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Fotografia: Vidar Logi
Publicado a: 26/09/2022

Um regresso à terra e ao húmus, utilizando como símbolo e mote o que se esconde por baixo do solo: cogumelos. John Cage adorava esses fungos, mas é a cantora pop que agora os torna... experimentais.

Björk: fossora, ou a celebração da vida face à morte

Fotografia: Vidar Logi
Publicado a: 26/09/2022

Comecemos esta prosa com um nariz de cera. Aqui há tempos, uma francesa radicada no Reino Unido (Fabienne Audeoud, cantora na área da música improvisada, performer e artista plástica) argumentou que a única virtude mesmo do experimentalismo musical é fornecer novos materiais para a pop. A afirmação causou algum escândalo nos meios mais exploratórios, mas tem o seu quê de verdade. Claro que com excepções, nos poucos casos em que nomes da pop são também notáveis experimentadores de recursos, soluções e sonoridades. 

O exemplo maior está em Björk, cujo novo álbum, fossora, está anunciado para sair no próximo dia 30 de Setembro. Deste já se conhecem dois singles, “Atopos” e “Ovule”, com os respectivos videoclipes por aí a circular, e mais uma vez se comprova que o sarcasmo de Audeoud (proferido, talvez, por não ser uma vocalista de improv particularmente interessante) não era tão generalizável como ela pretendia.

Na música pop também pode haver experimentação (há quem chame avant-pop às obras com essas características) e nesse aspecto Björk é imbatível. Os músicos experimentais adoram-na, excluindo, claro, os mais blasés que consideram o cançonetismo uma expressão musical menor. É verdade que a islandesa vai buscar músicos experimentais (ou de outras áreas não-pop) para os seus projectos, como aconteceu com a dupla Matmos, Zeena Parkins, o jazzista World Saxophone Quartet (não esqueçamos que, na juventude, não só pertenceu a bandas punk como cantou jazz, por mais que tal possa parecer-nos estranho) ou a enfant terrible da electrónica Arca

Ou que colaborou ao longo do seu caminho com grupos e figuras não propriamente guardáveis em caixinhas, como Current 93, Thom Yorke, ANONHI ou Tricky. Ou ainda que recorreu, ao vivo e em disco, a formações instrumentais estranhas ao formato pop, como um grupo de gamelão, um coro Inuit ou a difónica Tanya Tagaq. Fê-lo, mas colocando-os como executantes das suas próprias ideias e não para lhes roubar as suas linguagens específicas.



O facto de ser uma experimentadora da pop proporcionou a Björk algo de especial: a capacidade de se reinventar em cada novo álbum. De desenvolver novos conceitos e colocá-los em prática. fossora é o inverso de Utopia, o disco que há cinco anos o antecedeu, assim como Utopia contradisse os dolorosos Vulnicura e Vulnicura Strings, este uma variante do primeiro com orquestra de cordas e um instrumento inventado por Leonardo da Vinci, a viola órgão, uma violeta accionada por um teclado. (Já antes utilizara instrumentos incomuns, como a gameleste, um híbrido de celeste e gamelão, e uma harpa gravitacional.) 

As mudanças introduzidas em cada um começaram por estados de alma, por assim dizer. Os dois depressivos Vulnicura espelharam a sua separação do marido, Matthew Barney, Utopia foi a sua visão do paraíso, do amor revivível, da descoberta do Tinder, todo ele aéreo, leve e voador. fossora marca o seu regresso a chão sólido (com a participação, até, de um tal de serpentwithfeet), mas já lá vamos.

Cada projecto de Björk é pessoal, e mesmo que as letras não sejam especialmente confessionais a sua música expõe-na por inteiro. Sentindo-se ignorado pela cantora, um seu fã doente mental, o americano Ricardo López, enviou-lhe uma carta com ácido sulfúrico dentro, felizmente detectada nos correios. E fez um vídeo em que surgia a pintar o corpo nu de vermelho e verde, a rapar a cabeça e as sobrancelhas e, finalmente, a enfiar um revólver na boca e a suicidar-se, antes gritando para a câmara “isto é para ti”. O episódio traumatizou Björk e suscitou-lhe o comentário: “as pessoas não deviam interpretar-me literalmente e envolver-se na minha vida”. 

Como seria natural de esperar, a artista continuou a fazer o que sempre fez com o seu método criativo: fossora é a consequência directa da morte da sua mãe, a activista ambiental Hildur Hauksdóttir, em 2018, e reflecte ainda os confinamentos pandémicos de mais de dois anos que vieram depois. Os temas “Sorrowful Soil” e “Ancestress” são especificamente sobre ela. E não seria de estranhar se, para além das baixas causadas pela COVID-19, o “caso López” não estivesse igualmente em equação: afinal, foi alguém que se matou por ela, no seu delírio esquizofrénico.



