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Ana Lua Caiano

Vou Ficar Neste Quadrado

Glitterbeat Records / 2024

Texto de Miguel Rocha

Publicado a: 16/03/2024

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Em 2022, Ana Lua Caiano cantava no seu maravilhoso curta-duração de estreia Cheguei Tarde a Ontem: “Sai da frente vou passar / Que tenho de montar / Um futuro para mim”. 2022 foi há “apenas” dois anos, mas Ana Lua não terá imaginado o quanto estava correta ao cantar estes versos. O seu futuro, em 2024, parece mais certo do que nunca. Mais que uma promessa ou estrela em ascensão, já é uma certeza. 

No espaço de dois anos, e com ajuda de um segundo EP (Se Dançar É Só Depois) não menos maravilhoso que o primeiro, Ana Lua tornou-se numa das principais referências nacionais da “nova canção” portuguesa, uma canção que tanto deve à batida de Lisboa (para quem duvida disso, basta ouvir Os Vertigem, a banda da qual Ana fazia parte antes de se lançar a solo) como às referências tradicionais registadas por Michael Giacometti em Povo Que Canta.

Ana Lua Caiano certamente não chegou tarde a ontem e certamente não vai ficar neste quadrado (perdoem a piada, até porque o Gonçalo Frota já a fez no Ípsilon). A sua música, mais do que exótica (não aprovamos a aplicação da nomenclatura de world music a Ana Lua), apresenta um je ne sais quoi que lhe permite soar universal. É dançável, orelhuda e hipnotizante. Em suma, é boa música pop. Já se passou um ano e ainda não esquecemos “Mão na Mão”, não é?

A qualidade dos dois primeiros EPs de Ana Lua Caiano significa que a expectativa em torno do seu disco de estreia, Vou Ficar Neste Quadrado, é altíssima. Mais ainda porque o longa-duração é editado pela editora alemã Glitterbeat, casa de nomes como Altin Gün, Avalanche Kaito ou Liraz. Conseguiria Ana Lua Caiano fazer valer o hype? (E será que o hype em torno de Ana Lua será uma tentativa de a imprensa portuguesa criar um fenómeno semelhante a Conan Osiris? Provavelmente). 

Em Vou Ficar Neste Quadrado, Ana Lua Caiano faz valer o hype, mas deixa algumas cartas na manga para jogar no futuro. Não há dúvidas que as canções de Vou Ficar Neste Quadrado são boas canções. Por exemplo, “O Bicho Anda Por Aí”, a primeira faixa “a sério” do longa-duração (é precedida por uma introdução que nos coloca a bordo de um carro ao lado de Ana Lua Caiano a ouvir a rádio “Em Direção Ao Sul”), é um malhão de todo o tamanho, lembrando algo que Björk poderia ter feito em Fossora.

Ana Lua Caiano é uma espécie de herdeira e sonho molhado daquilo que o saudoso João Aguardela tentou fazer com o seu projeto Megafone no final da década de 90 e início dos anos 2000. As semelhanças em ethos são muitas – e não deixa de ser curioso que Ana Lua Caiano, até bem recentemente, nunca tinha ouvido Megafone. O cruzamento de sons de eletrónica da década de 90, inspirados tanto por nomes como Portishead, a já referida Björk ou múltiplos artistas da Warp Records, com a canção de protesto – Zeca Afonso, José Mário Branco, Fausto, Chico Buarque – e registos sonoros das múltiplas regiões de Portugal. 

A diferença principal surge em como as experimentações de Ana Lua a aproximam do universo pop, enquanto Aguardela apenas faria isso com A Naifa. Em Megafone, a ideia passava por encontrar os limites desses cruzamentos sem nunca ficar preso a nenhuma fórmula. No caso de Ana Lua, a ideia é encontrar na mesma esse limites, mas jogar num campo de pop (algo gótica) possível de ser habitado simultaneamente por António Variações, uns Deolinda, Repórter Estrábico ou Capicua. Escute-se “Mais Alto Que O Meu Juízo” como prova disso mesmo. Nota 20.

