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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 24/04/2024

Lugar invisível e inatingível.

Steve Lehman (Sélébéyone): “Vemos a música e o processo criativo como uma expressão valiosa da espiritualidade”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 24/04/2024

Assumidamente como um colectivo, respondendo directo como Sélébéyone, nome que significa uma intersecção, remete ao lugar liminar onde duas entidades concretas se encontram e se transformam em algo até então desconhecido. Palavra da língua wolof, o grupo étnico da costa mais ocidental de África, além da geografia política de países englobando Senegal, Gâmbia, Mauritânia, Guiné-Bissau e Mali. É a lingua nativa de Gaston Bandimic, um dos dois mestres de cerimónia (MC) que justapostos às duas vozes de saxofone Steve Lehman (alto) e Maciek Lasserre (soprano) no ritmo de Damion Reid (bateria).

É uma formação que desbrava um campo que se revela ao cruzar linguagens vindas do jazz, rap e da electrónica. Num espaço invisível, definido devido às intersecções resultantes da investigação de fronteiras, marca permanente da música de Lehman. Depois da primeira e marcante presença em 2017 no Festival Jazz em Agosto, apresentam-se este sábado, dia 27 abril às 19h30, no Teatro do Bairro Alto (Lisboa). 

Fomos querer saber mais, junto das palavras directas de Steve Lehman. A dimensão, significado e mais do propósito da música que praticam, além da expressiva oralidade escutada das vozes faladas e sopradas.



Podemos começar por um início mais longínquo? O primeiro contacto com a tua música, certamente para alguns em Portugal, foi aquele concerto em Coimbra, em 2003, com o Camouflage Trio, que viria a dar origem ao disco Interface, uma estreia no catálogo da Clean Feed, que também se iniciava como editora. Nessa altura, revelaram-se ideias e possíveis caminhos que a vossa música viria a solidificar mais tarde, como hoje, com Sélébéyone. Ouvindo Interface, um disco com 20 anos, que efeito tem nos dias que correm?

Sim, é uma recordação muito agradável. Foi uma emoção fazer digressões e gravar com Mark Dresser e Pheeroan akLaff. E estou eternamente grato ao Pedro Costa e ao Rodrigo Amado por terem sido dos primeiros defensores da minha música na Europa. Eu tinha 24 anos quando gravámos esse disco. Portanto, estava a começar em muitos aspectos, como referes. Talvez não me caiba a mim dizê-lo, mas penso que se pode certamente identificar certas ideias musicais sobre a estrutura composicional e o conceito de saxofone alto, que permanecem presentes até hoje em projectos como Sélébéyone. A Clean Feed reeditou a gravação em vinil há alguns anos.

Bill Evans disse uma vez que “o jazz é uma forma de fazer música. Não é música”. Hoje em dia, cada vez mais, e eu diria ainda bem, é uma música difícil de rotular. Achas que isso é um sinal de maior influência entre formas de a fazer, em linguagens ou estilos, ou apenas algo inevitável?

Bem, acho que há uma resposta muito complexa nisso. Para mim, o termo “jazz” evoca um enorme sentido de agência pessoal e também uma enorme ênfase na arte musical, entre outras coisas. Por isso, faz sentido para mim que se possa manifestar de muitas formas diferentes e a partir de uma grande variedade de perspectivas. Dito isto, há também quem se identifique com o termo “jazz” devido a um certo capital cultural que ele proporciona, mesmo nos casos em que a estética musical e as prioridades são difíceis de conciliar com qualquer tipo de precedente histórico ligado ao jazz.

Parece quase inevitável que Sélébéyone seja visto como o fecho do círculo, reunindo estéticas aparentemente tão díspares como o jazz e o rap na cultura hip hop. Qual é a vossa leitura enquanto coletivo a partir da vossa expressão musical?

Não posso falar por todos os cinco membros do grupo. Mas, em geral, penso que todos partilhamos um sentimento de gratidão pela oportunidade de continuarmos a trabalhar juntos e de termos descoberto uma estética de grupo que é muito distinta.

