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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 13/03/2021

Em memória de Lou Ottens.

Cassetes: um amor eternamente rebobinado

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 13/03/2021

Sim, eu sei: tenho mesmo que voltar ao 5K7s. Só é preciso arranjar tempo, rebobinar. Embora, verdade seja dita, e não apenas para poupar o motor dos meus decks, raramente o faça porque ouço sempre ambos os lados de cada cassete, deixando-a, portanto, pronta para voltar a ser tocada pela ordem correcta. Adiante. A imprensa global noticiou por estes dias o desaparecimento, aos 94 anos, de Lou Ottens, engenheiro da Philips, e o Rimas e Batidas, por todas as razões e mais algumas, não deixou de igualmente assinalar esse facto. A cassete é, afinal de contas, o suporte escolhido para muita da música que passa pelas nossas páginas. Bem, nalguns casos será mesmo escolhido por razões de ordem conceptual, afinidade emocional ou até por questões técnicas, noutros, porém, será simplesmente o formato possível para quem ainda não quer abdicar dessa dimensão física para a sua música porque, face ao CD ou vinil, é ainda o mais económico e simples de fabricar.

Esta celebração da longevidade do formato cassete, da sua história, é, por isso mesmo, também uma sentida vénia à criação do senhor Ottens, fundamental na história moderna da música.

A cassete, como, de resto, o vinil, nunca desapareceu realmente e, portanto, os artigos que por vezes vão surgindo na imprensa mainstream dando conta do seu “renascimento” mais não são do que fait divers distraídos que tentam, nesta idade do streaming e dos sistemas Bluetooth, puxar ou pelo exotismo de tal formato ou pela nostalgia que a ele se associa.

A cassete, pode dizer-se, viveu, desde que foi lançada em 1963, duas vidas distintas das quais, penso não estar enganado, já só uma perdura. Originalmente apresentada no Berlin Radio Show de 1963, o formato foi inicialmente pensado como uma ferramenta, um dictafone, e vários gravadores portáteis surgiram no mercado para esse fim. Mas, paralelamente ao considerável mercado de cassetes “virgens”, ou seja, sem conteúdo pré-gravado, a partir de 1965, na Europa, e de 1966, nos Estados Unidos, foram sendo progressivamente disponibilizadas cassetes com conteúdo pré-gravado, sobretudo música, respondendo à evolução da tecnologia que permitia níveis mais altos de fidelidade na reprodução. A partir de 1968, com a introdução de modelos de leitores integrados em novos automóveis, o mercado definitivamente explodiu.

Duas vidas distintas, referia eu: como cassete virgem ou como cassete com conteúdo pré-gravado. Uma revolução, em ambos os casos.

Com o desenvolvimento de sistemas domésticos com qualidade (com marcas como a Nakamichi a elevarem a fasquia e a tornarem-se objectos de intenso desejo por parte dos audiófilos) e a disponibilidade no mercado de cassetes virgens de alta qualidade (uma palavra importante a fixar neste caso: “chromium” e se quiserem levar o nível de “cromice” – pun intended – ao extremo, percam-se aqui) estavam criadas as condições para um fenómeno conhecido como “home taping”, a produção doméstica de cassetes com conteúdo áudio. E, nesse caso, duas tendências imperaram: a cópia caseira de álbuns, com a cassete de 90 minutos a ser especialmente apreciada pois permitia gravar quase sempre um LP de cada lado, ou a produção privada de todo o tipo de antologias/compilações/mixtapes. Há até livros sobre isto!



No primeiro caso, era comum a prática de partilha entre amigos: alguém que comprava o novo álbum dos Cure fazia o favor de o gravar para uma cassete para oferecer a um amigo que pudesse ainda não ter esse disco na sua colecção e que, muito provavelmente, poderia depois retribuir o gesto gravando ele mesmo o último disco dos Smiths que tinha acabado de adquirir. Essa prática disseminou-se de tal forma que a indústria musical, preocupada com uma possível diminuição de receitas (não entendendo que essa era uma forma da música circular e de cada artista conquistar novos fãs: “não conheces Talking Heads? Como é possível? Eu gravo-te uma cassete…”), lançou uma campanha massiva sob o mote Home Taping is Killing Music, com direito a logo e tudo.



A segunda tendência referida era mais rebuscada e firmou o melómano como curador da sua própria colecção: proliferaram nesses casos as “compilações caseiras”, cassetes preenchidas com os melhores momentos de uma determinada discografia, cassetes com alinhamentos que pretendiam ser uma espécie de introdução a um determinado género, cassetes pensadas para servirem uma determinada função: “música para conduzir”, “música para fazer amor”, etc. Claro que, com o advento do walkman, no arranque dos anos 80, esse nível de criação explodiu.



O expoente máximo da cassete virgem usada para a produção “caseira” de antologias surgiu nos alvores da cultura hip hop: antes do mercado – com editoras e discos e lojas – entrar na equação hip hop, as mixtapes eram o seu principal veículo. E essa é uma história já bem documentada, várias vezes relatada, um verdadeiro pilar fundacional da cultura. Escutar a mítica Death Mix de Afrika Bambaataa é entrar numa cápsula do tempo, ser testemunha de um ponto de viragem na história.



