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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 11/09/2019

Água Ao Moinho, música livre e a necessidade de deambular entre colectivos, editoras e ideias.

Polido: “Não quero ser definido por estar em Berlim ou Portugal”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 11/09/2019

Já lá vai quase um ano desde que Polido lançou Água Ao Moinho. Depois de lá ter passado em Dezembro do ano passado, o músico regressa hoje à Galeria Zé dos Bois, onde dividirá o alinhamento com Lolina.

Podemos ler na descrição do Bandcamp da mixtape editada pela Bus Editions: “batidas e edits a partir de pedaços de alguns favoritos pessoais de músicos portugueses que estiveram activos durante os setentas, gravações da e sobre a luta de classes, a revolução e guerra desse período, e F16 a ocupar os céus perto de minha casa e outros sítios. Nascente: Luís Cília, Fausto, Perspectiva, José Afonso, José Mário Branco, Kramer’s «Scenes From The Class Struggle in Portugal»”. Não é preciso grande atenção ou perspicácia para saber que estamos perante um disco bastante político. Polido reflecte sobre o período dos anos 70, a utópica Revolução dos Cravos e a decadência posterior a essa esperança iludida – independentemente da essencial conquista que foi o recuperar da liberdade de um povo que se viu nas sombras da ditadura militar durante cerca de 40 anos.

Um rufar de tambores festivo é, gradualmente, substituído por vozes em conversa, que logo são despejadas, dando lugar a outra voz e a um teclado percussivo processado por ecos. É este o cenário que dita as primeiras secções de Água Ao Moinho, mas o disco vê-se em cada momento perante novas conjunturas tímbricas, novos instrumentos e ambiências. Além de muita electrónica nas batidas, instrumentos e processamento de áudio, sente-se a presença de instrumentos de cordas, justificada pela tipologia de arranjos que se encontra em grande parte do reportório desta música de intervenção, e que também se via parcialmente baseada na guitarra acústica. Além dela, os teclados e sintetizadores tratam da ambiência deste trabalho enquanto a flauta e a harpa melodiam o mesmo.

A textura e a estética dos drones ocupa uma parte do disco, deixando sintetizadores e samples lentos e sedosos preencher o estéreo. As secções vão-se substituindo entre momentos mais ambient e outros mais melódicos e orelhudos. Uma mescla que não recorre à batida na íntegra, mas que apresenta ritmos por vezes mais electrónicos, outras vezes mais “tradicionais” – se é que este é o melhor termo para referir os ritmos samplados. A produção recorre à criação de loops e texturas a partir de sampling e processamento de áudio, no qual ainda encontramos alguma curiosa alteração de pitch, confundindo por vezes o ouvinte nas reconhecidas vozes que surgem na mixtape.

Apesar da envergadura deste trabalho e da desenvolvida visão que o guia, o multifacetado produtor vê a mesma como uma forma de riscar velhas ideias. O próximo registo está já em desenvolvimento há cerca de dois anos, adiado por outros projectos como este Água Ao Moinhoe algumas bandas sonoras, confessou. O seu Free Music / Música Livre, um registo ao vivo na ZDB no ano passado (disponível em CD-R via Bandcamp), apresenta ideias do novo disco, ainda por sair, mas também sons pré-trabalhados.

Sem casa discográfica definida ou casa geográfica cerrada, vê-se mais interessado no que tem sido feito em Portugal, como parte de uma responsabilidade sentida pela produção cultural no país. No entanto, refere a linha do Alfa Pendular com uma ligação que não é tão forte quanto devia. Ao Rimas e Batidas, o artista falou do panorama da música electrónica, projectos futuros, a mixtape Água Ao Moinho e as colaborações com várias editoras e colectivos.



Para começar, porquê esta seleção de samples do disco? O que está por trás do Água Ao Moinho? Há aqui um padrão nas escolhas do sampling que dá um carácter um bocado politizado ao disco.

