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Texto: ReB Team
Fotografia: Arlindo Camacho
Publicado a: 19/11/2019

O cantautor deixa uma obra de valor incalculável.

Morreu José Mário Branco, um dos mais importantes autores da música portuguesa

Texto: ReB Team
Fotografia: Arlindo Camacho
Publicado a: 19/11/2019
O músico, compositor e arranjador José Mário Branco faleceu esta terça-feira, 19 de Novembro, aos 77 anos. A confirmação foi dada ao Público pela Warner Portugal, a sua editora, e por Paulo Salgado, o seu manager. Nascido no Porto, em 1942, o autor criou uma das discografias mais importantes e imponentes da música portuguesa com especial destaque para o seu trabalho em nome próprio, Seis Cantigas de Amigo (1967), Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades (1971), Margem de Certa Maneira (1973), A Mãe (1978), Ser Solidário (1982), A Noite (1985), Correspondências (1990), Ao Vivo em 1997 (1997) e Resistir É Vencer (2004), o seu último álbum de originais, mas também para as contribuições para projectos de Sérgio Godinho, Jorge Palma, José Afonso, Carlos do Carmo, Camané ou Amélia Muge. Em Maio deste ano, a Valentim de Carvalho editou Um Disco para José Mário Branco, juntando artistas como Ermo, Batida, AF Diaphra e Lavoisier, entre outros, para um “agradecimento” em forma de compilação. Em Junho de 2018, a Blitz publicou uma entrevista com JMB, conduzida por Rui Miguel Abreu, director do Rimas e Batidas. Recordem essa conversa, na íntegra, em baixo.

Sugiro que comecemos pelo óbvio. A organização deste material já tardava. Sei que há todo este pretexto dos 50 anos da sua carreira, mas porque é que acontece agora? Porque é que não decidiu há mais anos ir à procura destes inéditos e destas raridades?

Este projecto já estava pensado há muito tempo. Ainda do tempo da EMI e do David Ferreira. Não se tratou mais cedo porque havia aspectos técnicos algo difíceis. Em parte considerável este álbum duplo é possível graças a um trabalho incrível que tem sido feito por um grupo de investigadores da Universidade Nova que foram a um armazém buscar um caixote cheio de fitas antigas. Fitas gravadas em sistemas que já não existem há muito tempo. Fitas magnéticas dos formatos mais diversos, desde o quarto de polegada de 2 pistas, o standard, até quarto de polegada de 4 pistas, cassetes 4 pistas, DATs, fitas de estúdio de uma polegada e 8 pistas, fitas de estúdio de duas polegadas e 16 pistas, e até de 24. Portanto há uma grande variedade de suportes antigos que implicavam encontrar essas máquinas apropriadas. Além disso, com o passar do tempo, algumas delas em risco de degradação quase fatal.

Tiveram que ir ao forno?

Sim, tiveram que ir ao forno, algumas delas com o risco de só ser possível uma leitura e mais nada. E depois há o aspecto do tratamento digital do som em vinil, algum desse som foi tirado directamente do vinil, com a ajuda de aplicações muito recentes que oferecem a possibilidade de trabalhar os ruídos de fundo, recuperar o stereo e, digamos, os recortes do áudio de uma maneira já muito mais sofisticada. Esse trabalho essencial foi feito por esse grupo de investigadores da Universidade Nova.

