando conversamos com este músico. 

Serve, esta breve introdução, para passar algo que penso há muitos anos. Vivemos uma altura privilegiada. Temos em vida o saber e o aprender da consciência das nossas vivências e, simultaneamente, das vivências passadas que ficaram escritas na história. Isto para chamar à atenção que, na cultura portuguesa, estamos numa época que a segunda geração de ’70 pulula entre nós. Superstição ou não, acreditamos que há momentos da nossa vida em que lidamos com gente que ficará gravada na história e na memória colectiva das pessoas. Com JP Simões, essa ideia vem-nos sempre à cabeça. Daí ser sempre, para além de uma aventura, uma honra muito grande entrevistar alguém com a sua bagagem.

Em Fevereiro último, este dotado cantautor colocou a escrita de lado e atirou-se ao repertório de um dos seu heróis musicais — e de muitos de nós, na verdade. JP Simões Canta José Mário Branco saiu pela chancela da Omnichord e tem estado a ser apresentado ao vivo pelo país fora. Hoje, 24 de Abril, podem escutá-lo neste formato no Teatro Tivoli, em Lisboa; depois, parte para Leiria, dia 25; seguindo-se uma passagem pelo Festival Trip, em Viseu, dia 27 do mesmo mês. Aliando tudo isso ao facto de estarmos prestes a comemorar os 50 anos da Revolução dos Cravos, não havia melhor altura do que agora para desafiarmos o autor de discos como 1970 (2006) ou Roma (2013) para uma conversa.



Estamos no mês da Liberdade e eu gostava de começar por falar na génese do teu novo trabalho à volta da música de José Mario Branco.

Eu acabei de acordar. Pensei, “se calhar 11 horas foi cedo demais.” Eu costumo acordar cedo. Só que isto demora algum tempo até começar tudo funcionar.

O que é que te trouxe a este momento da tua carreira? 

Eu já tenho uma história antiga com o José Mário Branco, que sempre gostei. A primeira vez que fiquei com a música dele na cabeça, tinha 12 anos. Na altura em que deve ter saído o “Inquietação”, acho que foi em ’82, ou coisa assim, fiquei com aquela música na cabeça. Embora não conseguisse perceber no seu sentido mais profundo e crescer um bocado. Sempre gostei imenso da música, da tensão da música, havia ali qualquer coisa de misterioso que me dizia respeito de alguma maneira. Haveriam de passar muitos anos até que, por ocasião de uma proposta, creio eu, do Henrique Amaro, de escolher vários músicos para fazer uma versão de uma música que gostassem dentro do acervo da música portuguesa, em que escolhi a “Inquietação” para participar nessa compilação. Gostei do resultado e acabei por colocá-la no meu primeiro disco a solo. Depois, tive a sorte, não sei bem em que ocasião, se num filme ou num espetáculo, de encontrar José Mário Branco no cinema São Jorge, ou ele encontrar-me a mim, e dizer-me ter gostado muito da versão. Naturalmente, fiquei muito feliz com isso. 

Entretanto, eu haveria de me cruzar algumas vezes com ele, fomos colegas na faculdade. Fizemos uma vez um concerto os dois. Fomos a Coimbra para o encontro entre Portugal e a Galiza de música de intervenção. Eu fui como representante da nova geração e ele representante da “novíssima”, e vieram os nossos congéneres da Galiza. Foi um espetáculo engraçado. Entretanto, nos últimos anos comecei a ser solicitado para fazer os concertos no 25 de Abril, à volta do 25 de Abril! Para aí desde 2018, 2019. Fomos escolhendo repertório entre o Zeca, Sérgio, Fausto, José Mário… E, na verdade, o que começou a acontecer foi que eu sentia cada vez mais afinidade a cantar as coisas do Zé Mário Branco. Dizia-me mais respeito de algum modo. Tinham mais a ver com o meu feitio, de alguma maneira. Portanto, desde 2019, que foi o ano em que ele faleceu, mesmo nesse Abril, antes dele falecer fiz alguns concertos essencialmente com música de José Mário Branco. Depois veio a pandemia, mas logo em 2020 ainda tivemos várias solicitações, porque os concertos ficaram bonitos. Até então, sempre em Abril, faço alguns concertos que acabam por ser homenagens a ele, na verdade. Começámos a fazer, quase integralmente, o concerto todo com música de José Mário Branco. 