Sim. O disco já é uma data de ideias que eu tinha durante 2018, em que só sentia alguma necessidade de estar a retrabalhar algumas das minhas músicas favoritas, e também porque foi uma altura em que passei mais tempo em casa, na Marinha Grande e em São Pedro de Moel, que é de onde eu sou e onde cresci. Vi várias coisas em alguns discos específicos, especialmente o Cília e o Fausto, o Zeca é o Zeca, mas especialmente o Cília. Havia uma data de discos dele que eu estava a ouvir repetidamente e que tinham, sei lá, uma característica sónica qualquer por trás que eu ainda não consigo bem descrever, mas para mim são discos que mostram muito bem o contexto onde estão. Mostram também o contexto social e político e mostram o local. Basicamente as escolhas que eu fiz, de samples, foi mais ou menos inconsciente, de saber que eu só tinha escolhido músicas da década de 70, mas inicialmente, alguns desses discos, eu sei que os escolhi porque estavam ali naquele limbo entre ’73 e ’77. Estava muito interessado naquela passagem da revolução de ’74 e aquilo que é o ano de uma esperança enorme, em ’75, até que chega uma depressão quando se descobre que a ideia utópica de uma revolução social cai por aí abaixo. E isso é uma cena que é mostrada no filme do Kramer.

Portanto é um disco assumidamente político?

Sim, sem dúvida. Queria trabalhar com esse material e activá-lo à minha maneira precisamente por esse período de 74/75, ainda estou bué fascinado por isso, por uma energia qualquer que parece que pode ganhar tudo e depois é completamente destruída. É essa ideia de utopias destruídas, que depois quando são destruídas… das cinzas não nasce uma fénix.

Há aqui algum trabalho instrumental teu no disco ou vem tudo de processamento de samples, ao nível da produção?

Não tem sei bem dizer a dedo, mas houve uma data de secções que são assumidamente edits – como há um edit de uma música do Zeca, em que eu só queria guardar as partes de guitarra e fazer uma versão instrumental. Depois, há outras que são só samples leads e há umas que são [de um] sampling que eu costumo usar muito, que é só reapropriar-me de certos sons e instrumentalizá-los, ou seja, conseguir tocar acordes ou isolá-los, mas que não é necessariamente estar a fazer um loop. Houve algumas partes no disco que converti [o áudio]. Há funções de converter áudio para MIDI e também estar a trabalhar com isso, estar a editar e a ver esse processo, porque para mim isso também era importante, pensar nisso quase como um processo de tradução.

Uma grande porção destes samples, pelo menos a sensação com que fiquei, eram de guitarra acústica, certo? Também tinhas de harpa uma vez por outra, mas havia muitas de cordas ao longo do disco. Tens alguma relação especial com o instrumento ou calhou esta textura naturalmente, se calhar por causa do reportório que foste buscar? Se é que a pergunta faz sentido, porque senti muito a presença da guitarra acústica ao longo do disco, pelos samples que usas.

Sim, também. É um bocado inegável a presença da guitarra nas músicas que escolhi, mas também já tinha usado o som de guitarra acústica no meu disco anterior, no Time Is When, em algumas músicas (ou se calhar só numa). Isso, ou é MIDI, ou são gravações minhas a tocar que depois edito – no Time is When, não no Água Ao Moinho. Tenho uma relação com a guitarra por ter tocado durante sete anos, quando era puto, e depois ter parado, e a mesma coisa com a bateria, então tenho uma relação de passado com esses instrumentos. Agora não posso dizer que sou instrumentalista, de todo, mas ainda pego neles.

Há alguma razão para lançares este disco sem criares qualquer tipo de divisão entre faixas? É uma forma de olhares para o projecto como um todo, imagino, e um pouco a cena de subverter o ideal típico do disco, ou não?

Sim. Para mim não fazia nenhum sentido estar a pensar em cada uma das secções separadas umas das outras. Também porque o tempo em que eu as fiz foi ao longo de uns meses e acho que a ideia, ou as ideias, só faziam sentido todas juntas. Não fazia sentido haver listagem. Inicialmente tinha uma versão em que dava um nome a cada secção, mas isso também não fazia sentido. Fazia muito mais sentido haver quase uma ideia de beat tape ou mixtape, porque alguns dos momentos deixei mesmo como rascunhos porque era muito mais importante serem pensados como momentos de passagem e não como uma faixa única. É daí também, acho eu, que gosto tanto do formato de mixtape, uma cena assim comprida e única.