Do curso de Musicologia, imagino…

Do instituto de Musicologia, sim. E depois no fim desse trabalho houve uma segunda fase que também é importante que foi a procura de uma certa uniformização e modernização do som. Do som do princípio ao fim: estamos a falar de 30 e tal anos de espaço entre a primeira faixa e a última. E esse trabalho final foi feito por Tó Pinheiro da Silva com a sua mestria habitual. O disco estava já previsto há bastante tempo, mas essas dificuldades técnicas levaram a que a coisa se fosse protelando e de facto foi esse pretexto como você diz e muito bem porque não é mais que um pretexto dos 50 anos de carreira, coisa que eu não sei bem o que seja que me levou a mim e levou a Warner também a decidirmos publicar. A única excepção foi uma obra que foi regravada agora, que é um instrumental, uma faceta menos conhecida da qual só havia uma gravação ao vivo de 1988, há 30 anos, que era de tão má qualidade… Era uma gravação de sala. Aquilo só foi tocado uma vez. E uma gravação de sala em cassete, que era só assim um documento para terem uma ideia, mas não tinha a qualidade suficiente para sair em disco. Portanto fomos para estúdio, não com os mesmos músicos de há 30 anos – um deles sim, que é o Zé Peixoto, o guitarrista -, mas digamos que os outros três instrumentos além da guitarra, que é piano, a flauta e o violoncelo, não foram os mesmos músicos que tocaram há 30 anos por razões diversas. É a única excepção. Há ainda um outro aspecto que não referi que são músicas feitas para filmes, com carácter de música incidental, portanto músicas feitas para serem ouvidas dentro da acção dos filmes e que nesses filmes são músicas que passam, que acontecem em restaurantes, em cafés, em bailes, em rádios de automóveis que passam e das quais no filme só se ouve um bocadinho. Fazem parte do cenário sonoro. Portanto não são conhecidas do público na sua integralidade. Agora vão ser.

As reedições do material dos álbuns que foram recolocadas no mercado no final do ano passado foram feitas pelo José Fortes há 20 anos e na altura acompanhou esse processo. Portanto, como me estava a dizer agora, imagino que tenha feito o mesmo com o Tó Pinheiro da Silva desta vez. Mas também sei, porque já o confessou em entrevistas, que tem uma relação difícil com ouvir-se a si mesmo e ouvir os seus próprios arquivos porque, e estou a citá-lo, o seu ouvido crítico só lhe permite captar os supostos erros do que contém essas gravações. Como é que foi esse processo desta vez? Continua com esse sentido crítico muito agudo ou melhorou com o tempo?

Há coisas neste duplo álbum que são tiradas de maquetes, por exemplo. E são coisas que só estão no duplo álbum porque estão bem tocadas e bem cantadas e bem gravadas, aliás por alguém que sabe muito do assunto, que é o Luís Martins Saraiva, não é? Portanto houve todo um trabalho… Eu posso dar um exemplo técnico, se achar adequado. “Ronda do Soldadinho”, um single meio clandestino, ou seja, não clandestino em França, mas que entrou clandestino em Portugal, em 1969, salvo erro, essa prensagem feita em França, dada a urgência e o lado completamente marginal dessa iniciativa pré-financiada por associações e organizações políticas no exílio, houve um defeito qualquer na fábrica que não foi detectado a tempo e que faz com que, sobretudo no Lado A, que é a “Ronda do Soldadinho”, versão original, se perdesse quase meio tom da descida desde o início da canção até ao fim. Houve qualquer coisa com a velocidade da gravura da matriz em que eu não reparei na altura.

Provavelmente uma máquina calibrada a uma velocidade diferente.

