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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 27/07/2022

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #103: Moor Mother / Carlos Niño & Friends

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 27/07/2022

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.



[Moor Mother] Jazz Codes / Anti

“Por causa das digressões é possível conhecer tanta gente incrível”, explica Moor Mother em entrevista concedida (e a ser publicada no Expresso) antes da sua dupla apresentação no festival Jazz em Agosto que em breve terá início na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa – já no próximos sábado, à frente dos Irreversible Entanglements, e domingo, ao lado de Nicole Mitchell. “Pude apresentar-me no Sonic City, um festival curado pelo Thurston Moore, e dei por mim no mesmo cartaz que o Joe McPhee. Pensei; ‘uau, o Joe McPhee é tão cool’. E de repente percebi que ele também me achava cool e do nada estávamos a ter uma conversa sobre poesia e a pensar no que poderíamos fazer. São coisas que guardo no coração, que eu não esqueço – esse foi um grande momento para mim. E sempre que vivo um destes grandes momentos eu aproveito para tentar ver no que dá, o que pode acontecer”.

No seu segundo álbum enquanto Moor Mother em menos de um ano – sinal inequívoco de um estado de ebulição criativa exacerbado ainda por uma série de outros projectos paralelos –, Moor Mother regista a companhia de companheiros do colectivo Irreversible Entanglements, como o saxofonista Keir Neuringer, o baterista Tcheser Holmes e o trompetista Aquiles Navarro, dos seus parceiros frequentes Nicole Mitchell, flautista, e Olof Melander, produtor, mas também de gente como o pianista Jason Moran, a harpista Mary Lattimore, a cantautora Melanie Charles, as vocalistas Orion Sun, justmadnice e Wolf Weston (dos Saint Mela), o rapper Fatboi Sharif, Kyle Kidd (dos Mourning (a) Blkstar) ou o artista e académico Thomas Stanley, fazendo eco de que, realmente, não evita, antes provoca todos estes produtivos embates de mentes.

Musicalmente pode falar-se da definição de uma visão: na particular fórmula aprimorada pela artista que também responde ao nome Camae Ayewa convivem o pulso cerrado do hip hop, a liberdade do free jazz, a sofisticação do melhor r&b, o discurso político elevado pelo movimento #BlackLivesMatter, o afrofuturismo professado pelas mais avançadas mentes afro-americanas, de Sun Ra a Greg Tate, e um fundo sentido exploratório que em determinados momentos do álbum permitem chegar a território talvez raramente cartografado.

Liricamente, Moor Mother não terá grande paralelo actualmente. Se por um lado o seu discurso parece ter sido moldado pelas mais aventureiras passagens de alguém como Saul Williams, por outro nota-se na gestão silábica a influência dos melhores rappers, mas também se sabe que na caneta de Ayewa se sentem ecos das mais fundas vibrações da visionária poesia afro-americana, de Amiri Baraka a June Jordan, de Margaret Walker a Gil Scott-Heron.

“Woody Shaw elevator outta town
Fire music, brass halo, chunky fries
Rice and beans, double fried
Skins and brushes, glass and crash
Baraka time calls upside the head of a Eastman School
And the wrong hands, and the wrong hands, and the wrong hands
Must be left, must be used up American rag
Jasm copyright, inferno tent city
Skid Row, San Francisco rag
Laid and live
Big Bang guns, Texas parish rag, fire music
Gut cold, mind cave body lung feral
Woody Shaw elevator outta town
Fallout ratios”

