pub

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 21/04/2022

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #94: Especial International Anthem

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 21/04/2022

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.



[Alabaster DePlume] GOLD

Alabster DePlume soa como um saxofonista que não faz questão de usar assim tanto o seu saxofone, como um poeta que não se preocupa muito com as palavras e como um guru que só quer converter-se a si mesmo. Em Novembro passado, no concerto que presenciámos no Super Sonic Jazz Festival de Amesterdão (e que depois foi de alguma forma replicado na sua passagem pela recente edição do Tremor) tivemos a possibilidade de escutar uma espécie de antestreia do novíssimo GOLD, que acaba de ser lançado pela International Anthem. E escrevemos:

“Alabaster DePlume, aka Gus Fairbairn, fez-se acompanhar de uma baterista que na verdade cantou mais do que tocou, de dois guitarristas e de uma violinista. O grupo, um verdadeiro arco-íris humano, com duas mulheres, uma delas negra, um asiático e um latino, expressa de forma clara a visão positiva e inclusiva que o poeta-saxofonista de Manchester tem da vida. Músico auto-didacta, de Plume toca o seu tenor numa estranha posição, quase horizontal, isto, claro, quando não nos desarma com o seu humor desbragado que é, quando se pensa nisso, uma mordaz forma de comentar o mundo e de vincar uma posição política. Como quando disse: “Queria combater fascistas, mas zanguei-me com outras pessoas que diziam combater fascistas, e por isso fui antes para o Facebook protestar com outras pessoas que queriam combater o fascismo. Eu queria combater fascistas, mas quando me deu vontade outra vez… já era tarde”.

No palco, sobretudo quando adopta certas expressões, Alabaster parece a reencarnação de Johnny Rotten, com um esgar algo alucinado, mas vestido como um turista ocidental (ou acidental…) que acaba de regressar de Katmandu. Mas, por baixo do humor, ou ao seu lado já que essa parte é importante na sua arte, há música séria, que combina uma abordagem oblíqua ao jazz e uma tonalidade folk sustentada pelo rendilhado das guitarras, as harmonias vocais quase zen e os floreados elegantes e subtis no violino”.

O que então mostrou em palco, confirma-se agora em estúdio. GOLD foi gravado ao longo de duas semanas de sessões no Total Refreshment Centre, em Londres em 2020, seguindo um método muito particular e “experimental” na verdadeira acepção da palavra: por um lado, os 21 músicos convidados – entre eles conhecidas figuras da cena britânica como Sarathy Korwar, Tom Skinner (Sons of Kemet, entre vários outros projectos), Tom Herbert ou Danalogue (The Comet is Coming) – não tiveram tempo para ensaiar e foram obrigados a gravar imediatamente após ouvirem as bases preparadas por DePlume; por outro, o ego e o tecnicismo foram removidos da equação, privilegiando o artista a emoção primal ao impedir os músicos de escutar o que tinham gravado “a quente” – dessa forma ninguém pode dizer algo como “põe a gravar de novo que sou capaz de fazer melhor”.

As sessões gravadas com uma referência metronómica foram depois organizadas com um “mapa” feito de linhas desenhadas num longo rolo de papel que representavam as diferentes fitas analógicas usadas. Nessas linhas, Alabaster DePlume desenhou quadrados, pontos e triângulos de diferentes cores – vermelho a representar fogo, côr-de-rosa para beleza e azul para respiração – que ditaram a direcção dos arranjos para cada peça. Essa forma de notação gráfica – que surge representada no artwork deste álbum – poderá, aliás, vir a ser exibida numa galeria de arte. Faz total sentido, claro.

To Cy & Lee: Instrumentals Vol. 1 foi o trabalho com que Alabaster DePlume se estreou no catálogo da editora de Chicago, um conjunto de tranquilos instrumentais desenvolvidos com as duas pessoas citadas no título, ambas com incapacidade auditiva, enquanto trabalhava numa instituição em Manchester, de onde é originário. E isso já nos diz muito da abordagem de DePlume à arte: ele acredita não apenas nos efeitos curativos da música, mas na sua infinita e universal capacidade de comunicar. Foi aliás nessa capacidade que o músico e compositor confiou ao entregar à emoção – e não a convenções técnicas ou estéticas – a missão de tornar comunicantes as diferentes contribuições de músicos que não se escutaram uns aos outros quando gravaram.

