CD / Digital

NGA

Eds-On

Madrap Records / 2004

Texto de Ricardo Farinha

Publicado a: 16/03/2024

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Fazer uma crítica a um álbum, que é como quem diz pensar e reflectir sobre um álbum, é um exercício que só ganha virtudes quando deixamos o tempo cumprir o seu papel. 20 anos depois, um disco continua a retratar um momento na vida de um artista, mas todo o burburinho à volta, todas as percepções que nos podiam condicionar na altura, dissiparam-se. Resta a música, e olhar para o passado com os olhos do presente, tendo sempre isso em conta, é um acto estimulante de redescoberta e reinterpretação, até porque o distanciamento convida à reflexão e as novas percepções que ganhámos entretanto beneficiam disso mesmo.

Foi o que nos propusemos a fazer com Eds-On, o primeiro álbum a solo de NGA, que celebra agora duas décadas. Na altura, o rapper angolano radicado na Linha de Sintra já tinha gravado projectos com os seus Força Suprema, já tinha entrado no filme Zona J e colaborado com outros artistas. Mas Eds-On é, de algum modo, uma carta de apresentação, um disco mais oficial, editado de forma independente com o selo Madrap Records, mas que tem esse cunho de estreia. Foi também na altura em que NGA e companhia gravaram alguns dos primeiros videoclipes, numa fase em que o acesso aos meios seja de gravação, produção, distribuição ou exibição era muito mais difícil. Só um pouco mais tarde apareceriam, por exemplo, plataformas como o YouTube.

Quem é o NGA que se apresenta em Eds-On? Por um lado, é o NGA de sempre. As grandes características que definem o rapper e o homem estão lá. É o miúdo confiante, repleto de ginga angolana, pronto para conquistar o mundo e já a dar indícios de que se iria auto proclamar como “rei da LS”.

Por outro, é o artista consciente uma faceta de NGA e da Força Suprema no geral que, se calhar, nunca foi tão reconhecida como deveria. Até porque houve sempre a percepção, para não dizer o preconceito, de serem rappers “americanizados”, numa era em que o rap norte-americano estava assente numa certa ostentação (soa familiar?) e na defesa do hustlin, quando novas sonoridades apareciam vindas sobretudo do sul dos EUA, o que provocava algumas ondas de choque no núcleo do movimento hip hop nacional.



Afinal, os anos 90 e a influência de Nova Iorque mantinham-se como as grandes referências. Na última década, tudo mudou no rap em Portugal, que se abriu a sonoridades e tendências, e muitas das temáticas passaram a ser precisamente estas. Houve um efeito de normalização. Não é que todo o rap tenha de seguir uma mesma linha, bem pelo contrário, mas é fundamental que exista liberdade criativa total. Assim, talvez o tempo tenha dado alguma razão a NGA e companhia que, contra tudo e contra todos, muitas vezes posicionando-se (ou sujeitando-se ao posicionamento) como ovelhas negras do rap tuga, operaram num circuito relativamente à parte. Houve, sem dúvida, um processo de reconciliação ao longo dos anos; mas importa reconhecer o passado e valorizar a atitude e identidade que estes rappers da Linha de Sintra sempre demonstraram, não procurando seguir os padrões.

Mas voltemos então ao NGA e à Força Suprema enquanto artistas conscientes. Em Eds-On, encontramos múltiplos relatos de violência policial, como quando se ouve em “Abuso de Autoridade”: 

“Jovem parado / Carro revistado / Nada encontrado / Bófia chateado / Se tu és negro estás habituado / Bater em negros é vício / Bófias estão viciados / *Desculpe lá, como é que o carro foi comprado?* / Nigga não responde, mantém-se calado / Bófia é atrevido em grupo ou armado / *Porque é que fui parado?* / *Andava muito rápido* / Mesmo se falte um documento é o motivo esperado / Para um negro ser levado, algemado e espancado / Tudo é real, nada inventado / Os bófias pensam que não podem ser tocados / Sa foda esses merdas / racistas palermas / Esquadra, prisão, tribunal e algemas / PJ e PSP, FDPs da GNR / Um verdadeiro negro até que alguém me enterre / E quem são vocês para nos tocar? E quem são vocês para nos julgar?”



O ódio gerado pelos abusos policiais e o círculo vicioso da pobreza e delinquência, sem apoio social nem reintegração, também ressoa em “187”, uma das melhores faixas do disco, onde também ouvimos versos de Masta e Don G:

“Para mim um bom polícia é um polícia morto / É muito grande o ódio que aqui dentro eu suporto / Chelas, Barreiro, Cacém ou Fontainhas / Somos a mesma merda quando postos na carrinha / Carrinha, esquadra / Esquadra, porrada / Porrada, por nada / Por uma fezada / Fezada de merda / Que nem valeu a pena / Dois dias depois nas ruas e se repete a cena”



Em “Portugal”, que também conta com uma participação importante de Masta, abordam a forma como os imigrantes africanos e os afrodescendentes são tratados num país onde não são bem-recebidos. 