É um single normalíssimo de 45 rotações por minuto, mas há vários exemplares disponíveis desse single original. Essa canção baixava não totalmente mas quase um quarto de tom desde o seu início até ao fim. Ora isso foi resolvido também com aplicações modernas e só está, para responder à sua pergunta, no duplo CD que sai agora porque foi possível resolver esse problema, se não era insuportável ouvir aquilo. Depois houve uma fase em que no início nós… quer dizer, quando começámos a fazer canções, a minha geração, o Adriano, o Sérgio, eu, o Vitorino, etc., aquela geração que vem na esteira do Zeca Afonso, como tínhamos essa influência muito forte do mestre tínhamos tendência para ir à procura do estilo dele. E portanto compúnhamos muito influenciados por ele, com tessituras de voz que nem sempre estavam adaptadas à nossa tessitura. Eu, por exemplo, aos 18, 19 anos já era barítono. Nunca tive voz de tenor. Na juventude os professores costumam chamar a isso barítono tenorizante, ou seja, um barítono que, porque ainda é jovem, consegue atingir uma tessitura um pouco mais aguda que um barítono normal. Mais tarde até começou a ser mais barítono grave. E há muita coisa desse tempo, inclusive nos LPs que foram agora transportados para CD, há muita coisa que está para o meu ouvido horrorosamente semi-tonada por causa desse esforço. Nós demos um bocado cabo das gargantas com essa coisa de seguir o Zeca Afonso no aspecto da tessitura. O Adriano não, por exemplo. Porque normalmente ele chegava àquelas notas. Mas se formos a ver coisas desse tempo gravadas por mim, algumas das quais estão neste álbum, ou dessa altura gravadas pelo Sérgio, a gente repara que há uma tendência para ir para zonas muito agudas. Ora eu, mais ainda agora com o passar do tempo, tenho uma sensibilidade à afinação. Não tenho ouvido absoluto, mas tenho uma sensibilidade muito grande às questões de afinação. Quanto a mim e quando sou eu que estou a dirigir outros cantores, não é? Que vai até cerca de, em circunstâncias normais, 5% de meio tom. Portanto estamos a falar de uma coisa bem curta. Poucos Hz de detecção. Acho que é um fenómeno que tem a ver com a sensibilidade que têm os pintores e os fotógrafos e os cineastas. Tem a ver com isso. Isso é detectável nas comparações que podemos fazer entre um quadro do Vermeer e um quadro do Rembrandt. Inclusive pessoas da mesma época, qual era a sua sensibilidade… O Velásquez. A sua sensibilidade às questões da incidência da luz. E eu, meio por graça, meio a sério, costumo, nas conversas com o Tó Pinheiro quando estamos a fazer esse trabalho, dizer que estamos a tratar de meter luz na música. Porque a afinação é uma espécie de luz que entra na música.

Mais “chiaroscuro” no início e agora muito mais alta definição, por assim dizer…

Exactamente. E que tem muito a ver com as emoções.

Falemos sobre isso. Já discutiu também a ideia de que muito do seu material surgiu de encomendas, desafios muito específicos, já falou em filmes, por exemplo. Mas no início da sua carreira, e focando-nos naquele material que surge logo no primeiro CD, o do EP Cantigas de Amigo e o single da “Ronda do Soldadinho”, qual é que diria que foi o seu grande impulso criativo para lá, suponho, de querer também marcar lugar nessa tal esteira que surgiu após o José Afonso?

Eu acho que foi uma necessidade sentida muito organicamente. Estávamos no exílio, não é? E se não estivesse no exílio, estava onde estava antes, que era no contexto das lutas estudantis em Portugal contra a ditadura. Portanto, desde muito cedo ainda muito adolescente, pré-adolescente, mesmo, no Porto, onde eu cresci com um grupo de amigos, muitos de nós tínhamos já uma ligação à música como… como é que eu hei-de dizer? Depois mais tarde a gente veio a perceber que aquilo era uma forma de procurar a liberdade ou de resistir à ditadura através da expressão artística. Quando andava no Liceu D. Manuel II no Porto, tinha um grupo de amigos e fizemos um jornalinho autorizado pelo Reitor chamado Alfa e do qual só saiu um número. Aliás, curiosamente, era um jornal financiado pela Mocidade Portuguesa. Pela secção cultural da Mocidade Portuguesa. E nesse primeiro número do jornal havia um artigo de um colega de turma, que depois foi arquitecto, sobre Picasso e o Cubismo. E esse artigo era ilustrado com uma gravura que reproduzia a Guernica do Picasso. Uma coisa pequenina, mas não havia no artigo nada sobre a vida do Picasso, nem sobre as opções políticas do Picasso, nem sobre a relação do Picasso com a guerra civil espanhola… nada disso. Mas pelo simples facto de haver um artigo sobre o Picasso, o jornal foi imediatamente proibido. Portanto isto para ilustrar que, digamos, fazia parte da repressão da ditadura não nos permitir ou dificultar o contacto com a boa música, com a boa pintura, com a boa poesia, com a boa literatura em geral. E portanto quando em Paris, ’65, ’66, uma espécie de movimento político a que eu estava ligado por amizade com pessoas se desagregou porque os principais elementos vieram clandestinamente para Portugal e foram presos e depois transformou-se num enxame de grupelhos e grupinhos e pequenos caciques e não sei quê eu afastei-me. Porque eu não estava na política por razões propriamente políticas. Ou de carreira política. Nada. Nem percebo muito das questões da política. Tinha era uma certa radicalidade que me advinha não da leitura do Marx, embora eu tivesse lido Marx, ou da leitura do Lenine, vinha-me mais da relação com a música ou com a etnomusicologia, da relação com a pintura e o cinema. Eu vi muitos filmes de resistência no Cineclube do Porto quando era muito jovem. Vi teatro no Teatro Experimental do Porto quando era muito jovem. Estava muito embebido nessa noção de que falei ainda agora ou seja, a arte como um gesto livre que é… é uma coisa que nos obriga a estar em luta pela liberdade.