Há uns tempos, uns dois anos, o meu editor Hugo Ferreira, da Omnichord, que também foi diretor da RUC na Universidade de Coimbra, convidou José Mário Branco para fazer um espetáculo por alturas de um aniversário da rádio. Ele disse que não tinha muita paciência para estar agora a montar uma banda, mas àquela boa maneira de compincha de camaradagem — “Epá, pego na guitarra e vou! E fez um concerto no Teatro Académico Gil Vicente que o Ferreira gravou muito informalmente, ou seja, sem grandes condições para ser editado. Ele ficou sempre com aquele concerto atravessado. Gostava de o editar. Ao mesmo tempo achava que o José Mário Branco, todo ele… A música, pessoa, atitude, filosofia, poesia, eram de sobremaneira importantes para desaparecerem com ele. Então ele teve essa conversa comigo, numa de me sugerir que eu o fizesse. Por assim dizer, queria que eu gravasse uma réplica desse concerto, com guitarra e voz. Entretanto, já tinha vindo a trabalhar muito à volta da música dele. Já tinha, porque trabalho adiantado. Especialmente o trabalho desenvolvido com o Nuno Ferreira, músico e compositor que, entretanto, foi fazendo os arranjos para os vários instrumentos que temos na banda e estava sinceramente satisfeito com o trabalho. Propus-lhe que juntássemos as duas ideias e que se fizesse um disco com banda, ou pelo menos em trio — guitarra, voz e percussões. Fui escolhendo músicas e à medida que o disco ia aparecendo, íamos fazendo as bases, e estava a soar muito bem, mas estava a pedir mais. Estava a pedir mais instrumentos. Falei com o contrabaixista e logo começou a soar maravilhosamente bem. Finalmente fomos falar com o Márcio Pinto, que toca marimba. Ele fez um dos primeiros concertos, destes concertos de Abril, comigo e com o Nuno Ferreira. Introduzimos a marimba e o disco começou a ficar sólido e bonito, até chegar ao ponto. Assim, tivemos coragem de o editar, por assim dizer. Essa foi mais ou menos a viagem do deste disco. 

E como é que têm sido os concertos em torno deste projecto?

Os concertos têm sido mesmo bonitos. Acho que, de alguma maneira, parecem concertos pé de Galo. Como eu tenho um timbre muito parecido com o do Zé Mário Branco, e como acho que as pessoas são muito recetivas à música dele, de repente, há qualquer coisa ali ao vivo! Quase um ritual xamânico. E as coisas têm funcionado bem. Esforço-me por não cantar mal e as músicas aparecem com vigor. A instrumentação está bem feita, acho que fazemos um concerto mesmo bonito. Mesmo antes do disco sair, já tínhamos uma série de concertos marcados.

Então, aos 12 anos, como tu disseste, ainda não percebias José Mário Branco. Ao longo do tempo foste entrosando e neste momento és quase como um legado vivo, que tu construíste, da música e letras dele.

Não sou legado nenhum. Estou a fazer um trabalho de interpretação, sim. Tem o seu valor, mas vale o que vale, não é? As pessoas vão aos concertos, neste caso, por vários motivos. Primeiro, porque ele é a voz de uma revolução, e até da sua própria decepção. Depois, porque as músicas estão no nosso imaginário. Fazem mesmo parte daquilo que se chama “geração revolucionária”, que deixou um acervo musical maravilhoso. Todos nós sabemos, ele é incontornável na nossa história. Finalmente, vão para me ver a mim a cantá-las. Portanto, neste aspeto, o meu papel é o que é, vale o que vale. Dou-me por muito satisfeito, porque na verdade dá mesmo gozo cantar estas canções. Mesmo gozo! Acima de tudo isso é isto. É o que me faz ficar feliz. Também é o primeiro disco que eu lanço em que sou apenas intérprete.

Diz-me uma coisa. Achas que, para além do gozo, para além do legado revolucionário, estamos a entrar numa nova era em que vamos precisar de novos cantautores revolucionários, de nova música revolucionária, intervencionista, em Portugal? Ou achas que isto é perfeitamente aleatório e uma coincidência? 

Eu creio que a música de intervenção é muito vasta, não é? Nós temos esta! Nós temos isto que chamamos música de intervenção com I maiúsculo. É uma música que teve os seus autores e os seus ícones, os seus compositores, cantores e poetas, que viveram no centro dos acontecimentos e passaram pelo crivo da ditadura. Cantaram a liberdade e depois viram-na acontecer! Alguns, como o José Mário Branco cantaram, também, a decepção da revolução. Quer isto dizer que também não é nada de novo as utopias, pronto, realizaram-se de forma meio coxa, não é? Isto é uma coisa que também se vê no desenvolver da obra de José Mário Branco. Vê-se a promessa e vê-se a decepção, não é tanto o processo. Isto para dizer que as soluções em geral acontecem rápido e o problema, como em quase tudo nesta vida, é a manutenção. Isto para te dizer que, para esta manutenção ser bem-sucedida, claro que têm que haver, sempre, vozes que reivindiquem esses valores, nomeadamente os valores da liberdade e do respeito interpessoal e da capacidade para termos uma sociedade mais justa e equilibrada. Que é um trabalho que vai sendo feito, não é? E, portanto, hoje, há muitas outras formas de onde a música colabora para a criação de novas sociedades e de novos valores. Eu sinto isso muito em festivais de música eletrónica, por exemplo, onde a música tem um papel fundamental. Claro que tem o seu papel lúdico e libertador, mas também é um polo onde se concentram pessoas que estão a tentar repensar o mundo, repensar a ideia de comunidade, ligar-se á natureza.

