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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 10/01/2024

Incessante na exploração sónica.

Miguel Pedro sobre Sonofobia: “É um misto de medos com uma guitarra estranhíssima que me apareceu nas mãos”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 10/01/2024

Depois de passar pela Noite dos Reis da Bazuuca, Miguel Pedro prepara-se para um ano em cheio. No calendário de 2023, o muito prolífico compositor e músico — e membro de sempre dos veteranos Mão Morta — deixou dois novos trabalhos em nome próprio, Clementina e Sonofobia. Duas amostras radicalmente díspares da sua singular visão musical. A primeira uma encomenda de música para bailado, trabalhada sobretudo a partir de samples de voz; a segunda, a resposta a uma insaciável curiosidade, neste caso em concreto à procura de uma resposta para a aparentemente estranha pergunta: “a que soa uma guitarra do caos?”

Sobre todas estas coisas — e mais algumas — conversámos com Miguel Pedro no passado mês de Dezembro, aproveitando uma pausa da sua incessante e sempre exploratória actividade em estúdio. Olhámos para o seu ano de 2023 e para o que produziu nesse calendário, mas também discutimos os passos que se seguem. E há política e refinarias em colapso no horizonte…



É de facto sintomático dizeres-me que estás num estúdio a trabalhar, num ano em que não tens propriamente estado parado. Foram dois lançamentos em 2023, não é?

Mete o Tricot dos Mão Morta também, em que 90% das músicas são minhas. Foi um ano com… [Risos]

Como é que tu fazes? Não dormes, provavelmente [risos].

Eu durmo 6 ou 7 horinhas — 8 em dias melhores [risos]. É evidente que, com o trabalho que tenho, ser director municipal numa câmara grande, a de Matosinhos, que me ocupa muito tempo… Por isso, tenho sempre a sensação de que os discos são fracos, porque mereceriam muito mais trabalho da minha parte. Mas há um momento em que a gente faz ou não faz. Se está a pensar muito na coisa, ela nunca mais sai, fica aqui a eternizar-se. Como gosto de estar sempre a fazer coisas novas, prefiro pôr os discos cá fora, mesmo com algum défice de trabalho, do que andar a eterniza-los nos meus discos rígidos. Se eles ficam aqui, depois já não servem para nada [risos].

Os dois discos que lançaste este ano são muito diferentes um do outro. Fala-me primeiro, do Clementina. É o resultado de uma encomenda?

É isso. O Clementina foi o resultado de uma encomenda da Arte Total, que é uma companhia de bailado, que tinha uma temática muito marcada e que me balizou muito com o aspecto bailado dessa composição. O Clementina é sobre um livro de uma grande activista, sobre uma das primeiras mulheres barbadas, que andava no circo. Ela chamava-se Clementine… Fala muito das questões de transgénero, da afirmação da mulher, então eu optei por me alimentar só de vozes femininas para a composição. É quase exclusivamente só com vozes femininas. E as vozes femininas servem de matéria prima para eu criar padrões com algum ritmo, polirritmias que serviram de base ao bailado. Depois, o trabalho é muito como no bailado, tem que haver uma interacção permanente entre a coreógrafa e o compositor. Eu mandava sistematicamente alguns bocados, algumas ideias. Nalgumas, ela dizia: “Isto é óptimo, trabalha esta.” Outras vezes dizia-me: “Vamos abandonar isto.” Às vezes pedia-me mais ritmo, noutras pedia menos ritmo. No fundo, o Clementina é o resultado desta colaboração, desta interacção permanente entre mim e a Cristina Mendanha, a coreógrafa da peça.

Diz-me uma coisa. Essas vozes que tu usas, que são de facto proeminentes ao longo de toda a suite, foram vozes gravadas propositadamente por ti e depois retrabalhadas? Como é que chegaste a essas vozes?

Essas vozes são… A voz serve-me só de matéria prima, como se fosse num oscilador. A maior parte delas são de livrarias do Kontakt. Eu interesso-me muito pelo timbre. Depois uso um pitch shifter para fazer passar aquela voz muito aguda como se fosse para a de um homem. Tem precisamente essa ideia que atravessou a própria peça, a tal ideia de transgénero, que também se pode verificar numa mera alteração algorítmica do software, ao transformar um agudo num grave em meio segundo. Parece que passas da voz de uma mulher para a voz de um homem, mas a voz é sempre a mesma — a mesma fonte e a mesma matéria prima. Eu joguei com essa lógica. Nalguns temas isso é mais perceptível, mas esteve sempre presente essa ideia de transformar as vozes através de pitch shifting.

Agrada-te trabalhar dessa maneira, com balizas muito definidas para bailado, teatro ou cinema? Esse tipo de margens apertadas representa um limite, um obstáculo, ou é quase como que um estímulo criativo para cumprir esses objectivos?

