Encravado na ponta mais ocidental da Europa, cercado pelas mais antigas fronteiras do continente, Portugal pode vivenciar muitas crises — económicas, sociais e políticas, passando pela recente eleição da direita ao poder executivo —, mas algo mexe muito com a sua juventude e com as cabeças progressistas de todas as idade num país que hoje atravessa, também, uma crise de identidade. Com uma história rica em referências étnicas, vinda dos contatos com diversos povos e culturas (e aqui não vamos ignorar como se deram tais sangrentos contatos), percebem-se a olhos nus os traumas históricos, a imensa influência de outras culturas e, sobretudo, a presença desta diversa geografia humana nas calçadas de Lisboa ao Porto.
Lambuzado neste imenso caldeirão de misturas surge uma cena musical das mais potentes e instigantes do mundo, e isso nota-se desde logo na noite portuguesa, que amplifica a força musical das suas várias ex-colónias de Cabo Verde, Angola e Moçambique até mesmo Brasil. É deste banquete de sabores e ritmos que surge uma nova obra-prima da cultura pop portuguesa, o álbum SOMA, do DJ e produtor Branko, ex-Buraka Som Sistema, lançado neste último mês de março. Quente, pulsante e delicado, o disco traz um forte teor da percepção que Branko tem sobre o que a vanguarda que está sendo gestada nesta cena lusófona e afro-latina ressoa. Desde seus sets como DJ e performer é fácil notar a majestosa pesquisa de sonoridades, timbres e batidas que ele busca.
Neste disco, João Barbosa surge acompanhado de músicos como João Gomes, Francisco Rebelo, Ivo Costa, Djodje Almeida, Danilo Lopes da Silva e Iúri Oliveira, e das vozes de Dino D’Santiago, Teresa Salgueiro, Carla Prata, Yeri & Yeni, Carlão, Jay Prince, Bryte, BIAB e Tuyo. Nele Branko redesenha a pop portuguesa a partir de matizes mestiças e plurais como suas calçadas contemporâneas, com faixas dançantes e altamente melódicas, com letras doces e ácidas se alternando, como as mensagens fortes com sotaques provocadores de rap e kuduro ou as faixas que desaguam em melodias suaves, como “Leve”, onde surge acompanhado pelo o trio brasileiro Tuyo nos vocais.
Visceral e grave, o álbum também mostra músicas com peso e forte apelo de pista de dança que soam de forma incrível em grandes soundsystems, fruto de uma dedicação muito grande que o produtor tem ao aperfeiçoamento da sua arte. É normal até os amigos comentarem até o seu perfil nerd por ficar ouvindo, remontando e reeditando um mísero loop por diversas vezes até alcançar o nirvana daquele detalhe.
Branko, com esta obra, se posiciona na história. Maduro, seguro e consciente do que está sendo plantado em sua caminhada, o produtor português se coloca ao lado dos grandes nomes mundiais de sua geração, reivindicando para si e seus pares o protagonismo de uma cena oriunda de um gueto afro-lusitano do sul global que vem ganhando a atenção das pistas de clubs e de festivais em todo mundo.