A editora do EP Seis Cantigas de Amigo foi a Arquivos Sonoros Portugueses do Giacometti, que também editou muito material do Fernando Lopes Graça. Conheceu-os, penso. Que memórias é que guarda dessas figuras?

O Michel Giacometti correspondi-me com ele por carta porque eu não o conheci pessoalmente. Conhecia já desde bastante novo o Fernando Lopes Graça. Ele era amigo dos pais da que seria minha mulher poucos anos depois. E lembro-me perfeitamente, nós aos sábados reuníamos em casa de uns e de outros para cantar, para mostrarmos poemas uns aos outros, para namorar, etc. Lembro-me de estar em casa da Ilse Losa e do Arménio Losa lá no Porto, cuja filha mais nova fazia parte do nosso grupo. Aquelas tardes de cantorias, dança e baile… E, já noite feita. apareceu o Lopes Graça com um disco prova, uma prova de fábrica com etiqueta branca… 33 rotações, um LP. Em casa dos Losas, onde a gente estava, com os olhos de fora, lá apareceu o Lopes-Graça a dizer “vocês têm que ouvir isto”. Então pôs no pick up onde estaria antes música de dança eventualmente, pôs no pick up esse disco e era a primeira cópia da Antologia dos Arquivos do volume que é dedicado a Trás-os-Montes.

As famosas Antologias com capas de serapilheira….

Sim, que depois sairia com esse aspecto. E nós ficámos ali a ouvir aquilo pá, às tantas começámos a chorar de emoção e não sei quê, éramos muito novinhos. E portanto com o Graça já havia essa relação pessoal. E depois, como ele era amigo dos pais da minha mulher, sempre que o Graça passava por Paris para ir à Hungria gravar para a Hungaroton, que era quem o editava na altura, ele passava sempre por nossa casa e estávamos com ele em Paris. Portanto, alguém, suponho que o Zeca Afonso, não tenho a certeza, é portador de uma fita de Paris para Portugal onde eu gravei numa gravação caseira as Cantigas de Amigo, que eram sete, e mais uma série de canções que depois vieram a aparecer nos meus primeiros discos. Tocadas à viola em casa, etc. Essa fita está hoje no espólio do Lopes Graça no Museu Verdades Faria, em Cascais. Essa malta da Universidade Nova também foi lá pescar essa fita. Depois o Michel é que me escreveu a combinar a gravação de um EP ou seja, o formato single mas com 33 rotações para caberem três faixas em cada lado. E só cabiam seis, houve uma que ficou de fora. Que é que está agora a abrir esta compilação… a partir dessa maquete, que foi encontrada em Cascais.

E qual é a história do grupo Organon? Outra pérola perdida que se recupera aqui. 

