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Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 19/04/2022

A arte que corre para a água.

Tremor’22: o lembrete anual de que música é vida

Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 19/04/2022

Comecemos pelo fim. Domingo, 10 de Abril. No Arquipélago – Centro de Artes Contemporâneas, na Ribeira Grande, as estruturas (aquelas que se aguentaram herculeamente de pé depois do furacão Príncipe ter lá passado umas noites antes) eram retiradas para dar lugar ao vazio – algo que, no campo das artes mais do que em qualquer outro, significa a possibilidade de abrir-se ao novo. 

Ainda com cinco dias de Tremor em processamento, o tempo de espera antes do voo de regresso ao continente permitiu a vistoria das exposições Chorinho Feliz (destaque para a pintura – a giz e tinta de ardósia sobre PVC – de um dos momentos do videoclipe de “Eu Não Vou Chorar”) e A água corre para o mar, esta última um encontro “entre os alunos, professores, funcionários e famílias das escolas de Rabo de Peixe e da Maia e a realizadora Cláudia Varejão”. Na folha de sala, a realizadora de Amor Fati (2020) escrevia: “A água lembra-nos que as coisas não são só o que aparentam ser, são também aquilo em que as tornamos. E têm a função de nos despertar, assim como a arte”. E fez-se o clique: o Tremor é amor, sim, como nunca é demais repetir, mas também é incitação à metamorfose (ou seja, a como uma pessoa se vê, se reflecte e se questiona depois do impacto com a ilha através da lente de quem a pensa desta forma tão especial – e isto aplica-se a cada um dos que se vê inserido na roda-viva que é o festival, esteja enquanto espectador, artista, etc.). 

Quando entrámos no Coliseu Micaelense para assistir ao primeiro concerto da nona edição, o verbo “transformar” voltou à baila para ouvirmos um MEIA RIBA KALXA, “algo que continua em transformação”, palavras do próprio autor atiradas de cima do palco, a serem projectadas bem longe das margens do sítio onde começou a (des)construir essa linguagem que é a “sintranagem”. O conteúdo e a forma de Tristany não se perderam neste lugar a que chamou “paraíso”, conduzindo aqueles que acederam ao seu convite na escuta de mantras que tiveram tanto de hipnótico como de relaxante. 

Um relaxe que viria algum tempo depois com outro peso logo ali a poucos metros, na Garagem Antiga Varela, por parte dos quenianos DUMA, naquele que seria um dos sítios mais dados ao desafio mas também à dança e às energias que se poderão dizer revolucionárias – nos dias seguintes fomos das poderosas Trypas Corassão às avassaladoras As Docinhas; no primeiro caso o grupo formado por duas brasileiras sediadas em Lisboa, Cigarra e Tita Maravilha, levou a sério o lema “tomara que se engasguem” para a frente com música de dança com ruído (+ performance) para dar na cara com propriedade, enquanto no segundo… o melhor é mesmo aproveitarem a próxima actuação da banda para serem atropelados (as palavras e uma série de cliques no YouTube não fazem jus…).

Por falar no Brasil (e porque já perceberam que nem sempre seguimos uma ordem cronológica e linear – afinal de contas, tudo se parece mais com uma visão ou um sonho do que com a realidade), uma pequena pausa para Sessa e Rodrigo Amarante. O belíssimo Auditório Luís de Camões recebeu o mais jovem no final de tarde do último dia para uma apresentação adiada – já constava do anúncio para a edição de 2020 – para uma deslumbrante exibição de argumentos que o colocam enquanto figura de destaque de novos representantes da MPB (mesmo que canalize muito do ADN dos mais antigos). Grandeza, o seu álbum de estreia, de 2019, foi a parte de leão do alinhamento, embalando a plateia com arranjos minimalistas mas ricos em pormenores (tanto na instrumentação como nas letras) e dando um ar de graça do seu próximo trabalho – “Gostar do Mundo” soou tão bem em Ponta Delgada como soa na versão de estúdio. Se as canções não chegassem, uma das várias vezes em que se dirigiu ao público resumiu a sua ideologia musical: “A música é o melhor lembrete da vida”. Podem passar a mensagem. 