Depende de quem me põe as balizas. No caso da Cristina, ela é uma pessoa extremamente criativa e as balizas agradaram-me, serviram-me de desafio. Mas já trabalhei noutras situações em que esses estímulos me fazem lembrar de quando vou para a câmara trabalhar [risos]. Não há grande diferença entre essas balizas que vêm, às vezes, do realizador, com as missões que a senhora presidente da câmara me dá. Depende muito… A criatividade pode ficar mais ou menos tolhida em função de quem me define os parâmetros. É um bocadinho assim. Eu gosto, em abstracto, de trabalhar para conceitos pré-determinados — balizas criativas —, mas às vezes depende um bocadinho de quem me está a balizar.

Os trabalhos que editaste este ano são muito diferentes, como já referi. O Sonofobia aponta numa direcção estética bastante particular e muito diferenciada. Mas começa por me falar do título. Quem toca há tantos anos com Mão Morta pode ter tudo menos fobia ao som [risos]. Mas é para essa ideia que o título nos dirige, não é?

É. O trigger criativo desse disco é duplo. Por um lado, é algo que qualquer músico percebe. Eu comprei uma guitarra — não é bem uma guitarra — num luthier daqueles, num centro rural mais profundo da França, mas ele era inglês. Ele é um nerd da electrónica, digamos assim. Ele faz umas lap steel guitars, daquelas de tocar deitadas, mas cheias de electrónica, com microfones de contacto, sistemas de feedback contínuo… Aquilo é um aparelho… Quase um sintetizador, que em vez de ter teclas tem cordas. Quando o recebi… Isto acontece logo aos músicos. Tive um trigger criativo e comecei a gravar coisas, a gravar coisas… Esta foi a primeira fase, fazer as coisas com pedais, a misturar efeitos… Aquilo soava-me bem. Eu mostrava a alguns amigos e: “Isso soa muito bem. Nem se percebe se isso são cordas, se é um sintetizador.” Por outro lado, o que é a sonofobia? É uma doença, uma condição mental, que basicamente é um medo profundo a determinados sons. Li uns artigos sobre isso. O Oliver Sacks tem aquele livro muito conhecido, Musicophilia, no qual sei que retrata algumas das condições mentais ligadas à música. Mas esta, sonofobia, não lá está. Esta não é tanto ligada à música, mas sim ao som. Há pessoas que têm medo do som de pedras — fogem, têm pânico. Outras têm medo do som de passos. São medos a um ponto em que nem saem de casa. Há pessoas que não saem de casa sem tampões nos ouvidos. Com base nesses medos, comecei a compor. E o primeiro ruído que se ouve em cada tema é… Por exemplo, o tema “Pedras” começa com pedras [risos]. Depois lá meto a minha guitarra, a tal que comprei e que se chama “guitarra do caos” — chama-se mesmo assim, chaos guitar. Então esse disco é um misto de medos com uma guitarra estranhíssima que me apareceu nas mãos e me deu para fazer isso. E eu ando com ela ao vivo. É uma coisa cheia de feedbacks, uma coisa difícil de controlar, então cada concerto é sempre diferente [risos]. Aquilo é praticamente incontrolável. Ando com o Jorge Coelho, também ele um grande guitarrista e uma pessoa de quem gosto muito. No fundo, este disco é isto: a ideia constante do medo dos sons, que me deu o início de cada tema. Depois, cada tema toma conta dele próprio, ganha vida própria e foge-nos às vezes [risos]. É isso que acontece na maior parte deles. A ideia que eu tive no início raramente deu para levar até ao fim, porque o instrumento que eu uso é, de facto, muito selvagem — eu penso que vai dar uma coisa, e depois não dá nada daquilo [risos].

Em termos de referências, o que eu achei muito curioso neste Sonofobia é que, apesar do universo que me estás a descrever, aquilo remete-me muito para uma certa ideia de uma música muito industrial, muito densa, negra e pesada. O que é que apontarias como referências para este universo sonoro?

Eu não sei… Isto vai buscar muito… As referências são mais fáceis de serem detectadas por quem ouve do que por quem compõe.

Acredito.

Eu tenho essa dificuldade, porque essas coisas estão todas cá, dentro de mim, mas eu nem me apercebo delas. E sempre que me apercebo tento negá-las, tento fugir delas. Mas os músicos que eu tenho andado a ver e a ouvir são pessoas como o Tim Hecker, o Ben Frost… Às vezes até o próprio Oren Ambarchi, que tem coisas das quais gosto muito e que procuro ir buscar. Mas também há coisas mais industriais, claro, como o Trent Reznor, no seu trabalho cinematográfico. E há outros. Isso acaba por estar na música que eu componho e gravo, porque são artistas que ouço e que gosto de ver ao vivo, então é natural que isto esteja presente, ainda que eu tente sempre negar essas influências e que as músicas sejam o mais originais possível, o que é difícil nos tempos que correm.