O grupo Organon foi formado na sequência do Maio de ’68. Portanto, há 50 anos. Até ao Maio de ’68, eu estava muito fechado numa concha de emigrantes portugueses e alguns africanos de Angola, Guiné, Cabo Verde, Moçambique, mas muito fechados no nosso problemazinho. No Maio de ’68, um dos aspectos foi os artistas mobilizarem-se em grupos: artistas de teatro, de música, declamadores, etc.. Mobilizarem-se em grupos para irem aos sítios, sobretudo às empresas que estavam ocupadas pelos grevistas, mas também estações de caminhos de ferro, de metro, também às escolas, também a pracetas de bairros, etc.. Estava tudo ocupado. Havia 7 milhões de operários em greve com ocupação dos locais de trabalho em França. Mobilizávamos em grupos para ir aos sítios cantar para eles e dar-lhes ânimo e distraí-los ao mesmo tempo porque era noite e dia a ocupação. Hoje fazem-se greves ficando em casa a ver a telenovela. É um bocadinho diferente. Então nesse contexto é que eu comecei a ir a sítios com outras artistas que não conhecia de lado nenhum que eram franceses, espanhóis, mas na maior parte franceses. E aí se fizeram algumas amizades e algumas cumplicidades até do plano criativo. E é dessa experiência do Maio de ’68, eu diria praticamente quase logo a seguir no Verão de ’68, que o Théâtre Gérard Philipe, em Saint-Denis, arredores, no nordeste de Paris, organiza na cave do teatro uma espécie de cabaret, todas as noites, onde uma parte dessa gente fazia um cabaret à moda antiga com os seus números. E as pessoas iam, bebiam um copo, estavam ali a assistir, a beber e a fumar… Era mais aberto e vivo do que aquela ideia do “caveau” francês do pós-guerra. Não era só canção. Havia números de stand-up de comédia, sketches de comédia, havia um grande amigo meu, que ainda é vivo, o Jean-Marie Binoche, que era mimo, fazia números de mímica. Era da escola do Jacques Lecoq, portanto uma escola bastante crítica do Marcel Marceau. Havia actores a fazer stand-up, o Patrick Morelli a dizer poemas e textos, que ele dizia muito bem. Ele é filho da Monique Morelli, cantora de canções poéticas. O Jean Saulnier apareceu também. Tinha acabado de ter no ano anterior o grande prémio da academia Charles Cros, que é o prémio maior da canção que há em França. Começou a haver ali uma identificação… e nós dissemos: “pá, isto é giro. Vamo-nos organizar em cooperativa de produção cultural”. E quase logo a seguir, talvez no ano seguinte, começámos a ter uma espécie de encomendas, lá está, a palavra encomenda, para fazer pequenos espectáculos de uma hora mais ou menos. Temáticos. E… Como é que se diz agora? Multimédia. Com pessoas a falar, pessoas a cantar, pessoas a tocar e projecções de diapositivos, uma coisa muito leve. Materialmente leve. Algumas luzes, um ecrã para os diapositivos. Eu levava uma guitarra, uma bateria, um amplificador com dois ou três microfones. Começámos a ter essas encomendas de espectáculos temáticos. Em ’71, portanto três anos depois do Maio de ’68, foi o centenário da comuna de Paris. Esses espectáculos rodavam nos campos de férias dos maiores sindicatos franceses. Sobretudo da EDF, que era a EDP lá do sítio, e da SNCF, que era a CP lá do sítio. E tinham muitos campos de férias pela França toda. Praia, lagos e montanhas. Mas centenas de campos de férias familiares. Com estruturas de apoio, com cozinhas, com refeitórios, com tendas familiares, etc. Nos Verões a gente fazia para aí 80, 90 espectáculos. Andávamos 100 quilómetros fazíamos outra vez, andávamos 100 quilómetros fazíamos outra vez. Encomendados pelos sindicatos. Este disquinho do Organon foi uma ideia: “Porque é que não vamos registar isto num disco?”

Ia-lhe perguntar: canta a canção de um proscrito em 1871, mas na verdade sentia-se também um proscrito nessa altura. Portanto estava a cantar a sua própria vida?

Em parte sim. Não com aquele pessimismo porque o Eugène Chatelain, que escreve aqueles versos, é um homem muito triste e derrotado. Ele escapa por um triz à grande matança que acabou com a comuna de Paris. Ele escreve aquilo em Londres, já muito doente. E vencido. Aliás, ele diz isso nos versos. Ora o meu estado de espírito nesse tempo não era bem esse. Tinha era condições para compreender bem o estado em que estava o poeta.

Depois centrando-nos neste disco dos inéditos, o momento seguinte da discografia contém música para um filme do Leonel Brito que já o coloca do lado de cá do 25 de Abril. A esta distância de 40 anos — estávamos em 1978 –, sente que a música mudou com a revolução e com o que se seguiu à revolução de 1974? Quais foram essas transformações profundas que adivinha na sua música quando agora escuta com este olhar do conforto que a distância temporal permite?