Em última análise, as pessoas podiam passar um pano por cima do que eu estou a dizer, e diziam: “Isto é tudo os malucos, new waves, que são burgueses, têm dinheiro e fazem-se passar por pobres a irem para os riachos para falar com os espíritos dos dos índios norte-americanos!” Mas há um pouco mais que isso. As utopias também têm o seu quê de infantil. É por isso que são belas. Acho que é esse lado infantil e sincero que, às vezes, luta contra um mundo de gente séria que a única coisa que faz é achar que ser sério é ser muito bem-sucedido, em cima da cabeça dos outros, a criar esquemas de manipulação, de fazer dinheiro como se não houvesse amanhã. E o que está a acontecer é que, daqui a um bocado, já não há amanhã, mesmo! Portanto, a intervenção, mais do que nunca, é necessária. Estamos numa espécie de triângulo das Bermudas, porque ninguém está a perceber bem o que se está a passar e não existem grandes soluções evidentes. Portanto, a música, às vezes, até parece que pode ser secundarizada e a ação deverá ser mais desenvolvida noutros planos. Nós vivemos numa situação especial, em Portugal, apesar destas pequenas variações, não vivemos num Estado genocida. E a Constituição é respeitada e a violência não é dos nossos maiores males, não. Temos os nossos problemas, mas, uma das coisas que é típica da nossa sociedade, é uma espécie de queixume, insatisfação. Felizmente tem mudado muito com as novas gerações! A música de intervenção é ela própria, como dizia o Sérgio Godinho: “Qualquer canção de amor é de intervenção!” Ela própria, a música, chama muitas vezes o ouvinte para a importância de coisas como o amor, a delicadeza, a compreensão dos dramas pessoais para os desajustes, para os desequilíbrios. Vemos isso muito no nosso hip hop e rap. Há sempre muita gente a cantar desajuste! E cantar o desajuste é uma forma de exaltar a esperança de que as coisas se ajustem. Portanto, é um trabalho que não tem fim, como dizia o Emanuel Kant: “A arte é uma finalidade sem fim.”



Estamos nos 50 anos do 25 de Abril. Este disco vai manter-se em destaque nas tuas próximas actuações?

Bom, eu agora estou bastante concentrado neste trabalho. Foi o disco que acabou de sair do forno. Já havia concertos marcados e começaram a aparecer mais, de facto, porque há muitas comemorações dos 50 anos do 25 de Abril. Ainda bem que o é, ainda não foram proibidas — espero que isto seja uma brincadeira e nós não tenhamos que, um dia, recordá-lo amargamente. Portanto, 25 de Abril vamos para Leiria fazer um concerto por organizado pelo nosso editor, que é de lá, o Hugo Ferreira. Depois vamos seguir por aí. Para já, vamos tocar até Julho, temos coisas marcadas para este concerto. Em Julho vamos tocar no Festival de Músicas do Mundo, em Sines. 

Vamos à essência deste álbum, à roupagem que vocês trabalharam para este projecto. Foi uma coisa que foi aparecendo organicamente durante o trabalho? 

Como contei, o contexto deste álbum já é amplo. Desde há uns cinco anos que, especialmente, o Nuno Ferreira tem feito bastantes arranjos para conseguirmos tocar e apresentar estas músicas em trio e até em quinteto. Muitos destes temas têm tido uma forma divertida, de brincadeira, mas, com José Mário Branco, é mais a forma sobre o magnífico. Imaginemos que nós somos uma banda de pub, inglesa, e pegamos no acervo, no repertório, e tentamos traduzir aquilo para a banda — foi um bocado o que aconteceu. Agora, o que eu sinto é que houve uma tentativa de uniformizar o som deste disco, os timbres, isso foi bem sucedido e ao mesmo tempo não deixa de respeitar a riqueza dos arranjos do José Mário Branco. E acho que, nesse aspecto, a tradução foi muito bem-sucedida. 