“Não há direitos de igualdade, não há paz / Viemos de guerra para guerra, por isso negro faz o que faz / Trocar a escola pelas obras, ganhar paca / Suportar merda todos os dias vinda da raça branca (…) Acredita, Portugal é feito de heróis negros / Que lutam todos os dias para ganhar algum sossego / Bem-vindo a Portugal, terra dos heróis do mar / Onde se és negro, africano, a tua sina é lutar / Onde o preconceito está nu e a violência à vista / Onde há racismo, mas ninguém diz que é racista / Onde ser baleado pela polícia é normal (…) É Portugal, não fiques triste / Cá o imigrante não vive, cá o imigrante resiste”



Infelizmente, estes versos mantêm uma actualidade acutilante. Por vezes, NGA até pode romantizar a vida das ruas, mas também é o primeiro a assumir uma posição quanto a isso, dirigindo-se, em “Corpo, Espírito & Alma”, aos ouvintes mais ingénuos com conselhos sábios para quem tinha apenas 21 anos aquando da gravação.

“Ruas perigosas, mães apanham desgostos / Ruas transformam bons putos em monstros / Puto perde a vida, chama se apaga / Mãe sem filho, o drama nunca acaba / Ouve o que eu te digo / Presta bem atenção / Imagina-te aos 16 deitado num caixão / Caga nesses negros, boy, fica na tua / Abre os olhos e tem cuidado com a rua / Porque delas ninguém escapa (…) Não é um filme, não és o James Bond, my nigga / Sai das ruas enquanto ainda podes, my nigga / Podes fugir mas não te escondes, my nigga / Não sejas herói, ainda te fodes, my nigga”



Era apenas um miúdo, mas NGA já tinha vivido muito e estava prestes a tornar-se pai pela primeira vez. Essa maturação da personalidade, o sentido de responsabilidade inerente, a perspectiva de quem em breve terá um bebé para cuidar, é uma aura que percorre quase todo o disco, principalmente em “Dair”:

“Eu tenho o meu filho a caminho / Masta é o padrinho / E as pessoas dizem: ainda é cedo / Parece que, mais do que eu, têm medo (…) Com grande ansiedade eu te espero / Que nasças com saúde é tudo o que eu quero (…) Há nove meses que cansas a tua mãe / Na tua vida ouve, respeita e abraça a tua mãe / Porque é verdade, ninguém te ama como ela / Se sacrifica para não teres uma vida fatela / E tem cuidado com os ditos amigos / Tem cuidado com as ruas, com os perigos / Problemas virão, mãe branca, pai negro / Não pares de estudar para conseguires um bom emprego / Eu hei-de me esforçar para ser melhor do que o meu pai foi / Ser um pai amigo, não tentar ser um pai herói / Um pai presente, meu lil nigga, és a coisa mais importante da minha vida”



Eds-On é um disco completo, que vai a muitos temas. Em “A Carta”, Edson Silva conta a sua história, explicando como cresceu sem o pai e reflectindo como isso o marcou. Expõe as suas vulnerabilidades, revela as feridas abertas e apresenta-se por trás das roupas largas, dos caps e dos fios brilhantes de forma transparente, de corpo e alma.

É inegável que certas letras evocam um lado misógino que infelizmente tão bem reconhecemos no hip hop e na sociedade em geral , mas, por oposição, neste álbum NGA faz também autênticas homenagens a figuras femininas, como em “Ei Sista” ou em “Cara Metade”, que até é marcado por alguma auto-depreciação: “Baby, tu mereces bem melhor do que o NG”, diz num dos versos. Naturalmente, NGA ainda não tinha atingido o seu apogeu em termos líricos, mas, além dos egotrips e de um par de faixas mais descontraídas, é provavelmente um dos seus trabalhos com mais mensagens importantes.

Numa altura em que as sonoridades boom bap tinham maioria (mais do que) absoluta no rap nacional, é também interessante olhar para os beats de Eds-On produzidos pelo próprio NGA, por Conductor e por outros colaboradores que trazem sonoridades refrescantes, de outros temperamentos, além dos instrumentais mais tradicionais. “Kampeão” tem um bounce que tinha tudo a ver com o que se passava do outro lado do oceano; “Cara Metade” sampla Amália Rodrigues e a sua “Estranha Forma de Vida”; “Dair” recicla a melodia de “Love of My Life”, emblemática canção dos Queen. É notória a existência de uma abertura a coordenadas sonoras distintas, até com refrões mais enérgicos e melódicos do que a norma, a pedirem para serem cantados em colectivo.



Eds-On é um álbum que antecipa o futuro próspero que NGA iria ter, um disco onde nos dá a conhecer as suas várias facetas de uma forma nua e crua, um documento valioso para quem se interessa a olhar o passado e a traçar paralelismos com o presente. NGA sempre primou mais pelo seu talento e carisma do que propriamente por uma discografia consistente não faltam lançamentos, mas não é isso que dita um currículo cuidado , mas Eds-On é claramente um disco que merecia mais reconhecimento e atenção, que deveria ser levado mais em conta quando olhamos para trás, um álbum no verdadeiro sentido da palavra, o primeiro de um dos rappers mais importantes de toda a lusofonia e de um ícone das periferias.

Num tempo em que tudo parece mais efémero e se torna difícil deixar um verdadeiro marco, pelo menos temos a hipótese de olhar para trás e dar o devido valor a quem possa não o ter tido no seu tempo. Os discos do presente vão querer que os olhos (e os ouvidos) do futuro façam o mesmo; pois é com estas páginas que construímos memória e assentamos história.


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