Em ambos os casos descritos, no entanto, essa produção caseira de cassetes com conteúdo gravado recorria sempre a material já lançado em vinil, partindo da colecção de discos de melómanos e dos “crates” de DJs para, de certa forma, propor visões particulares sobre a música. Ou um “fiz-te uma cassete com os melhores temas punk que alguma vez vais ouvir” ou então “esta é a cassete da festa de ontem lá no parque do Bronx. Tens que ouvir porque o Red Alert partiu tudo”.



Mas a cassete afirmou-se, mais ou menos ao mesmo tempo, como veículo para outra revolução. Sob a inspiração da ética “do it yourself” do punk, por um lado, e aproveitando a tecnologia barata então disponível, por outro, uma forte cena internacional de produção musical electrónica caseira impôs-se, uma verdadeira “cassette culture” que, através de uma bem organizada rede postal internacional e partindo da produção doméstica de curtas tiragens, permitiu a disseminação de música criada de forma totalmente independente, despreocupada com normas de fidelidade, livre na mais nobre acepção da palavra. E são inúmeras as antologias disponíveis que documentam essa era de intensa criatividade. A editora Vinyl On Demand tem vários lançamentos que reúnem tesouros dessa corrente: Cassette Culture, Mexican Cassette Culture, British Cassette Culture, American Cassette Culture, etc, etc, etc.

A razão para esta popularidade da cassete prendia-se com o seu carácter ultra-económico, algo que, aliás, tanto ajudava a explicar essa fértil cassette culture underground e experimental como a ampla distribuição nesse formato de música popular: a propagação através das feiras de géneros mais ou menos “marginais”, da chamada música pimba à música africana que existia fora do circuito sancionado da “world music” (quem ainda se lembra das bancas de cassetes na Praça de Espanha?), foi avassaladora, sobretudo nos anos 80. Nos anos 90, com a imposição crescente do CD e a chegada ao mercado de gravadores domésticos de CDs, primeiro, e da popularização de drives capazes de gravar CDs em todos os PCs, depois, a cassete viu essa vocação esvaziar-se.



A indústria da música, no entanto, continuou a ter na cassete um formato rentável até bastante mais tarde. A cassingle, de que alguns de vocês se poderão lembrar, foi um popular e económico formato até meados da década passada: barato, fácil de produzir em massa, era um produto atractivo sobretudo para adolescentes que as compraram aos milhões. Os álbuns disponibilizados também em cassete, principalmente de rock e hip hop, por serem bem mais baratos neste formato do que em CD ou vinil, mantiveram-se também até bastante tarde como produtos bastante populares. A indústria usou ainda amplamente a cassete como suporte promocional, para fazer chegar aos jornalistas novos trabalhos em avanço, antes das cópias finais aterrarem nas lojas, ou enviando para rádios cassetes com singles e até excertos de passagens de álbuns de forma a potenciarem airplay.



A Internet e o MP3 podem ter alterado para sempre as regras do jogo, com o streaming a ter acentuado nos últimos anos a mudança de hábitos nas formas de consumo de música. Hoje, as tais antologias caseiras que eram feitas, pelo menos de acordo com Rob Gordon, segundo critérios muito bem definidos, transformaram-se em playlists facilmente criadas nos serviços de streaming e partilhadas intensivamente. Mas o facto das fábricas que ainda trabalham com este formato terem sido obrigadas neste milénio a diversificar a sua clientela, agora que deixaram de poder produzir cópias aos milhões a pedido das majors, transformou a cassete num suporte bastante atraente para todo um ecossistema independente. Do rock mais alternativo ao jazz, da música electrónica em todas as suas vertentes ao hip hop, há de facto muita a música que actualmente é lançada também nesse formato, apelando ao nicho que, ainda que lá possa chegar através do Bandcamp ou das plataformas de streaming, continua a fazer questão de possuir cópia física da sua música favorita.

Claro que a verdadeira razão de ser para os tais artigos sobre o “renascimento” da cassete que comecei por mencionar se prende com a inevitável fetichização do formato, tal como, há alguns anos, aconteceu com o vinil. De repente, poder comprar Cardi B ou Taylor Swift em cassete numa qualquer dependência da American Apparel justifica que se pense que o formato acabou de renascer, fruto de uma ideia genial de um qualquer trend setter com milhões de seguidores no instagram. Mas não. Vai para 60 anos que cá anda e não parece dar mostras de querer ir embora.

Abaixo, as mais recentes cassetes a terem aterrado aqui em casa nos últimos meses, a última das quais chegada mesmo ontem, por correio, vinda dos Estados Unidos (e obrigado aos senhores dos serviços alfandegários por não terem agravado o já de si considerável investimento na aquisição da tripla cassete do senhor Sam Gendel).



Já por aqui escrevi sobre estes dois trabalhos de Sam Gendel: Fresh Bread é o mais recente e só está disponível em toda a sua extensão, no que a formatos físicos diz respeito, claro, em tripla cassete, já que a versão em vinil contém apenas cerca de um terço do vasto alinhamento criado pelo saxofonista americano. Já DRM começou por ser lançado privadamente como uma cassete numerada e limitada a 100 exemplares que o autor vendeu através do Discogs, mas tudo indica que conhecerá edição em vinil nos tempos mais próximos.