É engraçado que a sua pergunta sugere uma questão que é importantíssima. E que foi um problema que me foi sendo posto ciclicamente. Das pessoas que acham que são os cantores e os artistas que criam as condições para a revolução. Não é assim. É o inverso. É o movimento social e o estado em que está a sociedade que faz com que apareçam obras mais assim ou obras mais assado. E nem sequer estou a falar daquela produção mais instrumental que podem ser cantigas de agitação para a rua ou coisas assim. Estou a falar em geral. Por isso eu considero – e alguém já o escreveu – que os discos que eu fui fazendo são completamente autobiográficos. Eu é que reagi à situação que estava a acontecer. Àquilo que estava a acontecer e que me estava a acontecer. Portanto seja no período anterior a ’74, que é o da resistência e o da denúncia, como por exemplo do “Perfilados de Medo”, do Alexandre O’Neill, quer dizer, quase que lembra o livro do Wilhelm Reich. Que é que nós andamos aqui a fazer para permitir esta porcaria desta sociedade em que vivemos? O que é que nós andamos a fazer? Não andamos a fazer nada. A gente é um rebanho que anda para aqui a ser levado para os sítios. Só lembra o filme do Bunuel, o Anjo Exterminador, que acaba com o rebanho a entrar para uma igreja dentro. Portanto no período do PREC é evidente que havia uma encomenda social fortíssima. Era preciso… Por exemplo, eu fiz 1100 espectáculos em dois anos. Gratuitos. Não é possível. 1100 em dois anos… três anos… Porque às vezes eram dois, três por dia. No país todo. E depois no refluxo pós-25 de Novembro de ’75, eu diria mais propriamente pós-campanha presidencial do Otelo, já em ’76, a minha obra é o testemunho desse refluxo. Seja o Ser Solidário, o FMI… A busca, como diria o Goethe, a busca de uma luz  – “mehr licht”. É por isso que o disco de ’85 – o Ser Solidário sai em ’82… – em ’85 eu faço “A Noite”. Com Antero de Quental… Há uma necessidade de regresso às bases. Sobretudo poéticas, mas também musicais.

Naquele tema, “Fuga do Mar”, as palavras são do O’Neill e eu queria que me explicasse: como é que toma a decisão, quando os seus olhos percorrem um livro, de se agarrar a um poema e decidir musicá-lo? E qual é o processo de tornar aquelas palavras também de alguma maneira suas? É como um actor quando está a ler um texto de um dramaturgo? 

É como quando um actor cria uma personagem a partir de um texto. Cria um ser humano a partir de um texto. Sim, mas é preciso pensar que nesse caso, como noutros, eu fiz a música toda do filme todo. É um filme da Noémia Delgado sobre um longo poema do O’Neill, que se chama O Ladrão do Pão, e de que esse bocadinho que aparece agora na antologia é uma pequena parte. Portanto há várias coisas ao longo do filme… lá está, mais uma encomenda. Portanto o que há é de facto uma música para filme com poucos meios. Praticamente não houve intervenções que não fosse eu. Instrumentos, voz, há um coro, acho eu, também foi à borla ao estúdio. Por isso é que eu pus lá umas notazinhas no disco para enquadrar aquilo no contexto de um filme. O filme era todo esse poema do O’Neill. A Noémia Delgado era a mulher dele, na altura já viúva dele. Acho que o O’Neill já tinha morrido quando ela fez o filme. Tenho a impressão, não tenho a certeza. Faz o filme em que o protagonista é o João Mota e diz-me e “agora mete isto tudo em música”, que é aquela contradição muito à O’Neill do pescador entre a terra e o mar. Ódio ao mar. O célebre slogan publicitário é do O’Neill, que trabalhava na publicidade. “Há mar e mar, há ir e voltar” é inventado pelo O’Neill.