Então achas que vês a ideia toda do disco não como uma narrativa que vai seguindo uma história, mas como uma expressão contínua sempre da mesma ideia? Não sei se faz sentido, o que digo…

Sim, faz sentido, mas é uma coisa que eu não tenho bem uma opinião. Acho que a cena está um bocado aberta à interpretação de cada pessoa. Aos amigos que eu ia primeiro mandando isso e vendo o que eles achavam, o que eles retiravam da coisa, alguns deles viam como uma ideia única e outros viam a coisa muito mais microscópica, de pequenos momentos e pequenas ideias que iam saltando de umas para as outras. Por isso, eu não sei… Eu, quando estava montar o disco, não [tinha] uma cena muito bem [definida] de início ou de fim, nem com os samples que têm voz. Foi muito mais por intuição e por sentimento. Estava mais preocupado em ver o que ia seguir a outra [ideia].

É a reacção de um terceiro a ouvir, não é? Estava interessado exactamente em saber se tinha sido uma coisa que tinhas concebido ou se tinhas feito pelo teu instinto.

Havia uma data de ideias, que eu depois nunca as escrevi, e acho que também ordenei muitas das músicas pelo título delas e isso ditou de alguma maneira o que vinha a seguir. Se era um F16, se era um excerto do filme do Kramer ou se passava logo para outra música.

Pelos teus vários projectos até agora, podemos ver-te a saltitar de editora em editora, de colectivo para colectivo… Isto dá-se porque não encontras uma casa única que faça sentido para ti ou mesmo porque aprecias esta dinâmica colaborativa e multifacetada das coisas que tu fazes?

Eu não me consigo ver fixado num colectivo, apenas numa editora ou apenas numa ideia. Não são essas as relações que eu tenho com as pessoas, ou com os meus amigos. Não estou à procura de uma casa única. Estar num grupo não dá qualquer sentimento de segurança e não é essa a relação que eu quero com pessoas. Para mim, faz muito mais sentido haver uma colaboração contínua com as pessoas que me são próximas e, principalmente, com amigos. Não me interessa muito estar a mandar coisas a editoras de pessoas que eu não conheço, mas que posso gostar do trabalho delas, e até agora as coisas que eu tenho lançado têm sido por coincidências felizes, como o Água Ao Moinho, a Bus Editions, que é do meu amigo Richard Sides, que eu conheci por coincidência cá em Berlim. Senti que fazia sentido fazer a coisa sair por uma plataforma ou por um sítio que não fosse português. Estava só curioso que tipo de reacções poderia ter. Resumidamente, as pessoas com quem eu toco ou com quem agora ando a gravar, são pessoas próximas.

Ia-te exactamente pedir para falares um bocadinho da tua ligação com a Bus Editions, mas já passaste por aí. Já agora, és muito individualista na tua produção?

Cada vez menos agora, acho eu, ou estou a tentar ser menos, [neste] último ano e tal. Ainda continuo a fazer a minha música sozinho, mas estou mais interessado em fazer gravações com outras pessoas e depois trabalhá-las sozinho. Mas acho que isso também é uma coisa que está sempre a mudar… Só não me quero estar a repetir e há outros métodos que me interessam. Cada vez estou mais interessado em conversa e em diálogo do que numa coisa hermética e isolada porque acho que já vi mais ou menos até onde isso me pode [levar]. Ultimamente, das experiências que tenho tido nos últimos meses — de tocar no Irreal com alguns amigos, [por exemplo] –, perceber o que isso me dá, como me faz sentir…

Acho que, também por experiência própria, uma das maneiras de não nos repetirmos e de sabermos evoluir é nesse diálogo. Falarmos com pessoas que fazem coisas diferentes de nós, nem que seja que toca coisas diferentes e nós. É sempre uma maneira de puxarmos mais por nós e, não só por aquilo que conseguimos fazer, mas também por aquilo que queremos explorar. Às vezes esquecemo-nos de uma dimensão inteira que existe porque estamos só a olhar para aquilo que já conhecemos e fazemos e que vamos conhecendo por nós.

Exactamente, sem dúvida. Um problema que eu acho que tinha já há anos era: quando fazes música sozinho muito tempo, não é tanto estar a mostrar a tua música a outras pessoas, mas é falar sobre ela. É sempre muito complicado. E de repente estar a tocar música com amigos e estarmos de facto a falar de música entre nós, essa partilha e esse tipo de intimidade só me interessava cada vez mais porque só mostrava outro ângulo da coisa, outra perspectiva. E está sempre a mostrar-me outras perspectivas. O trabalho de edição e de pós-produção, mistura, para as minhas coisas, continuo a ser só eu e acho que é um bocado importante, mas gravação, ou estar a trabalhar no alinhamento do disco ou assim, estou a gostar cada vez mais de estar a fazer com outras pessoas.

