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Ilustração: Riça
Publicado a: 12/12/2020

Techno, house, hauntology e outras ondas.

Oficina Radiofónica #47: Especial Holuzam

Ilustração: Riça
Publicado a: 12/12/2020

Oficina Radiofónica é a coluna de crítica de música electrónica do Rimas e Batidas. Música Electrónica? Sim. Techno e footwork, house e hauntology, cenas experimentais, ambientais, electro clássico e moderno, drum n’ bass e dubstep, dub e o que mais possa ser feito com sintetizadores e caixas de ritmos, computadores e osciladores e samplers e sequenciadores e outras máquinas que façam “bleep”, “zoing”, “boom” e “tshack”.



[Vários Artistas] Illuminati Bounce / Holuzam

A arcana arte da mixtape não perdeu um átomo de relevância décadas volvidas sobre a sua original imposição e continua, quando bem executada, a ser capaz de alimentar mistérios, despertar paixões e oferecer incontáveis horas de absoluto prazer. Novo Major sabe isso perfeitamente. Os seus elípticos DJ sets sempre tiveram a capacidade de nos enredar em sonoridades exóticas, buscando na longa história da electrónica mais desalinhada os argumentos para outro tipo de dança. E é disso que se trata em Illuminati Bounce, mixtape que a Holuzam lançou em cassete e em que, ao longo de uma hora, assistimos, impávidos e raramente serenos, a um hipnótico mergulho nas obscuras águas da dança mais obtusa, num torpor mid-tempo que confunde sentidos e tem um efeito declaradamente lisérgico.

As coordenadas estendem-se entre o electro de produção subterrânea, techno desacelerado, dub de contornos góticos, synth-pop experimental, disco de produção caseira, proto-house, minimal wave, com sintetizadores que se degladiam com caixas de ritmos da Radio Shack, guitarras cabaretvoltaicas, loops de congas, vozes resgatadas ao éter, drones e interferências cósmicas. E tudo é misturado com rigor e imaginação, como se, afinal de contas, isto fosse apenas uma longa peça de uma hora. Só que não: “só discos reais existentes nas prateleiras de casa”, assegura-se, numa declaração de ética que, lá está, se funda nas tais práticas arcanas da arte da mixtape. E é nos novos sentidos que cada faixa ganha por ser colocada neste singular contexto, sendo directamente afectada pelo que tocou antes e pelo que tocará a seguir, que se adivinha a visão do DJ: “selecções sem pressões. Aqui, música cortada, alterada, reduzida (nunca estendida), genericamente lenta, mexendo na percepção, nunca carregando”. É isso.



[Sabaturin] Kenemglev / Holuzam

Um oceano não é uma barreira intransponível quando a comunicação se efectua por fibra óptica, como terá sido no caso da relação colaborativa estabelecida por Charles-Émile Beullac (artista canadiano que também assina trabalhos como Galerie Stratique) e Simon Crab (elemento central do lendário projecto britânico Bourbonese Qualk). O duo seguiu, refere-se nas notas de lançamento deste seu trabalho de estreia, os preceitos da “cassette culture” dos anos 80, mas socorrendo-se dos mais “fáceis processos da idade digital”, colaborando a partir das suas respectivas bases no Québec e em Oxford e Hastings ao longo de um dilatado período que se estendeu entre 2017 e 2019.

A língua bretã, explica-se igualmente, oferece aqui a moldura conceptual para este trabalho, uma espécie de “lugar” neutro onde o duo tratou de encontrar o seu “consenso” – é esse o significado da palavra bretã “kenemglev” que dá título ao álbum. Já “Sabaturin”, revela-se também, significa “apoiado num só pé” ou “estar em desequilíbrio”, algo que o músico canadiano explicou sentir neste projecto: “A abordagem directa de Simon funcionou como uma espécie de terapia de choque para a minha música”.