Este é, portanto, um álbum profundamente emotivo. E poético. E filosófico. E até político. Em “I’m Good at Not Crying”, enquanto vozes harmonizadas parecem transportar a música até à ilha paradisíaca de Eden Ahbez, o poeta-saxofonista entoa “I’m good at not eating / Good at not sleeping, much / I’m good at not being the bad guy / The bad guy / I am good at not needing /I’m good at not crying”, num pungente e honesto auto-retrato pontuado por um saxophone que parece fazer o contrário do que diz o poeta, chorando por cima de uma cacofónica base, com diferentes vozes a soarem ultra-processadas. E na confessional “I Will Not be Safe”, Alabaster parece chegar-nos ao mais fundo e tocar-nos no âmago com palavras que são tão capazes de ferir como de curar: “I will not be safe/ Love is not safe/ Courage is not safe/ I have the greatest gift of all to give/ It’s my love/ It’s the best thing in the world/ And even though it doеsn’t need to be receivеd/ For it to be so great/ I will not be sheltered, even by this fact/ I will not choose cynicism/ Or take it up on its delicious, bitter offer/ That is so comforting and familiar/ And final and fatalistic/ I won’t need any promises nor denials/ I do not have the answer/ I won’t compose an ending to defend myself from blistering rays of hope/ And I won’t hide behind a matchstick of a sweet little word, either/ I will be naked like water/ It’s the worst place to be/ It’s the best place to be/ It’s where we are anyway/ I will be there, I am there/ I will be”. E se isto não vos cortar a respiração, por favor sintam os vossos pulsos – talvez não estejam tão vivos como possam pensar.

E depois, em “Broken Like”, temos uma boa demonstração do saxofonismo de DePlume: frases curtas, como quem respira sofregamente, mas plenas de alma, com tom nobre e absolutamente desinteressado. Alabaster soa como alguém que só escolheu o saxofone tenor porque esse foi o único instrumento que conseguiu encontrar. E ainda assim, nas palavras que sussurra, nas frases que sopra, há tanto, mas tanto ouro.



[Jamire Williams] But Only After You Have Suffered

Quando se procuram fichas em que o baterista e produtor Jamire Williams tenha sido creditado, cruzamo-nos com nomes como os de Virgil Abloh e Serpentwithfeet, Carlos Niño, Sam Gendel, The Gaslamp Killer, Moses Sumney ou José James e Jeff Parker (e isto se quisermos desenrolar só o novelo de 2021 e 2020). Perfeitamente natural, por isso mesmo, perceber que no seu excelente But Only After You Have Suffered há contributos de músicos como Jason Moran, Chassol ou Brandon “Eugene” Owens e ainda de MCs e vocalistas como Zeroh, Fat Tony ou Mic Holden — ele é, afinal de contas, um criativo dotado de grandes contactos. E essa complexa e variada rede de relações é usada da melhor forma num álbum que soa orgânico e experimental, denso e atmosférico, soturno e sofisticado. Cabe muita música no universo que Williams aqui desenha: desde logo o hip hop, cuja ética sampladélica lhe guia os passos, mas também a inventividade melódica do r&b, a ampla liberdade criativa do jazz, a profundidade textural da música electrónica e até as margens mais aventureiras de alguma pop mais avançada, como se Frank Ocean, Four Tet, J Dilla e Kate Bush se fechassem num quarto com um trio de jazz e resolvessem fazer um álbum. Em “Pause in His Presence” a voz tranquilamente operática de Lisa E. Harris sobrevoa um puzzle aural urdido por Jamire Williams e a que o saxofonista Sam Gendel também dá o seu válido contributo ao criar um oblíquo e abstracto solo que parece chegar directamente das entranhas da terra, cavernoso e obscuro. Um bom indicativo do complexo trabalho aqui apresentado que surpreende até quando se conferem os minutos que totalizam as suas 12 faixas: é que com pouco mais de meia hora de duração, But Only After You Have Suffered parece condensar ideias, musicais e poéticas, capazes de sustentarem obras de muito maior fôlego.



[Jeremiah Chiu & Marta Sofia Honer] Recordings from the Åland Islands

Foi em 2017 que Jeremiah Chiu & Marta Sofia Honer viajaram juntos para as ilhas Åland (um arquipélago com cerca de 6.500 ilhas) no Mar Báltico entre a Suécia e a Finlândia. Tinham a intenção de ajudarem Jannika e Sage Reed, mãe e filha e suas amigas, a abrirem uma pequena estalagem em Kumlinge, um lugar distante que conta apenas 320 habitantes. A ideia era estabelecer o pequeno hotel como lugar ideal para receber residências artísticas. Não demorou para que Jeremiah Chiu e Marta Sofia Honer se apaixonassem pelo lugar e o quisessem “retratar” na sua música.

Chiu e Honer são membros activos do lado mais exploratório da cena musical de Chicago. O primeiro usa sobretudo síntese modular nas suas obras e a segunda é conhecida pelo som da sua viola d’arco (que já se fez sentir em trabalhos de Fleet Foxes ou Beyoncé e Angel Olsen). E é da fusão desses dois instrumentos com gravações de campo que emerge a espectral imagem que nos é apresentada em Recordings from the Åland Islands, um pedaço de moderna “exótica” que tem raízes nalgumas das experiências do incontornável Jon Hassell, uma new age tranquila tão líquida como as águas que banham as pequenas ilhas por onde vaguearam. Mas esta está longe de ser música descartável para um qualquer segundo plano, música de fundo para actividades mundanas ou muzak para elevadores e salas de espera. Pelo contrário: é uma espécie de lugar paradisíaco aural tão misterioso quanto atraente e que se quer visitar repetidamente.

Todos estes discos estão disponíveis na Jazz Messengers Lisboa.

pub

Últimos da categoria: Notas Azuis

RBTV

Últimos artigos