Haverá ainda algo a acrescentar ao nível de vídeo ou performance, por exemplo, ao Água Ao Moinho ou já estás a trabalhar em novos projectos e achas que o Água Ao Moinho já fechou?

Sim, o Água Ao Moinho fechou logo para mim. Foi um álbum que saiu como saiu, também em mixtape e sem qualquer tipo de press por trás, saiu de um dia para o outro literalmente, porque estava a pensar no que vinha a seguir. Foi muito mais um disco de estudo do que outra coisa. Eram só ideias que eu queria riscadas e queria acabar com elas para poder passar mais rápido à próxima coisa que já saberia o que era. Só tinha de acabar esta primeiro.

E o que é, já agora? Já sabes o que vem a seguir?

Sim. Já estou a trabalhar num novo álbum a solo, para aí há um ano e meio, dois anos quase. Algumas músicas já têm dois anos, já vêm da altura do Time Is When. Esse disco está a demorar ainda algum tempo, espero acabá-lo agora no Verão. Mas entretanto, também com o Água Ao Moinho, tenho feito outra música que estou agora a acabar de editar para lançá-la, espero eu, até ao final do ano. São umas banda sonoras que fiz para uns filmes este ano e no final do ano passado, mas já estão praticamente feitas, só precisam de ser rearranjadas em formato de disco.

Há alguma razão para o próximo álbum estar a demorar tanto tempo para ser finalizado ou é só falta de tempo?

É um bocado falta de tempo, é um bocado do trabalho que faço, de estar a fazer som para filme – naturalmente [faz-me parar] de fazer música para mim, porque só estou a pensar naquele projecto, naquele filme. Tenho de ter as coisas um bocado como cada uma na sua caixa, in a way. E está a demorar mais tempo porque o disco, até agora, tem sido todo gravado em Portugal – faço algumas coisas em Berlim, mas pouca coisa — e também porque estou a gravar com amigos. É como o que estava a dizer antes. No Verão passado tive umas sessões de gravação, em que ainda estou a trabalhar, a editá-las, e cada vez que trabalho mais nelas, mostram-me coisas novas. Então estou sempre a rearranjar o material e a perceber de facto como é que faz tudo sentido, as músicas que gravei com amigos e as que gravei sozinho. Trabalhar entre esses dois passos.

Como é que tens visto a evolução do panorama da música electrónica? E, já agora, estando a viver fora, qual é a tua perspectiva do contexto português?

Esse é o tipo de pergunta que eu normalmente responderia mais a tomar café, do que propriamente como uma resposta registada, acho, mas estou na boa com isso.

Eu tenho umas opiniões sobre Berlim, umas opiniões sobre aquilo que se passa em Portugal, entre Lisboa e Porto – é pena Coimbra não estar no circuito, ou haver ainda um distanciamento entre Lisboa e Porto, que é um bocado inexplicável a linha do Alfa Pendular não ser assim tão forte. Eu acho que olho muito mais para Portugal do que olho para a maior parte dos sítios. Acho que não estou necessariamente interessado na cena de Berlim, ou estar integrado em qualquer tipo de cena de cá, ou de haver um distanciamento, de ser só uma coisa e não ser a outra. Não quero estar a ser definido nem por estar em Berlim, nem por estar em Portugal, nem nada disso. Porque também, dos sítios onde vivi, e especialmente do sítio donde venho – que é assim um bocado desconhecido (é desconhecido e não é, não sou lisboeta nem sou portuense). Há algumas cenas em Berlim que são uma miragem, mas continuo a olhar bué para Portugal porque, para mim, há um maior sentimento de responsabilidade. Honestamente, a maior parte das pessoas com quem quero trabalhar estão todas aí. Para mim, de certa maneira, é isso que faz sentido. Faz-me sempre mais sentido trabalhar com as pessoas que me são próximas e com as pessoas que eu admiro. E não é que não conheça pessoas fora, ou aqui, mas há só um qualquer sentido de responsabilidade. É essa a cena que eu quero ajudar.


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