As pessoas vêem-te sobretudo como baterista dos Mão Morta, embora mesmo dentro dos Mão Morta tu tenhas sido sempre muito mais do que simplesmente o homem que mantém o tempo daquela música. Onde é que esse teu lado mais visível do baterismo se encaixa dentro deste projecto a solo? Tu vês isto como dimensões distintas ou são tudo facetas de uma mesma personalidade artística?

Gosto de acreditar que sejam diferentes facetas da mesma personalidade artística. Eu nunca me vi muito como baterista. Não sou, infelizmente, talvez por falta de tempo, daqueles bateristas que estuda muito tempo, que passa 3 horas por dia a trabalhar os rudimentos… Não o sou, infelizmente. Porque o tempo que tenho é gasto na composição. Vejo-me mais como um compositor do que como um baterista ou instrumentista. Mesmo nos Mão Morta isso acontece. Ainda que eu, ao vivo, seja um instrumentista, mas não me vejo como tal. Eu trabalho alguma coisa, faço uns ensaios, uns estudos, mas não muito. Vejo-me mais como compositor porque o tempo que tenho fora do meu trabalho é mais usado aqui, no estúdio, a compor e a experimentar. Mas é evidente que quem conhece os Mão Morta sabe que têm muito trabalho de experimentação, também, principalmente nos últimos, vá lá, 10 anos, em que usámos muito do trabalho que eu faço para os meus projectos a solo e que não iria usar — isso serve-me para eu utilizar nos Mão Morta durante o processo de composição. Muitas experiências que eu faço… O próximo trabalho — que nem será um disco, mas sim um concerto — também será um bocado assim, com alguns bocados dos outputs do meu processo criativo.

Há uma terceira dimensão que se pode usar para te descrever, que é a de produtor. E eu estou até a ver-te sentado aí no estúdio. Tu tens produzido para outros artistas ultimamente?

Não. E é mesmo por falta de tempo. Tenho sido convidado, tenho tido alguns convites, mas recuso-os sempre de forma simpática. Alguns até são bastante interessantes. Porque eu não iria fazer um bom trabalho devido à falta de tempo. Fiz muita produção no passado, mas agora, nos últimos 6 ou 7 anos, principalmente após a pandemia, que não faço. E não vou fazer mais. Tenho que dedicar o pouco tempo que tenho às minhas próprias produções, incluindo Mão Morta, porque eu faço muito a parte de produção da banda. Felizmente, hoje tenho a ajuda do Ruca Lacerda, que tem um estúdio e é uma pessoa com muito conhecimento na área. Os Mão Morta, no geral, trabalham sempre com bons produtores. É um trabalho conjunto. Mas alguém tem que assumir mais essa vertente da produção e eu faço-o. O meu ano de 2024 já está cheio de propostas e de trabalho, portanto não irei certamente “produzir para fora”, digamos assim.

E estamos praticamente a entrar nesse ano de 2024. Fala-me um bocadinho de como é que está a tua agenda. Falaste-me há pouco num novo espectáculo de Mão Morta. Mas e o teu lado de compositor também vai estar a ser solicitado para novos desafios?

Desde logo, os Mão Morta têm já uma proposta que foi acolhida por vários promotores. Temos 7 ou 8 espectáculos marcados entre Setembro e Dezembro de 2024. Uma vez que os Mão Morta vão fazer 40 anos e o 25 de Abril faz 50, nós vamos juntar essa feliz coincidência num espectáculo sobre o fascismo. Vamos tratar o fascismo sob a forma de um espectáculo criativo. O espectáculo de estreia terá uma espécie de seminário onde estarão alguns politólogos e filósofos a falar sobre esta temática do fascismo — o fascismo clássico, o novo fascismo, a extrema direita, a direita radical… A tournée vai ser sempre acompanhada por conversas desta matéria. Além da composição, eu também estou a trabalhar nessa questão do seminário [risos]. Só isso já me está a ocupar bastante tempo. Outro projecto que também está em curso é: não sei se sabes, mas a refinaria da Galp em Matosinhos está a ser desmantelada, e eu, em visitas profissionais, tive a ideia de tentar fixar a memória acústica do espaço e a proposta foi aceite. Vai ser tratada por mim. Convidei o Luís Fernandes, o António Rafael e o Miguel C. Tavares. Vamos trabalhar nisto ao longo de 2024, produzir uma peça artística com a memória acústica daquele local, que tem coisas incríveis — desde silos a uma tourada, coisas deste género. Vai ser uma coisa bastante trabalhosa, mas muito interessante do ponto-de-vista criativo. Também tenho uma encomenda de um bailado que já tinha aceite — se fosse agora não aceitava. Vou trabalhar nesse bailado. Esses três projectos são os que estão fechados e que vão mesmo ocupar-me o meu ano de 2024. Para além disso tenho concertos.


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