Lote variado que agrupei para a foto por todos os títulos serem de nomes internacionais, embora dois deles lançados na portuguesa Crónica, verdadeiro pilar da nossa cena electrónica mais exploratória a que tenho vindo a dar alguma atenção na coluna Oficina Radiofónica.

Já Andy Votel e Doug Shipton, homens do leme da Finders Keepers, e Sean Canty, parte de Demdike Stare, costumavam ser todos alvos de dedicado escrutínio na coluna 5K7s, a tal que preciso de ressuscitar, já que, como se compreende pelas provas juntas, cassetes é coisa que não pára de entrar aqui em casa: em ambos os casos, Popular Mechanics 4 e Human Engineering, trata-se de electrónica esotérica com toque hauntológico e psicadélico que sabe mesmo bem escutar neste formato.

Finalmente, uma edição do Record Store Day de 2019 que reproduz uma cassete originalmente oferecida pela casa de alta costura Versace durante os seus shows na Paris Fashion Week de 1995. Como o original já se chegou a vender por 3600 euros e os dois exemplares originais disponíveis no Discogs custam para aí o mesmo que uma camisa da marca que celebram optei pela reedição. Penso que é compreensível.



Lote variado, de produto nacional, de diferentes proveniências. Depois de entrevistar Yaw Tembe a propósito da edição do trabalho de estreia de Chão Maior, o trompetista e compositor teve a amabilidade extrema de me fazer chegar, há poucos dias, aliás, a sua discografia, ou cassetografia melhor dizendo, de Zarabatana, projecto que mantém com Bernardo Álvares e Carlos Godinho e em que já colaborou também Norberto Lobo. Jazz livre a que preciso de dar toda a atenção em breve.

Igual cortesia teve a Combustão Lenta que recentemente me fez chegar algumas coisas, incluindo esta cassete com o mais recente volume da sua Live Series e onde se cruzam dOISsEMIcIRCUITOSiNVERTIDOS & Dj LiloCox & Dj Maboku. Promete!

Cátia Sá, que agora responde ao nome GUTA, também já mereceu atenção no Rimas e Batidas, com entrevista, olhar da Oficina Radiofónica sobre a sua Da Barriga e até report da sua passagem pré-pandémica pela ZdB. Voltei a cruzar-me com ela recentemente a propósito das gravações dos concertos The Hood Box. Foi aí que GUTA me presenteou com a sua cassete. Poderão ver e ouvir muita da música que este objecto contém na sua apresentação que o The Hood e a Antena 3 transmitirão nas suas redes no próximo dia 6 de Abril.

Roxo 06 e Crooked n Grinded, este último trabalho em modo split repartido por Maria e DarkSunn, são os dois lançamentos mais recentes da Monster Jinx em cassete. Um olhar ao seu “antro” digital revelará que o monstro roxo tem carimbado muitas edições, várias delas posteriores, mas noutros formatos (algumas apenas digitais, outras também em vinil). Mas no que a música impressa em fita de enrolar diz respeito, estas duas cassetes são mesmo as mais recentes, enviadas aqui para casa graças a uma recorrente cortesia da Monster Jix que deveras aprecio.

sLO-Fi foi o primeiro lançamento de Slow J em cassete e, simultaneamente, o seu primeiro trabalho de instrumentais. Delícia sobre a qual falou ao ReB e que faz pleno sentido neste formato.

Illuminati Bounce e Sabor a Terra / A Casa e os Cães são dois lançamentos recentes da Holuzam que mereceram lançamento em cassete. Foram ambos alvo de recensão na coluna Oficina Radiofónica.

O Volume II de Dirty Coltrane é mais um festim para os ouvidos que necessitam de descargas eléctricas regulares: rock sem truques, mas com nervo pleno que faz da dupla Beatriz/Ricardo uma das células rock mais vitais do nosso vasto corpo musical nacional.

Ao Vivo no Lounge é uma compilação de gravações feitas no mítico espaço lisboeta, fechado actualmente como todos os outros. Esta cassete com música de Filipe Sambado e os Acompanhantes de Luxo, Vaiapria, Primeira Dama, Pega Monstro, Catarina Branco, dUAS sEMI cOLCHEIAS iNVERTIDAS, Pedro Sousa & Simão Simões, Nu No, Império Pacífico e Silvestre recorda-nos de forma pungente a falta que nos faz este e todos os outros espaços que têm a coragem de programar assim. Esta cassete que adquiri no Bandcamp teve uma edição limitada a 70 exemplares. O meu é o número 46.

E finalmente, Gravidade dos Knok Knok. Também por aqui alvo de olhar crítico.



Foi o Afonso Simões de Gala Drop (e também anda para aí cassete desses senhores) quem me deu o virtual toque nas redes chamando-me a atenção para esta cassete que prontamente adquiri. Pressão rítmica do mais elevado calibre, fabricada em São Tomé e Príncipe e que não tarda nada estará a ressoar no meu deck.


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