LP / Digital

Miguel Pedro

Clementina

Revolve / 2023

Texto de Ricardo Vicente Paredes

Publicado a: 06/04/2024

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Com Clementina, entra-se directamente num campo do imaginário levado pela voz humana feminina. Clementina é uma obra sonora composta para o bailado homónimo levado à cena pela Companhia de Dança Arte Total, com coreografia de Cristina Mendanha. Miguel Pedro foi convidado a construir a sonoridade para ser dançada em palco. Um vez vertido em disco, o registo, sem palco, permite uma livre fruição num campo das possibilidades. Já para quem tenha assistido à coreografia, embora num todo complementar, condiciona a uma escuta desligada desse propósito. Esta, aliás, será a irresolúvel dicotomia em ouvir bandas sonoras uma vez visto o filme, a que se volta na memória do vivido, ou por outra, não tendo visto, abrindo lugar ao que se imagina ser. É a ideia que resulta tanto ao ponto de permitir continuar em campo da música imaginada para bandas sonoras de filmes que nunca existiram, ou por outra a justificar a existência para lá dos filmes, neste caso das coreografias, abrindo-se campo à medida da imaginação individual, projectada e visualizada no escutar. 

Para Miguel Pedro, seminal músico e compositor militante em Mão Morta, este ano a comemorarem 40 anos de permanente intervenção musical, Clementina surge como expressão criativa do que mais gosta de fazer — música nova. A provar isso mesmo está este registo em torno da mutação da voz. O leitmotiv aqui, como fio condutor, é um registo vocal trabalhado sem palavras, uma voz em constante mutação, procurando um timbre que mais o/a identifique, numa procura e afirmação de si, e liga-se à própria personagem Clementine, como retrato da vida de Clémantine Clatraux Delait (1865-1939), uma ilustre  mulher barbada francesa. O bailado coreografado, a par do que a música reveste, são o enquadramento dado para a abordagem da temática das questões e afirmações de (trans)género. A voz é, à partida, a expressão indelével do género, pelo seu timbre, que contudo acomoda na diversidade a multiplicidade das identidades individuais. A forma com que Miguel Pedro aborda o desafio de transpor para o domínio da composição é conceptual, eloquente, sendo-o em simultâneo de uma grande liberdade poética. Partindo do mecanismo de trabalho com ferramentas que mexem nos atributos melódicos tonais, como revelou em entrevista concedida a Rui Miguel Abreu para o Rimas e Batidas, em Clementina: “A voz serve-me só de matéria prima, como se fosse um oscilador. […] Eu interesso-me muito pelo timbre. Depois uso um pitch shifter para fazer passar aquela voz muito aguda como se fosse para a de um homem.”

O registo discográfico parte desde logo, visualmente, de uma imagem a revelar como fotógrafa a própria coreógrafa Medanha. Na evocação no feminino da figura masculina, pelo pincelar de espuma na face, para um consequente barbear suave. Remete para a figura desafiante de Delait, para desobediência da estética estereotipada. Nos títulos das onze faixas, feitas andamentos encadeados, é desbravado o nome da personagem, nunca assumido por inteiro, nem nas letras que o compõem. É preciso chegar ao centésimo tema, assim mesmo designado o décimo primeiro na sucessão, para se ler e ouvir Clementina por completo, plena de significado. Esta ferramenta de estúdio, utilizada pelo compositor, foi desenvolvida para optimizar o timbre dos registos vocais gravados. Permite limar arestas e desfasamentos surgidos do cantar, procurando o registo idealizado. Para Miguel Pedro é, ao invés, a ferramenta que lhe permite ir à procura da mutação, manipulando o registo da voz feminina, oscilando-a, transmutando-a, para fora dum afeiçoar estereotipado. Isto escutando a obra no seu carácter mais conceptual, intelectualizando o ouvir. Na passagem a uma fruição mais emocional desta música, dança-se às custas de polirritmos e de novas polifonias desosbstruídas do timbre feminino, como que ajustadas em sucessivos desajustes, como afinações permanentes e insatisfeitas. Nesta perpetuada construção desenvolvem-se harmonias vocais que desenham novos espaços que se propagam, com vozes em cânones, onde volta a mesma voz para povoar. Num impulso emocional surgido da escuta de Clementina veio à memória uma audição para voz na escolha do naipe coral a integrar, em que o maestro surpreso rejeita a voz que escuta, considerando-a instável, não definida e portanto não enquadrável em naipe algum, fora de todo o lugar.

Como obra que abre portas para outras possibilidades, estas composições para bailado, apresentadas em Julho passado, ligam a Entre — a terceira peça de Clementina que a Arte Total levará à cena. Programada para palco, de novo no Theatro Circo para o próximo Julho, é revelado que “a personagem Clémentine Delait torna-se agora secundária na sua própria história, numa festa onde tudo é possível — fora de escala, de contexto e de tempo”.


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