E não é apenas a música de Moor Mother que é profundamente referencial: a sua poesia está igualmente carregada de inquisições sobre a música afro-americana, menciona rags e blues, jazz e rap e nomeia directamente figuras como Woody Shaw e Joe McPhee, Mary Lou Williams, John Coltrane, Sister Rosetta Thorpe e Billie Holiday, Dizzy Gillespie, Miles Davis, Jellyroll Morton, Louis Armstrong, Lester Young ou Tina Turner (Anna Mae Bullock) e Willie Dixon numa reflexão que atravessa todo o álbum (e que ajuda a entender o seu título) e que procura questionar a sua própria relação com a cultura. Quando lamenta, em “Blues Away”, “you took the blues away from me, now my heart won’t sing”, é impossível não pensar que Moor Mother está, na verdade, a pensar alto sobre os efeitos da evolução da indústria musical, sobre como as mais profundas manifestações culturais resultantes da experiência dos seus antepassados se tornaram moldes ocos usados para o fabrico de produtos vendáveis (já Chuck D cantava “Elvis was a hero to most but he never meant shit to me”).

E é no final, pela voz de Thomas Stanley, que essa questão se resolve, quando se pensa sobre o significado original da palavra jazz, sobre a moralização do seu mote inicial, o esvaziamento do seu impulso primeiro, subtraindo-lhe o seu âmago subversivo. Jazz, sugere-se, não é um conjunto de dogmas, antes “oscilação quântica de aventura”, uma “música viva”, “fecunda” e “hiper criativa”:

“It is a peculiar word, jazz
Its illegitimate origins lost in the murky brothels where it was conceived and birthed
But many observers have told us that jazz used to mean sex
And maybe it needs to go back to meaning sex
To being identified with coitus and copulation
Hyper-creativity, fecundity, and birth
Ultimately, perhaps it is good that the people abandoned jazz
Replaced it with musical products better suited to capitalism’s designs
Now jazz jumps up like Lazarus if we allow it
To rediscover itself as a living music
A subvеrsive suture of inner movеment, fertility, tension, and release
Released now from the prison bars of metrical stability
And the black and white keys of chromatic incarceration
Swing becomes a quantum oscillation of adventure
An expedition into chapters of Black history that did not survive the fires at Alexandria
A journey into Black futures that have not been lived and will not be realized
Unless and until we can dive into Willie Dixon’s “Spoonful”
And bathe ourselves in that jazz
Pour it into our scalps
Massage it into our aching joints
Paint it across the soles of our feet
Then we can dance the Juba
Into New Congo Square
That Sonny has built for us
Between the rings of Saturn
Between C-sharp and B-natural
Be natural
Be natural”

Para referência futura.



[Carlos Niño & Friends] Extra Presence / International Anthem

Quando conversou connosco em Maio do ano passado a propósito da edição de More Energy Fields, Current, Carlos Niño investiu algum tempo a sublinhar a importância da amizade neste seu actual projecto, apontando para uma energia comum – certamente emocional – que sustenta tanto estas divagações quanto a partilha de uma idêntica linguagem musical. Os campos energéticos a que esse título aludia serão, precisamente, os que se estabelecem entre quem tem esse tipo de laços afectivos mais profundos, como todos bem sabemos quando pensamos em quem nos é mais próximo.

Extra Presence, o novo álbum, explica-nos Marty Sartini Garner nas detalhadas notas de lançamento, resulta da expansão de material originalmente disponibilizado em Actual Presence, trabalho que mereceu limitadas prensagens em vinil e cassete em Julho de 2020 (continua, claro, disponível para audição no Bandcamp do artista).

“Em 2020, quando o mundo entrou em isolamento, Carlos entrou no seu estúdio em Woodland Hills, Califórnia, onde escutou com atenção cassetes de sessões de improvisação passadas. Uma em particular destacou-se, uma gravação de um concerto de Fevereiro de 2019 da Just Jazz com Devin Daniels, Jamael Dean, Miguel Atwood-Ferguson e Randy Gloss. No palco naquela noite, ele tinha estado confuso e desconfortável, ele não compreendia a sua relação com uma audiência. “Tive uma revelação naquela noite”, diz ele. ‘O que eu apresento em concerto é uma viagem sónica – não um conjunto de canções, ou um programa ou uma energia performativa’.

