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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 25/01/2023

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #114: Rão Kyao

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 25/01/2023

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.



[Rão Kyao] Malpertuis (Edições Valentim de Carvalho)

Em 2005, antecipando criativamente a participação de Rão Kyao no evento LX Taster da Red Bull Music Academy, que aconteceu em 2009 e em que o veterano músico apresentou uma palestra sobre a sua carreira –, alguns nomes-chave da cena musical de Lisboa (e não só…) passaram uma tarde num estúdio dessa mesma cidade a transformar a sua clássica peça “Zau” em matéria de pista. Esse tema fechava originalmente o lado A de Malpertuis, álbum que Rão Kyao lançou em 1976 e que agora volta a estar disponível graças a um relançamento em vinil por parte da Valentim de Carvalho, a editora original desse histórico registo (que continua a nunca ter sido disponibilizado em CD). Nesse ano de 2009, foi também prensado um maxi promocional (limitado a 200 exemplares numerados) contendo remisturas ou re-edits identificadas como “Fusionlab Remix” (projecto de RIOT e João Barbosa; ou Lil Jon, hoje conhecido como Branko), “Daz-I-Kue Relick” (criada pelo membro dos Bugz in the Attic), “Cat’s Bubble Clap Remix” (que se presume, tendo em conta o auto-colante da capa, ter sido assinada por Rui Gato, aka Elastic Void) e ainda “Ka§par’s Lusophonetic Refunk” (da responsabilidade de Ka§par). Os créditos no já mencionado autocolante de capa listavam ainda os nomes de João Gomes e Francisco Rebelo (teclista e baixista dos Cool Hipnoise e Spaceboys, hoje companheiros de aventura em Orelha Negra e Fogo Fogo), Miguel Cardona (dos Coldfinger), Miguel Guia (Loopless) e DJ Kronic (então parte do colectivo Raska) – provavelmente terão trabalhado como músicos de sessão nas diferentes versões de “Zau” reunidas nesse maxi. Esse registo (que continua ausente do site de referência Discogs) documentava o interesse do que era então uma guarda avançada da modernidade mais electrónica e dançante pelo pioneiro trabalho de Rão Kyao. 

O saxofonista foi para estúdio em 1976 com o contrabaixista e baixista José Eduardo, o baterista Joãozinho “Oiã” (de que se conhece apenas, além desta, participação no álbum Discretamente de Very Nice lançado no ano seguinte), o pianista Tony Pinho da Silva (aka António Pinho Vargas) e o percussionista e vocalista Very Nice (aka Fernando Girão). Juntos, numa sessão de três dias registada entre 17 e 19 de Maio de 1976, tendo na mesa de mistura o mítico técnico de som Hugo Ribeiro, estes cinco músicos criaram aquele que se acredita ser o primeiro álbum de jazz gravado por músicos portugueses (antes disto, talvez só o hoje bem valorizado EP dos Bossa Jazz 3 do pianista brasileiro, à época residente em Lisboa, Marcos Resende, do baterista Paulo Gil e do contrabaixista Manuel Barbosa possa ser ponderado para tal distinção).



No texto que assina para a Jazz.Pt, Gonçalo Falcão devota algum espaço a rebater a teoria de João Moreira Santos de que serão de Domingos Vilaça os primeiros registos de jazz gravados em solo nacional. De facto, essas incipientes e (se usada alguma condescendência nos classificativos) pioneiras experiências merecerão tanto o rótulo de “jazz” quanto outras maioritariamente imberbes aventuras de jovens equipados com guitarras eléctricas compradas a prestações nos anos 60 serão dignas de serem encaradas como “rock and roll”: nem Vilaça chegou sequer a vislumbrar de longe os segredos do swing, nem os “conjuntos académicos” que tocavam pálidas cópias dos Shadows nos bailes, vulgo concursos de ié-ié, vigiados atentamente pelo moralista Movimento Nacional Feminino, chegavam sequer perto do rock and roll que nas mãos de Fats Domino, Little Richard ou Chuck Berry tresandava a sexo, suor e revolução. O 25 de Abril de 1974, entre tantas outras coisas importantes, logrou livrar os mais jovens da obrigação de combaterem no Ultramar, serviu para sacudir o bafiento moralismo salazarento e ainda para injectar desafiante electricidade nas veias de uma geração que pouco tardaria a afirmar que havia que violentar o sistema. Tomar liberdades com o tempo rítmico também só parece ter sido realmente possível depois da Revolução dos Cravos. E por tudo isso, eis que, chegado a 1976, Portugal estava então preparado para swingar na direcção certa, contando para isso com um quinteto liderado por um saxofonista e flautista com sede de mundo.