Claro que a vasta experiência do “pós-industrialista” Simon Crab, um verdadeiro pioneiro das dimensões alternativas da electrónica britânica na década de 80, oferece um centro a Kenemglev, mas há um indelével tom contemporâneo nesta música, que a espaços parece até alinhar-se com algumas das experiências que têm sido rotuladas como “hauntológicas” (muitas das vozes aqui sampladas reforçam essa noção). E isto apesar deste “gentil e discreto álbum não requerer a validação de uma associação a qualquer das palavras-chave correntes na cena de música electrónica”, como se ressalva ainda nas notas de lançamento.

“Douarek”, por exemplo, soa como uma espectral versão de dub tocada por um robot cuja bateria está a falhar, o que lhe confere alguma espessura melancólica condizente com o que músicos como Jon Brooks ou Pye Corner Audio exploram nas suas obras “assombradas” (o tema “Pastekez” não destoaria num dos mais recentes lançamentos do autor de Hollow Earth, por exemplo) . O álbum, apesar se se estruturar em nove faixas (todas com títulos em bretão), foi pensado para se escutar como uma longa suíte, com beats de progressão lenta, algo fracturados a espaços, sobre os quais se desenrolam as névoas electrónicas que parecem ascender vindas de diferentes “correntes”, de algumas experiências mais cósmicas dos anos 70 ao dub mais estratosférico, do lado mais funcional do legado kraftwerkiano aos exploratórios e disruptivos gestos ensaiados em caves e garagens na Inglaterra pós-punk. Mas ainda que as raízes de ambos os criadores aqui presentes possam ter ligações a esse lado mais DIY que resultou na cena industrial, há igualmente por aqui uma elegância na gestão dos diferentes elementos que parece descartar as “rough edges” de boa parte dessa música que vivia tanto de espírito de aventura como de uma espartana relação com a tecnologia mais economicamente acessível e por isso também menos fiável. “Skaotan” tem esse ADN industrial no seu âmago, mas o seu sound design é decididamente contemporâneo, digitalmente esculpido até ao mais ínfimo pormenor, um prodígio para escutar num bom par de auscultadores.

Essa minúcia e atenção aos detalhes, ao espaço que cada frequência ocupa, é fonte de maravilhamento que recompensa sucessivas audições de Kenemglev. Por isso mesmo, dedos cruzados para que o “encontro” via fibra óptica de Simon Crab e Charles-Émile Beullac se possa repitir.



[Polido] Sabor a Terra + A Casa e os Cães / Holuzam

Polido está de volta com um ambicioso duplo lançamento na Holuzam, Sabor a Terra e A Casa e os Cães, trabalhos que a editora lisboeta disponibiliza como lançamentos digitais e também numa limitada edição em dupla cassete. A Casa e os Cães é o “score” para um filme de Madalena Fragoso e Margarida Meneses e apresenta-se como um mosaico ou talvez um labirinto, feito de fragmentos da banda sonora do filme e de esparsos apontamentos electrónicos que se entrelaçam não se percebendo exactamente qual das peças apresenta a ideia original e qual a recupera. O trânsito, os sons da casa, dos cães, dos gatos, os ecos de humanidade mais ou menos fugaz que se pressentem quando não são os diálogos a confirmar que sim, que também há gente ali, são sugestões para que Polido depois erga os seus próprios sentidos a partir do que – para quem não viu o filme, como é o meu caso – são sons que se reduzem a um enigma ou a um mistério: que lugar é aquele, que pessoas são aquelas, que se passa ali?… E a música? Sugere tensão, como na peça “Marés”, ou apenas melancolia e um leve abandono, como parece resultar dos arpégios de que se faz o segundo interlúdio titulado “(…)” ou do espectral piano que se escuta em “Montanha Mágica”?