Usando as fitas do Just Jazz como guia, ele misturou e remixou, sobrepôs sintetizador e puxou da sua extensa colecção de instrumentos de percussão. Ele convidou os seus colaboradores – os seus amigos, embora todos devêssemos ter a sorte de ter amigos tão talentosos como estes – para adicionar os seus próprios overdubs, então, trabalhando os controlos, ele acabou por criar uma colecção de canções que parecem ter mundos inteiros encravados nelas. E trabalhou com um sentido de necessidade. ‘A urgência era de partilhar uma mensagem’, diz ele, ‘de que iríamos ultrapassar isto’.”

Música com um espírito de missão, portanto. Os contornos new age da personalidade criativa de Carlos Niño são óbvios, como aliás ficou bem explícito na já mencionada conversa tida com o Rimas e Batidas. “Se acho que a música nos vai ajudar a atravessar isto? Acho que ajuda. A música, para mim, está entre… É a melhor coisa que os humanos conseguem fazer. É isso que eu diria. Além do amor — aquele amor de verdade que se manifesta de diversas formas — a maior coisa que os humanos fazem na Terra é a música. É uma das coisas que mantêm a minha fé no potencial da humanidade. E eu estou sempre rodeado de música — toco, ouço, colecciono, troco, partilho música. É a minha ‘moeda’ favorita dentro da humanidade. Por isso sinto que a música pode ajudar. Mas se as pessoas estiveram já sintonizadas consigo mesmas, elas já vão estar sintonizadas com música superior”.

Este novo álbum parte então das sessões que, após extensa edição, resultaram em Actual Presence, mas volta a manipular e expandir generosamente esse material com uma série de convidados: além dos músicos iniciais já nomeados – Devin Daniels em saxofone alto, Jamael Dean em piano e sintetizador, Miguel Atwood-Ferguson em violino de cinco cordas e Randy Gloss em percussões – encontram-se ainda nestes temas, em diferentes combinações, músicos como Deantoni Parks em bateria, Nate Mercereau em guitarra sintetizada e baixo eléctrico, Sam Gendel em saxofone alto e efeitos, Sharada em vozes, Jamire Williams em bateria, Josh Johnson em sintetizador, Jesse Peterson em guitarra e sintetizador, Iasos em “sons celestiais” (what else?…), Shabazz Palaces em vozes, Laraaji em zither e Thand Ntuli em piano. É uma longa lista de aliados – amigos, como Niño sublinha – que oferecem camadas extra de presença a um álbum que trata do momento, das ligações, da criação não gizada previamente, ainda que a música tenha uma óbvia componente laboratorial de manipulação, edição e adição que ajuda a confundir as normais coordenadas de espaço e tempo.

Free jazz será uma ideia aplicável a esta música, certamente, mas num plano diferente do normal, sem investidas pelos territórios da estridência a que tantas vezes se associa essa prática improvisacional criativa. Aqui, as derivas de invenção não mapeada são feitas com contenção, nomeadamente rítmica, mas também com uma forte ancoragem nas regras da tonalidade e harmonia. Por outro lado, a ideia de new age como música que busca a panaceia espiritual, a elevação a estados elevados de consciência, também a isto se aplica. Mais Alice Coltrane do que Art Ensemble of Chicago, portanto, embora a espiritualidade da primeira guie tanto a música de Niño quanto a ideia de partilha comunitária dos segundos.

Melodias “celestiais”, sons da natureza de água e pássaros, fontes comuns de “música” natural, arpégios sintetizados, sons primordiais da kalimba, cascatas de piano, detalhes texturais extraídos de conchas do mar – tudo isso concorre para a expansiva tapeçaria sónica que Carlos Niño aqui urdiu com uma pequena ajuda dos seus amigos, resultando num disco perfeito para acompanhar aulas de ioga, passeios pelo bosque ou entardeceres de olhar perdido num qualquer horizonte.

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