Aquele inédito, o “Fim de Festa”, já traduz alguma desilusão com o que se passou a seguir…

Sim. Não é bem desilusão…

Verdade. Também há uma certa esperança ali…

É. “Vamos ver o nascer do dia ao fim da festa”. “Eu juro por quem sou que isto não vai ficar assim”. Portanto é o que diz a letra. “Dá-me um beijo e já vais ver que a festa não tem fim”. Portanto, lá está, é a longa fase de regresso às bases. O refluxo do PREC obriga-nos a meter os pés no chão e dizer assim, “pá, vocês são uns sonhadores do caraças. Não têm jeito nenhum para isto. Houve aqui alguém que se enganou”. Mais uma vez, uma coisa tipo Maio de ’68. Para mim foi uma espécie de repetição. E eu acho que é isso o “Fim de Festa”. Se a gente tiver valores de base, o amor, a justiça, a liberdade, essas coisas básicas que eu adquiri muito cedo, nós vamos fazendo tentativas de chegar a uma mudança da sociedade. São ensaios, historicamente falando. Como aquele cientista alemão Ehrlich, que descobriu a cura para a sífilis. Experiência Ehrlich 600 e tal. Eles numeravam as experiências. Inventou o remédio para a sífilis, mas o remédio não era bom porque tinha chumbo e matava o doente. Matava a doença e o doente. Então ele continuou a tentar até que Ehrlich 900 e não sei quantos ele descobre o remédio que cura a sífilis sem matar o doente. E a pergunta que a gente tem que fazer é: Quantas vezes é que nós já tentámos? Se formos pessimistas, nós achamos que é uma coisa tipo Sísifo. Ou seja, é uma condenação de estar a levar o penedo pela montanha acima e depois chegar quase quase lá acima e o penedo soltar-se e cair outra vez para a base e andar nisto por toda a eternidade. Mas eu tenho uma visão positiva do Mito de Sísifo. Mais positiva do que o Camus em todo o caso.

Pode dar-se a queda, mas a queda não tem que matar…

Pois, é um bocadinho oriental também. Porque é a história do Lao-tse. Da importância do passo que tu dás, que é a coisa mais importante do mundo. É este passo que vais dar agora, não é o que está lá para a frente. 

Eu reparei na ficha técnica nos nomes do Rui Novais, do José Fortes, do Tó Pinheiro da Silva. Sempre gravou com grandes técnicos de som e falava aí há pouco no seu rigor em relação à afinação. Esse rigor também se há-de ter manifestado na sua relação com o estúdio. E a minha pergunta é: fala-se muito na diferença entre o palco e o estúdio. Eu vejo semelhanças entre o palco e o teatro e o estúdio e o cinema. Vê as coisas dessa maneira? 

Sim. Está bem visto. Porque é isso: o palco é uma arte da presença, não é? Eu costumo esquematizar isto quando por vezes dou aulas e não sei quê. Esquematizar para ser bem percebido. Digamos, os estádios da criação artística… há um estádio inicial, a que eu chamo “a fase da criação não-partilhada”. Ou seja, aquela parte em estamos sozinhos a inventar uma coisa. Mesmo que sejam pequenos grupos, parcerias, é uma fase que não é partilhada. 

Egoísta, talvez…?