De Rodrigo Amarante, que estará hoje perante uma sala esgotada na capital portuguesa, já só se pode esperar muito. Não nos deu tudo (quem foi a achar que seria uma apresentação do seu mais recente álbum, Drama, saiu de lá defraudado), mas ofereceu-nos temas de Cavalo (porra, “Irene” é mesmo uma das melhores músicas escritas e cantadas em português dos últimos 10 anos) e até de Little Joy (“Evaporar” por lá surgiu), tocando ainda “aquela” (vocês sabem qual). Um Coliseu naturalmente embevecido com a intimidade e a proximidade de um artista naturalmente empático e conversador que seria sucedido pelo mais livre dos espíritos, Alabaster DePlume, umas horas depois. 



De diálogos faz-se umas das partes cruciais da identidade deste festival, o cruzamento de músicos externos com talento local. No Tremor na Estufa inaugural, a organização escolheu o Cine-Teatro Miramar, em Rabo de Peixe, para nos presentear com uma espécie de versão de Som Crescente fora da Galeria Zé dos Bois: Peter Evans a comandar os músicos da Escola de Música da terra perante uma sala cheíssima a deixar-se imbuir do espírito do jazz e da música improvisada. Uns dias depois, na exuberante Igreja do Colégio (inicialmente era para ser no exterior, mas as condições meteorológicas obrigaram a que passasse para o interior), foi a vez de Rodrigo Amado revelar a potência do seu saxofonismo com estes alunos que puderam partilhar tempo e conhecimento com duas referências maiores do jazz europeu. 

E foi em modo Tremor na Estufa, mas a 7 de Abril, que tivemos oportunidade de vivenciar um daqueles momentos que melhor costumam ficar nas fotografias de recap. E, para sermos totalmente honestos, as imagens nunca poderão fazer justiça à experiência: o tanque de água termal do Parque Terra Nostra, nas Furnas, foi “bancada” para a actuação das Cocanha, um duo que canta em occitano (um “acto político” fazê-lo, uma informação que só descobrimos mais tarde) e que trabalhou com o concorrido produtor Raül Refree (ROSALÍA, C. Tangana ou a portuguesa Lina) no seu último disco, Puput (2020). Transmutações folclóricas que se experimentam a si mesmas e provocam, em vários momentos, a vontade de bailar – e se Ikram Bouloum, que também passou pelo festival, cruzou caminhos com Pedro Mafama em estúdio há uns meses, quanto tempo até termos Bandua e Cocanha a trocarem ideias? Fica a ideia no ar. 

Regressemos ao Arquipélago antes de darmos por terminada esta aventura. Na mudança de 7 para 8 de Abril, Odete e Ece Canli expuseram o resultado da residência artística na Ribeira Grande. Duas “ilhas” musicais a carregarem as aprendizagens de uma série de dias numa terra que nem é passado nem é futuro para levar-nos até ao desconhecido – feito de elementos sonoros atirados de um Ableton Push mas também de uma flauta transversal, duas vozes, pedais e as potencialidades de um espaço que favoreceu o desenho de som imaginado por duas mentes progressistas na forma de pensarem o que pode ser uma performance musical. A banda sonora alternativa para o filme Arrival que não sabíamos que existia?

Mesmo ao lado, o abalo continuava pelas mãos da já mencionada realeza principesca, representada pelo cirúrgico DJ Danifox e o fogoso DJ Firmeza, em celebrações de 10 anos de Príncipe Discos, com o espaço a embandeirar essa festa. Se as revoluções ainda acontecem nas pistas de dança, bem que podemos agradecer a uma editora que criou espaço para que isso acontecesse. Um forte “Aguenta” para todos os que achavam que seria sol de pouca dura.

Não foi por acaso que começámos este texto pelo pós-festival: a verdade é que se torna difícil perceber que estamos isolados numa ilha quando existe tanto a acontecer e tanto para experienciar (e, não se enganem, há escolhas a fazer — umas por opção, outras forçadas), entre as maravilhas naturais e a programação cuidada daquele que é um evento que deveria estar nas listas de “1000 coisas que deve fazer antes de morrer”.

Numa edição que aconteceu com pouca distância temporal daquela que lhe antecedeu (em Setembro de 2021, e que tinha sido a primeira com alguma normalidade depois da pandemia), não foi possível sentir essa proximidade na falta de vontade de dançar, algo que parece ser intrínseco a qualquer pessoa (e há dançarinos de todas as idades) que decida entrar em modo Tremor. Não percam mais tempo:

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” target=”_blank” rel=”noreferrer noopener”>marquem já na agenda a semana que vai de 28 de Março a 1 de Abril de 2023. Os agradecimentos podem ficar para depois. 


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