LP / Digital

L-ALI

Raramente Satisfeito

Superbad / Sony Music Portugal / 2021

Texto de Paulo Pena

Publicado a: 19/03/2021

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A primeira vez que vi e ouvi L-ALI foi numa sexta-feira 13, em Janeiro de 2017 (mais vale tarde que nunca…), a abrir um concerto de NERVE e Mike El Nite, no Musicbox, em Lisboa, no dia em que a dupla revelou “Funeral”. Os protagonistas da noite já eram motivo bastante para queixos caídos, mesmo conhecendo de trás para a frente os seus reportórios. Ainda assim, a perplexidade instalou-se mais cedo do que seria de esperar, quando, perante uma sala ainda a compor-se, subiu a palco uma figura enigmática, encapuzada e mascarada (descobrira ali, em L-ALI, o nosso vilão da máscara metálica), mais negra que os próprios sacerdotes da cerimónia fúnebre que nos juntava naquela hora. Movia-se lentamente pelo palco; arrastava a pesada voz, cujo timbre grave, gravíssimo, aliado à dicção invulgar, causava calafrios nas espinhas até dos sistemas nervosos mais receptivos a tais estímulos sentenciados pelas batidas de carrascos como Pesca, Vulto. ou Razat. Mas as letras… essas, sim, foram o maior motivo de estupefação.  

No todo, L-ALI é a personificação máxima do célebre dito “primeiro estranha-se, depois entranha-se”, no que ao rap diz respeito. Porém, e para quem se deixa prender em primeiro lugar pela palavra, a “L-alíngua” é um idioma intrincado mas deslumbrante, desde logo pelo quebra-cabeças subjacente ao nome L-ALI, que indicia à partida a apetência para trava-línguas habilidosamente sacados seja através de sentidos subliminares, seja pela manipulação do léxico. 

Em Raramente Satisfeito, Hélder Sousa volta a trocar-nos as voltas com as voltas que dá em cada faixa. Se o próprio dificilmente se vê cumprido, não podemos nós dar por garantido e estanque o seu registo. É um jogo de avanço e recuo, de conquista e recomeço: Surrealismo XPTO foi chapada à primeira vista e amor à segunda; O Conto foi paixão ardente, no pico desta relação, com tensão excitante (a três, com Mike El Nite à mistura) em “BangHello! (O Gesto)”, romance em “Diamante” ou êxtase em “Centopeias”; e Baço foi abanão para testar a fibra da ligação, com as tripas de L-ALI completamente de fora e o seu lado mais obscuro revelado – afinal, quantos projectos são precisos para se conhecer verdadeiramente um artista? 



A curta passagem pela Think Music foi, ainda assim, frutífera em substância e determinante para o que o rapper de Alfama viria a fazer em Raramente Satisfeito, já pela Superbad. Em “UAIA”, ao lado de ProfJam, e “BABA”, com a mão de benji price, L-ALI realizou os seus dois melhores exercícios líricos até à data (com o verso de Prof a merecer semelhante destaque no seu reportório), e abriu caminho a novas cadências e sonoridades, recebido numa casa onde a letra era vista – aos olhos de um público inconformado – como elemento descartável para os activos da label. Por essa razão, talvez o MC que deixou cair a máscara tenha tido um certo impacto como mais nenhum outro na TM, de dentro para fora, como membro desbloqueador, não só da variedade da sua equipa, mas também sobre o seu próprio catálogo daí para a frente. Não haveria Raramente Satisfeito sem essa transição, que o permitiu chamar pela “SIRI” para traçar caminhos e começar um novo “Ciclo” na Superbad. 

Nesse sentido, se L-ALI já vinha a dar os primeiros toques numa atmosfera com outros ares, igualmente densos, mas menos poluídos, neste seu novo EP deixa-se levitar na sua criatividade ao sabor de uma brisa que já corre numa sala desenhada sem janelas. Na realidade continuamos numa dimensão subterrânea, mas noutra divisão. L-ALI não subiu as escadas; apenas abriu a porta, percorreu o corredor e entrou noutro quarto. O peso gravítico que a sua música tinha até então, uma carga que nos pregava ao chão, voluntariamente submissos mas inevitavelmente arrebatados, tem vindo a dissipar-se, e em Raramente Satisfeito uma subtil leveza aligeira esse habitual volume esmagador. Apesar de tudo, é um trabalho mais “fácil” de ouvir, mesmo com tantos momentos circulares, o que não significa que seja menos complexo. Aliás, o característico puzzle de rimas que é a escrita de L-ALI está mais compacto e, por isso, mais difícil de decifrar. As palavras, as sílabas confundem-se em fonéticas paralelas e camufladas nos instrumentais. Os flows refinaram-se e os refrões cantados ganharam espaço aos versos monocórdicos. Preencheu o seu rap, na totalidade, com mais camadas, além das que sobrecarregavam (nunca em excesso, no entanto) as suas letras, e acrescentou variantes às suas canções. 

A grande diferença deste projecto para os restantes é a linguagem abraçada pelo artista, a começar pela produção, diferente daquela que seria expectável face à identidade que vinha a vincar ao longo dos seus projectos, neste assumida, principalmente, por Lunn e Here’s Johnny, mas também com cunho de Holly Hood, Joah e do próprio L-ALI. De resto, em seis faixas só há lugar a uma voz colaborativa – quase imperceptível – de Mirai, que apenas peca por não ser participação patente (mas que teve como justificação, revelada na listening party do EP transmitida no YouTube, o carácter pessoal de “PersPicasso”). Além disso teve direito a edição física em vinil, com capa concebida por Maior Major (um promissor rapper em início de carreira), limitada a 300 cópias, a assinalar a devida importância do disco como mais que uma selecção de seis faixas para actualizar as plataformas de streaming.  

Raramente Satisfeito é, então, reflexo de quem se aproxima do espelho para ver de perto as falhas. É um trabalho de perfeccionismo por parte de um rapper cuja escrita é levada a cabo como obra esculpida e polida ao milímetro – e aos seus olhos nunca acabada. Essa é a chama que alimenta o artista, que tenta alcançar o impossível: fazer do ali aqui – do fim idealizado objectivo cumprido –, sabendo de antemão que o pote de ouro no final do arco-íris é inalcançável. E é por isso que L continua sempre ALI. 


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