Em 2016 apresentaram-se com o disco epónimo Steve Lehman & Sélébéyone, um colectivo que ousou linguagens a quebrar estéticas musicais. Mais recente, mais seguro e sólido é o vosso segundo álbum Xaybu: The Unseen lançado em 2022. O facto de agora se chamarem apenas Sélébéyone é um sinal da vossa afirmação como coletivo, como entidade criativa, ou o nome Lehman era necessário como segurança de afirmação que agora parece menos necessária?

Sim, sempre fomos um colectivo. Mas, para o primeiro disco, foi acordado que a música teria mais exposição e chegaria a mais ouvintes se estivesse associada ao meu nome e ao meu catálogo de gravações, a editora Pi Recordings.

A estrutura musical, operacional e criativa de Sélébéyone mantém-se quase inalterada entre os discos de 2016 e 2022, com dois MCs (Hprizm e Gaston Bandimic), dois saxofones (Steve Lehman e Maciek Lasserre), baixo com Drew Gress e bateria com Damion Reid. Sentem-se mais cúmplices, mais coesos e afirmativos com a música e consequente intervenção que estão a fazer hoje?

Bem, de facto, Xaybu não inclui baixo ao vivo (Drew Gress) nem teclados (Carlos Homs) como no primeiro álbum. Já tínhamos actuado em vários festivais, como o North Sea e o Molde Jazz, com essa configuração e sentimos que isso nos dava uma maior coesão e flexibilidade em certos aspectos da música.

Ao ouvir Xaybu, logo a partir da segunda faixa “Djibril”, escuta-se o realizador senegalês Djibril Diop Mambéty referir-se ao seu processo criativo, que também partilham, com frases inspiradoras como “Sempre que quiseres ver a luz, tens de fechar os olhos”. Que mais podes dizer sobre a vossa ética em Sélébéyone para ficarmos “iluminados”?

É difícil falar sobre isso de uma forma que pareça apropriada. Penso que todos nós os cinco vemos a música e o processo criativo como uma expressão valiosa da espiritualidade. E espero que isso transpareça na música.

A linguagem assumidamente bilingue entre o inglês e o wolof, expressão natural das palavras nativas dos dois MCs Hprizm e Gaston Bandimic, é certamente mais do que isso na vossa música. É a coabitação no mesmo espaço musical de culturas que se devem interligar sem perder a sua matriz identitária?

Acho que faz sentido ver a justaposição de línguas como um símbolo de forças maiores na música. Mas, na verdade, não é algo que tenhamos discutido muito. Gaston e Hprizm encontraram rapidamente uma forma complementar de trabalhar em conjunto quando nos reunimos pela primeira vez em 2016, e temos sido muito afortunados a esse respeito.

Há centenas de anos que Lisboa é um porto cultural de chegada, entre África e a América, uma porta de entrada entre culturas na entrada sul da Europa. De porto de escravos a porto de migrantes, digamos que hoje bem mais livres nas suas rotas. Sentes que a vossa música também faz parte de um lugar de migração cultural e que a sua chegada ao palco do TBA em Lisboa é uma expressão cheia de significado?

Bem, as histórias que descreves são muito complexas e penso que estamos bem cientes delas enquanto grupo. Estamos muito orgulhosos do nosso trabalho em conjunto, mas também reconhecemos que a nossa capacidade de trabalhar em conjunto, de conversar em francês e inglês e de colaborar da forma como o fazemos, é uma espécie de bi-produto cultural de uma história de colonização muito brutal e traumática. Estamos muito gratos por ter esta oportunidade de regressar a Lisboa e, acima de tudo, esperamos que todos os que assistirem ao concerto encontrem na música algo com que se possam identificar e relacionar.

E vocês vão precisamente dar um concerto num país que celebra o 50º aniversário da queda de uma ditadura e a consequente libertação dos territórios, como novos países, que até então tinham sido colónias do império. Hoje em dia, há uma abordagem emergente a um processo não resolvido relacionado com a descolonização cultural em países como Portugal, que acumularam discursos culturais abusivos enraizados nessa herança colonial. Haverá todo um propósito em terem sido convidados para estar neste palco este ano pelo músico e programador Yaw Tembe. Até que ponto podemos esperar que a vossa atuação em Lisboa seja enquadrada e ajustada à realidade em que vivemos? 

Até agora, não sabia que Yaw Tembe era o responsável pelo nosso convite. É sempre uma honra ser reconhecido por um par e um colega que trabalha no domínio da música criativa.


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