Para o futuro, vais visitar outra vez José Mário? Vai ser uma casa de visita recorrente? Ou pensas até fazer algo semelhante com outros autores?

Não. Quer dizer, eu não adivinho o futuro. Se me perguntassem há uns anos atrás se eu ia fazer um disco exclusivamente com o repertório de uma outra pessoa, de um outro compositor, cantautor, eu acharia um bocado improvável, porque a minha música, as minhas canções, para mim, sempre foram de casa. Terapia, pronto. São formas de comunicar, formas de comunicar comigo, também, de perceber, de tentar fazer um trabalho de auto-análise através de… Olha, da confissão ou da ironia, ou seja o que for. Portanto, estava sempre muito ocupado com o meu umbigo para achar que algum dia iria fazer um disco como este. Não tenho planos de começar uma carreira de intérpretes. Acho que este disco, como contei, aconteceu porque já tinha um contexto bastante amplo. Havia trabalho feito e havia empenho, e havia a sensação de que estávamos a fazer uma coisa bela, acima de tudo. E surgiu o convite. Foi uma série de circunstâncias. Até à proposta do editor, do Hugo Ferreira, não era nada que eu tivesse equacionado, sinceramente. Neste momento, estou muito feliz por isso ter acontecido. Agora sim, vou responder à tua pergunta: não está nos meus planos, portanto, dedicar-me a fazer discos enquanto intérprete. Pronto. E em equipa vencedora, não se mexe! É deixá-lo ir à sua vida e segui-lo enquanto ele me solicitar, cantando e levando o disco, e levando estas músicas e aprendendo. Depois vou continuar com o meu habitual trabalho autoral. Estou a terminar um disquinho do meu projeto Bloom, quero ver se edito ainda este ano. Estou também a fazer um disco com os Belle Chase Hotel, já que já tivemos aí uns concertos que correram muito bem. Tivemos uma sugestão: “Porque não fazer um disco novo?” E estamos ainda às voltas com isso. Só que como estou a fazer muita coisa, ainda não me consegui dedicar a isso. Depois de terminados esses dois discos, queria ver se voltava a pegar nesse cantautor português chamado JP Simões, ver o que consigo fazer, agora, com ele depois destes anos todos arredado do meu trabalho em português. São os meus planos, para já.

Fora do disco, mas mantendo a temática da liberdade, esse cantautor, JP Simões, tem alguma coisa a deixar a este Portugal atual, esta nação à beira-mar plantada, para finalizar a entrevista? Queria aqui ser um pouco mais intimista e ir ao âmago da tua alma. Tens alguma coisa a dizer para o povo e para quem te ouve?

Ora bem, eu sempre fui um miúdo um bocado autista, sempre enfiado nos meus redemoinhos interiores. Sempre um bocado com uma sensação de desajuste. É uma questão muito pessoal — já que falamos em intimismo —, andei sempre um bocado às avessas nesta vida. Portanto, nunca fui uma pessoa muito ligada, muito atenta, por assim dizer, às minhas circunstâncias políticas. Se calhar tive a sorte de a vida nunca me ter corrido, assim, muito mal, e eu sempre fui fazendo meu trabalho e tendo o meu sustento. Não vivi na pele momentos de desigualdades e problemas gravíssimos, sempre tive pessoas próximas de mim que pude ajudar. Fi-lo. Não é uma confissão de má consciência. Muito pelo contrário, é uma confissão de uma consciência, outra, que é a minha. Sempre funcionou um bocadinho fechada em si própria, mas uma coisa é certa: para mim, por mais que eu pudesse refilar com tudo — com a condição humana, com a minha própria condição, porque é que eu nasci com mau feitio? —, sempre pude exercer esse estupor pessoal com liberdade. Tive a liberdade de me queixar, liberdade de viver autisticamente muitos, muitos anos, e gostaria que se mantivesse. Acho que toda a gente deverá ter condições de liberdade. Pensar o que quer que seja, ser o que quer que seja, sem ter que ser aferrolhado nessas vitualhas bizarras de valores tradicionalistas, castradores, moralistas, que estão a começar a aparecer. Portanto, se há altura para sair da casca, eu que nunca liguei muito aos meus surroundings políticos, sempre achei a vida partidária portuguesa uma seca despegada, uma fantochada triste, mas a verdade é que são as pessoas que temos e se a massa das pessoas não se manifestar, as coisas ainda pioram, não é?! Está na altura de voltar a pegar nas enxadas, pá, e cavar um buraco para meter essa malta toda que nos possa castrar a liberdade. A vida humana já tem problemas que cheguem na sua condição para ser vivida sem esplendor, sem liberdade, neste caso. É o que eu tenho a dizer!


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