Não é egoísta, sabe? Eu nunca tive essa noção. A noção que eu tenho, às vezes até fisicamente, é que não sou eu que estou a fazer aquilo, que é um recado que vem de qualquer lado e para o qual eu sirvo apenas de instrumento. Isto acontece talvez quando aquilo que a gente faz é muito maior do que nós próprios. O Mozart dizia, “que pequenos somos e de que grandes coisas somos capazes”. Portanto, há essa fase da criação não-partilhada. Depois há uma segunda fase, a que eu por motivos que agora não vamos desenvolver, chamo “recriação”. Isto vem do teatro. Recriação partilhada. Que é o espectáculo ao vivo. Porque eu considero que a canção no momento em que está a ser cantada com um público num sítio é recriada, já não é bem a mesma coisa. É um processo. Tem a ver com o público que está ali. É um vaivém emocional. E depois há uma terceira que foi um problema que me puseram quando me telefonaram e disseram, “vá para o estúdio e grave o seu LP”. Eu fiquei à rasca. Como é que eu vou fixar/registar num suporte aquelas emoções que eu partilho ao vivo com o público? Como é que isto é possível? Quem é que vai ouvir este disco? Quando? Onde? Em que aparelhagem? Em que estado de espírito? Sozinho ou acompanhado? Numa boa instalação estereofónica? Num rádio de um táxi? Quer dizer, como é que eu controlo…? Não controlo. Eu não tenho controlo sobre o futuro. Portanto o que isso me obrigou foi a ser no estúdio aquilo que de facto o cineasta é nas filmagens: O representante de todos os ouvintes futuros. Assim como cineasta quando está a fazer o plano 77b, depois faz o plano 4 e depois faz o plano 150a, ele tem que ter o filme todo na cabeça. Portanto o estúdio o que é que faz? É transportar-nos para uma produção entre o artesanal e o industrial. Que ainda por cima eram na época em Paris muito caros. Os meios tecnológicos eram muito caros. O estúdio e os músicos. Era cerca de cinco ou seis vezes o custo que tinham em Portugal. Portanto obriga-me, como o cinema obriga o realizador, a uma planificação exaustiva de cada minuto de ocupação do estúdio. E isso habituou-me logo à partida a planificar tudo, deixando, porque é inevitável, uma margem que é de 10% para o imprevisto, para o erro, para a revisão da matéria dada, etc.. Aqui é que eu percebi logo no primeiro álbum a importância do técnico. Eu olhei para aquele estúdio, para aquelas aparelhagens, para aquela mesa que parecia um avião Concorde, e disse, “pá, eu não percebo nada disto. Eu só sei é de música. Quem vai fazer o som deste disco não sou eu, é este senhor que está ali”. E é um que você não nomeou, mas que foi muito importante no início da minha vida artística, chamado Gil Sallé. Foi o que gravou os meus primeiros discos, os discos que o Zeca Afonso fez comigo e os primeiros discos do Sérgio. Portanto o que é que eu fiz? A sessão de estúdio custava um balúrdio para as posses da editora que era a Sassetti, em Lisboa. “Não interessa. Vou pagar uma sessão de estúdio só para estar a conversar com o técnico. Eu tenho que ter este gajo do meu lado. E ele para estar do meu lado tem que perceber o que é que eu quero”. Portanto levei as traduções todas das letras, levei maquetes, levei a viola… Estive a conversar com ele. Expliquei-lhe as ideias para o disco. Trouxe-o para o meu lado. Ou seja, pedi-lhe para ser meu cúmplice. 

Mantendo esta analogia do cinema, ele foi o director de fotografia. 

Exactamente. É o que era o Acácio de Almeida para o João César Monteiro. É o olho. Porque um microfone de facto é um ouvido. Qualquer microfone é um ouvido. Então aquele senhor é que sabe. Esse processo aconteceu com o Zé Fortes e com o Tó Pinheiro.

Última pergunta para nos irmos embora: quais são os projectos que o vão manter ocupado durante os próximos tempos? 

Eu sou um privilegiado. Já há uns anos que eu só trabalho no que gosto. E trabalho imenso. Portanto, tenho N projectos que estão à espera que eu acabe para começar outro. Às vezes mais do que um ao mesmo tempo.

Tudo com outros artistas?

Com outros. O meu trabalho agora é dirigir os outros. E fazer música/compor para os outros. Pode ser que eu volte a cantar em palco. Nunca foi a parte que eu gostei mais, é engraçado. Mas pronto, pode acontecer que eu volte aos palcos. Agora não sei muito bem o que é que hei-de dizer. O estado em que esta porcaria está. Aquilo que a gente falava ainda agora, de ser tudo muito autobiográfico, esta coisa podre em que a gente vive agora, este mundo tão feio em que a gente vive agora, faz com que eu não me sinta bem a ir para o palco cantar aquelas coisas do costume, a “Inquietação”, “Eu Vim de Longe”, “Queixa das almas jovens censuradas”, e as pessoas a acenderem isqueiros, e agora acendem telemóveis e a cantar aquilo comigo. Eu não me sinto bem. Tem que haver outra coisa que eventualmente irá aparecer e eu volto para palco. Isso não está em causa. É uma espécie de falta de assunto. “As tuas canções são tão boas, a gente gosta tanto”. Então ouçam os discos. Estão aí os discos.

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