CD / Digital

Mura & Stereossauro

ADAMAS

Godsize Records / 2024

Texto de Paulo Pena

Publicado a: 04/03/2024

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Vínhamos tão expectantes quanto reticentes ao encontro de ADAMAS, segundo longa-duração de Mura a solo editado pela sua Godsize Records neste arranque de 2024. Expectantes pelas razões mais evidentes: desde cedo reconhecemos no rapper de Almada um conjunto de potencialidades que, equilibradas na medida certa, o diferenciam dos seus pares directos — aqueles que, com ele, alimentam a incansável máquina do underground português. Reticentes porque d’O Álbum do Desassossego nos ficou mais do que aquilo que gostaríamos que ficasse. Isto é, com a tónica centrada no que o outro faz ou deixa de fazer, o desassossego de Mura pareceu-nos desapropriado ao seu próprio valor artístico. Para apontar dedos e endereçar carapuças estamos cá nós, não-artistas inconformados com essa triste condição, irremediáveis glosadores de obra já feita. Obra essa que, no caso do primeiro volume do MC em questão, não se resume, claro está, a uma só tecla. Mas ela não deixa de ser a mais premida ao longo de um trabalho, apesar de tudo, bem conseguido, factor esse que, até nos melhores casos, não abona a favor de quem converge insistentemente na mesma linha temática.

E o que traz, afinal, este ADAMAS de diferente? Para começar, conta com a produção integral de Stereossauro, coisa que n’O Álbum do Desassossego se diversificou entre gente como Catalão, DarkSunn, Wugori, Youngstud, Sensei D. e o próprio Mura. Traz, também, novos convidados à rima, como são os casos de Beware Jack, TOM, Sanryse, João Pestana e Vácuo — com uma participação especial, e verdadeiramente diferenciadora, de Ikonoklasta (nome artístico pelo qual assina Luaty Beirão) na interpretação deslumbrante de um poema-prólogo à faixa inaugural do disco.

O scratch volta a ter especial preponderância, desta vez por meio de mestres da agulha como DJ Ride e D-Styles, arte pela qual se destaca, em primeira linha, o próprio Stereossauro. Ele que, enquanto DJ e produtor, já é um dos históricos do hip hop nacional, mas que nos últimos anos se tem dedicado com maior profundidade ao corte e costura de sonoridades mais tradicionais na nossa praça. Fora esporádicos cruzamentos com o rap mais recentes — veja-se por onde andou em Bairro da Ponte, Desghosts & Arrayolos, Cachorro Sem Dono ou Tristana —, já fazia algum tempo que o músico das Caldas da Rainha não voltava em definitivo a uma das suas praias, e em ADAMAS matou esse “bichinho” de um regresso a estas tarolas.

Agora, talvez essa escola que amealhou ao explorar outras paisagens sonoras tenha influenciado a estrutura mais cancionada das 15 faixas que compõem o disco. Essa ordem de trabalhos calibrou o tempo de antena de Mura, que em cada tema entra bem mais incisivo, quer nas doses reequilibradas de egotrip, de MC shaming ou de auto-consagração. Boom bap regrado sem soar repetitivo, muito por culpa, também, da matéria-prima instrumental menos óbvia à produção do sub-género (a tal escola de Stereossauro a vir ao de cima…), e isso deu uma alguma leveza ao tom predominantemente corpulento da escrita de Mura, que se permitiu a respirar com outro fôlego em prol da harmonização dos vários elementos em potencial conflito nas suas canções.

Esta é uma prova de que rappers com forte pendor lírico ganham muito mais com uma produção auto-suficiente do que se pensa. Terá sido certamente isso que Tiago Norte viu em Tiago Moreira: não só um rapper de valor flagrante, mas cujas capacidades têm tanto por onde se explorar quando potenciadas em múltiplas direcções. Mais, sendo essa uma possibilidade nos planos de ambos, ADAMAS terá sido o primeiro capítulo ideal para um salto a uma outra escala. Não saindo da sua zona de conforto, Mura já nos revelou uma versão mais polida do que o seu rap pode vir a ser. Só lhe falta revelar-nos — se assim quiser — o que lhe vai realmente na alma para lá dos meandros da cultura a que se propõe elevar. Tanto quanto em “Não Levantes o Tom” nos deixou antever. A vulnerabilidade poderá ser mesmo a sua força. E, nessa medida, boa parte dos versos de Ikonoklasta servem de deixa para o seu próprio caminho, porque estrada e pernas para andar não lhe faltam, mesmo nada.


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