Esse processo de criação foi descrito pela própria da forma que segue: “Cada disco meu começa com uma sensação que eu tento moldar em som. Desta vez foi descer (depois de Utopia, que era uma ilha nas nuvens e lidava com o elemento ar, sem baixos) à Terra e afundar os meus pés no solo”. fossora é um neologismo, o feminino do Latim fossore, que significa “desenterrar”. A leitura que Björk faz é “ela que desenterra”. 

E o que tira a dita da terra? Fungos, cogumelos, símbolos de vida gerada na putrefacção, num ciclo continuado de morte e renascimento que, pelo próprio acto de ir ao fundo para trazer à superfície, lhe implicou a utilização de frequências baixas ou mesmo baixíssimas, aquelas que fazem tremer os subwoofers. Esses baixos e sub-baixos são garantidos pelo duo indonésio de música de dança Gabber Modus Operandi e por um sexteto de clarinetes baixo que utiliza a irónica designação de Murmuri, apesar de julgarmos ouvir as interjeições da personagem de desenhos animados que em Portugal conhecemos como Pateta.

Ao longo do seu percurso, Björk utilizou quase sempre este tipo de conjugação entre electrónica e instrumentos acústicos, mas as actuais circunstâncias levaram-na a definir todo um espectro de abordagem sónica: fossora é um CD de “techno biológico”. De um lado estão as sínteses operadas por computador e outros dispositivos, com tonalidades que não existem na natureza, e do outro instrumentos de palheta que têm como propriedade soarem a madeira. Mas o interessante é que não são apenas estes que proporcionam a tessitura orgânica do álbum: os baixos electrónicos são igualmente terráqueos, parecendo vir das entranhas das areias e outros detritos.

Repare-se que Björk não retoma aqui o conceito de rizoma (Gilles Deleuze) que tanto inspirou as músicas electroacústica e electrónica, tanto as experimentais como as saídas da club culture, dizendo mesmo que “um álbum sobre raízes de árvores seria demasiado severo e estóico, enquanto os cogumelos são psicadélicos e nascem em todo o lado”, mas a haver uma referência ela vai para a devoção de John Cage por estes fungos, ainda que a mesma pareça não ter influenciado a sua própria música (ignora-se se algum mais alucinogénico se tenha convertido numa partitura por si assinada – ele nunca o confessou nem houve testemunhos afirmativos quanto à questão; apenas o musicólogo Jorge Lima Barreto aventou essa hipótese, piadeticamente, num programa radiofónico). Não sendo possível tocar cogumelos (Cage compôs para cactos, mas isso é outra história), Björk escolheu madeiras, que é o mais próximo em termos de adesão ao mundo natural.



Quanto a referências, haverá algumas a apontar; “Atopos” já sabemos que alude ao conceito de atopia de Roland Barthes, significando a possibilidade de uma deslocalização do Ser. No tema, traduz-se tal noção, aplicada à ausência física da sua mãe, em versos como “Our union is stronger than us/ Hope is a muscle”.

E ouviremos com certeza outras, a começar pelas referências propriamente musicais: os beats de fossora provêm, surpresa, surpresa, do reggaeton, mesmo que, sem surpresa alguma, também lá esteja a folk da Islândia nas conversões camerísticas que marcam o estilo de Björk. Sabemos agora que compostas/arranjadas a partir de um teclado sampler com registos da sua própria voz, se bem que mais tarde nos possam surgir como uma secção de cordas de arco. Sim, é um disco de paradoxos e dissonâncias, nunca nada sendo apenas o que parece, mas denotando uma adesão a uma certa estética brutalista que Utopia não fazia suspeitar, como não o faziam sequer outras anteriores incursões björkianas em que as trilhas rítmicas e a incorporação de ruído ou de “gabbering” estavam mais em evidência.

Ela própria o comentou, sobre as diferenças com a edição anterior: “Perseguir demasiado a luz é um modo de nos escondermos”. Pois este é um trabalho de sombras, embora nada contenha de gótico, soturno ou negativista. De sombras com nesgas de sol, húmido mas semeado de folhas secas, como numa floresta. É uma celebração da vida, tal como ela é efectivamente, algo de perene, efémero, frágil e vulnerável. De uma vida que convive com a morte, que vem, inclusive, da morte, que pode brotar do, ou coexistir com, o que está em decomposição. No universo de fantasia em que Björk vive, o que não se esperava era tal realismo, e nesse sentido fossora será mesmo a maior das suas reinvenções, a mais drástica e a mais dramática, no que tem tanto de teatral quanto de experimental.

Desta vez, talvez até seja bom interpretar-mo-la literalmente, e sem revólveres por perto…


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