Comecemos então por “Zau”, tema com cadência tropical (outra forma de swing…) guiado por uma breve e repetitiva frase de Zé Eduardo em baixo eléctrico e por chamamentos xamânicos de Very Nice sobre os quais Rão Kyao dispõe um muito moderno discurso em cujo amplo léxico cabem a dissonância, mas também os uníssonos com o motivo vocal, sempre com grande groove a ditar a intensidade da entrega. Não tenho certeza de se tratar de homenagem ao mesmo Filipe Zau que nos deu logo em 74 uma fantástica “Revolução Guerrilheira“, mas o balanço desta peça aponta senão para África, então pelo menos para uma ideia desse mesmo continente nascida das lutas de libertação. O arranque do álbum é, no entanto, bem mais tranquilo. “Almada” começa em jeito baladeiro, com o poético soprar de Rão a brilhar por cima do rendilhado pianístico de “Tony Pinho”. O tema de mais de oito minutos, ganha, porém, maior propulsão por volta da marca do minuto e meio, quando um riff no saxofone transporta toda a gente para o meio de um furacão bop em que o piano exibe destreza convidando depois a solos de saxofone, contrabaixo e bateria, todos eles indiciadores do alto calibre dos músicos ali reunidos. Segue-se depois uma belíssima “Balada” que deixa entrever o tipo de música que haveria de trazer notoriedade a Pinho Vargas, mas que também, ao mostrar pela primeira vez Rão como meditativo flautista, permite vislumbrar os futuros caminhos que o músico haveria de trilhar quando trocou definitivamente o instrumento com que fez Fado Bailado pelo que o colocou no primeiro lugar dos tops em Estrada da Luz, antecipando em décadas uma opção que hoje estamos a ver Shabaka Hutchings a tomar também, uma vez que o músico britânico já fez saber que este será o último ano em que o ouvirão tocar saxofone.

Virado o disco, é caso para dizer que não toca o mesmo. O lado B começa com o tema que dá título ao álbum, “Malpertuis” (que certamente referencia a homónima novela de terror gótico do escritor belga Jean Ray, como bem nos ensina a Wikipedia…), peça mais eléctrica em que Tony exibe dotes “fusionistas” no Fender Rhodes e Zé Eduardo também se liga à corrente. E aí, Rão surge estridente, certamente sob os efeitos do guisado de bruxas cozinhado por Miles Davis na primeira metade da década de 70, mostrando ser capaz de tocar as estrelas em estilo absolutamente livre enquanto troca gritos com Girão. O álbum fecha com “Líbano”, peça que já mostra o viajante de terras distantes em que Rão Kyao se tornaria nos anos seguintes, ele que haveria de gravar peças que são hoje verdadeiras amostras do lado mais aventureiro da nossa década de 70, como Bambu (disco de 1977 que inclui uma tocante “Homenagem a J.C.” que não é referência ao profeta nascido em Belém, antes ao outro profeta que veio ao mundo em Hamlet, Carolina do Norte) e Goa (disco de 1979 em que volta a fazer vénia a outro grande nome do jazz, Yusef Lateef, que como ele também foi saxofonista e flautista). Esses dois álbuns, diga-se já agora, também mereceriam relançamento, tal como, aliás, boa parte da abundante discografia que Rão Kyao espalhou pela década de 80, incluindo o álbum que guardou para memória futura a sua performance no Festival de Jazz de Cascais de 1980 à frente de um trio de músicos britânicos – Erica Howard (contrabaixista), Alan Clare (bateria) e Mike Carr (pianista e irmão do trompetista Ian Carr).

Este é um dos arranques de uma história (e o segundo Blackground do Duo Ouro Negro poderá ser outro…) que ainda hoje se desenrola na Lisboa multicultural que abraça o Martim Moniz e dança no Cais do Sodré. E em 2009 alguns bravos agitadores das nossas pistas já sabiam que “Zau” era ideia com futuro. Que é só, como Rão Kyao tão bem provou em 1976, o mais importante tempo do jazz.

PS: O início deste artigo foi alterado após esclarecimento de Miguel Bello, aka Mike Stellar, sobre a data de criação do maxi de re-edits de Zau, que data de 2005 e não de 2009, como erradamente mencionado na primeira versão do texto.

 


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