Outra evidência das aventuras sonoras que Ana Lua Caiano é capaz de fazer cumprir em Vou Ficar Neste Quadrado é “De Cabeça Colada ao Chão”. Não só é a faixa mais experimental do disco, como é a faixa mais aventureira que Ana Lua Caiano revelou até ao momento na sua curta carreira. É um forte lembrete que, além de excelente cantautora, Ana Lua Caiano é uma produtora exímia.

O lado mais aventureiro de Vou Ficar Neste Quadrado, todavia, esconde um lado mais “conservador”, que se rege mais próximo da fórmula que Ana Lua Caiano apresentou nos seus primeiros dois EPs. Este fenómeno tem uma explicação. Há muitas canções de Vou Ficar Neste Quadrado que surgiram ainda em 2020, dois antes antes de Ana Lua Caiano se estrear a solo ao lado de Rossana em “Lobo Rouco”, e isso nota-se.

Como Gonçalo Frota afirmou no Ípsilon, o grande desafio deste Vou Ficar Neste Quadrado para a filha do escritor Gonçalo M. Tavares e da ilustradora Rachel Caiano foi conseguir combinar “canções mais antigas com algumas de safra mais recente” e, simultaneamente, “manter uma relação com esse período em 2020” sem se deixar “por ele aprisionar”. 

Sem dúvida, um desafio complicado, mas um que Ana Lua Caiano, em grande parte de Vou Ficar Neste Quadrado, se revela à altura para ultrapassar. Em “Que Belo Dia Para Sair”, Ana Lua aproxima-se de um industrial bem conseguido; “Deixem o Morto Morrer” podia ser uma malha de Diabo na Cruz e seria uma grande malha de Jorge Cruz e companhia; “Ando em Círculos”, já tocada muitas vezes ao vivo enquanto parte do seu one-woman show, é mais uma faixa de Ana Lua para ficar engrenhada nas nossas cabeças todo o santo dia depois de escutada. 

Porém, há momentos de Vou Ficar Neste Quadrado em que se nota a “idade” das canções. Isto aplica-se tanto à sua temática como à sua sonoridade. 

Uma das grandes benesses da obra de Ana Lua Caiano é a sua urgência. A sua devoção à canção de protesto é evidente e já foi revelada em canções como “Adormeço Sem Dizer Para Onde Vou” (crise habitacional), “Dói-me a Cabeça e o Juízo” (burnout, tema também explorado em “Cansada” deste disco), ou “Se Dançar É Só Depois” (exploração laboral e precariedade). 

Mas a urgência dos chavões que Ana Lua Caiano consegue concentrar nessas faixas surge do quão próximas elas soam da nossa (deprimente) realidade atual. Como algumas das canções de Vou Ficar Neste Quadrado foram criadas nos primórdios das experimentações da Ana Lua, a sua realidade retira-lhes urgência. Lembram-se de “O Bicho Anda Por Aí”? “Não toques aqui, não toques ali / Põe as mãos para baixo para resistires / Não coces a cara, nem os teus cabelos / Que, ai, o bicho anda por aí”. É evidente sobre o que é a música.

Além disso, há momentos de Vou Ficar Neste Quadrado em que parece que já ouvimos algumas das canções anteriormente. “Os Meus Sapatos Não Tocam Nos Teus”, com os seus sintetizadores a lembrar Nick Cave & The Bad Seeds na altura de Let Love In, podia facilmente ter sido uma malha do primeiro EP de Ana Lua Caiano; “Cansada”, apesar de incluir mais sons tradicionais face a outras experiências sonoras da artista, podia ter feito parte do seu segundo EP. 

São estes momentos que impedem Vou Ficar Neste Quadrado de se tornar num estonteante disco de estreia. Ao invés, é “apenas” um muito bom primeiro longa-duração. Nos melhores momentos, é a confirmação que Ana Lua Caiano pode muito bem ser “a voz” desta geração. Nos momentos menos bons, parece que estamos a escutar uma espécie de DLC dos dois primeiros EPs da artista – e não ajuda que este “longa-duração” tenha “apenas” 27 minutos, em que duas das canções são quasi-interlúdios e a última canção do disco é uma versão a cappella com o coro Essence Voices de “Deixem o Morto Morrer”. 

Mas talvez este pequeno passo atrás seja necessário para que Ana Lua Caiano, no futuro, possa dar dois em frente.


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