As notas que acompanham este lançamento sugerem que Polido “parece estar a fazer jazz a partir de gravações de campo”, uma ideia interessante, sobretudo se quem a escreveu estiver de posse de informação do autor que aponte para alguma dose de improviso na criação desta obra, mas a estes ouvidos, o diáfano universo aqui desenhado, feito de sombras sépias de uma realidade porventura explorada de forma mais clara no filme (uma das peças tem por título “Praça de Londres”, outras duas, sequenciais, “Da Sala” e “Para A Rua”, parecem sugerir movimento, em espaços e lugares reais, portanto), soa mais próximo de uma exótica “quarto mundista” e “hasseliana” na sua combinação de percussões digitais e sopros sintetizados (como na peça-chave do álbum, “João e Santi”) o que se afigura curioso, já que parece ser de lugares próximos e reais que este filme, A Casa e os Cães, trata, não de algum mundo fantasiado, distante e porventura impossível, mas a verdade é que deste lado não se conhece a narrativa original nem se consegue adivinhar o que andará na cabeça daquelas personagens. Posto isto, a banda sonora cumpre nesse adensar de uma narrativa, abrindo espaço para que na nossa cabeça se projecte um filme eventualmente bem diferente daquele que a dupla de realizadoras assinou.

Sabor a Terra é algo bem distinto, ainda que possivelmente complementar. É um trabalho nocturno, nada “pastoral”, como o título poderia indiciar, ainda que pelos títulos das peças individuais – “A Fonte”, “Transformar os Espinhos”, “Resineiro” ou até “Pausa de vento” passe uma ideia de bonomia algo rural que será talvez mais difícil de encontrar na música propriamente dita. Não que este Sabor a Terra se constitua como banda sonora de algum lugar real, mas na sugestão oferecida pelas notas de lançamento – que referem que “ambos os discos soam como se Jon Hassell, Burial e Gavin Bryars tivessem passado algum tempo juntos em estúdio” – resguarda-se uma feliz ideia do que se facto por aqui se vai procurando resolver: uma música que contrabalance o real, o imaginado e uma certa solenidade.

Com uma dinâmica rítmica muito própria, feita de beats de progressão mais lenta e até orgânica, este álbum afigura-se tão cinemático quanto o primeiro, mas as peças são estruturadas de forma mais complexa, soam urbanas, mas também extremamente mentais, no sentido em que parecem remeter tanto para as ruas, para os pulsares e para as paredes da cidade quanto para as mentes, talvez até mais atormentadas, das pessoas que a habitam. O tom de mistério, de tensão, de sentido suspenso, continua a predominar nas melodias feitas de tons menores, na gestão do passo rítmico das peças, nas texturas de que se compõem. Tome-se “Fuzil”, por exemplo, o tema mais longo do alinhamento (nos seus quase cinco minutos de duração que contrastam com outros temas bem mais fugazes; o mais curto, “A Fonte”, reduz-se a 1 minuto e 19 segundos) que parece, e aproveitando a sugestão do autor das notas de lançamento, soar como se John Carpenter, Legowelt e Steve Reich tivessem passado algum tempo juntos em estúdio.

Em “Traz o Velho, Traz o Novo” escuta-se Rudi Brito (que já conhecíamos de Sã Bernardo) ao passo que “Rive” e “Pausa do vento” abrem espaço para a guitarra de Pedro Gomes (gravada por Miguel Abras e Leonardo Bindilatti, nomes ligados à Cafetra) que se integra num contexto de elevada abstracção que acaba por definir a generalidade da abordagem de Polido: este é um disco realmente experimental no sentido em que resulta de uma procura, de uma nítida vontade de abandonar formas e funções, procurando música que seja algo impressionista, íntima e cerebral. O resultado intriga tanto quanto fascina, obrigando a que assim que a “Pausa de Vento” que encerra o alinhamento se extingue tenhamos que voltar ao início para mergulharmos ainda mais fundo neste misterioso Sabor a Terra. Desse mergulho, cada vez mais fundo, não deve resultar o alcançar de um sentido, antes um derradeiro desapegar de qualquer expectativa. A experiência é a verdadeira recompensa. Uma e outra vez.

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