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Ilustração: Riça
Publicado a: 13/06/2020

Techno, house, hauntology e outras ondas.

Oficina Radiofónica #27: Império Pacífico / Nídia / Maria & DarkSunn

Ilustração: Riça
Publicado a: 13/06/2020

A Oficina Radiofónica é a coluna de crítica de música electrónica do Rimas e Batidas. Música Electrónica? Sim. Techno e footwork, house e hauntology, cenas experimentais, ambientais, electro clássico e moderno, drum n’ bass e dubstep, dub e o que mais possa ser feito com sintetizadores e caixas de ritmos, computadores e osciladores e samplers e sequenciadores e outras máquinas que façam “bleep”, “zoing”, “boom” e “tshack”.



[Império Pacífico] Exílio / Variz

Império Pacífico é a dupla criada por Luan Belussi (trash CAN) e Pedro Tavares (funcionário). Racing Team, edição de autor de 2018 disponível no Bandcamp, ou um trabalho homónimo lançado em CDr na Rotten \ Fresh em 2017 (e igualmente alvo de edição digital) funcionam como a memória de quem agora alcança o Exílio, álbum de estreia carimbado pela Variz e merecedor de prensagem em vinil (com masterização assinada por Tó Pinheiro da Silva, o que não é pormenor de somenos).

Com a colaboração de Maria Reis num par de temas – em pleno modo blasé-pop a lembrar obliquamente alguém como Isabelle Antena (elogio) –, Belussi e Tavares assinam aqui um fascinante trabalho de electrónica solarenga apontada às pistas de areia que se estendem diante dos melhores bares de praia da nossa imaginação. New Order e Daft Punk são duas das referências reclamadas nas notas que enquadram Exílio, mas nem a sublimação pop dos primeiros ou o mimetismo disco sampladélico dos segundos são parte explícita da fórmula deste Império Pacífico, que ainda assim não enjeita alguns laivos de melancolia no plano melódico que bem pode ter sido aprendida a escutar a banda de Manchester ou aquela ideia de abandono extático em que era tão fácil de embarcar quando a dada altura das nossas vidas se escutavam as mais clássicas malhas dos franceses.

“Nitsusada”, uma das canções com Maria Reis, é mais uma pedra preciosa para acrescentarmos ao melhor rosário pop nacional, tema que nos transporta para uma qualquer idade de inocência estival, banda sonora para corações que se estilhaçam em câmara lenta num daqueles fins de tarde de luz tão perfeita que fica para sempre impressa na nossa memória. O desenho de sintetizadores em crescente derrapagem, como se fizessem motocross nos montes da nossa imaginação, é mel em estado puro. E essa é uma capacidade de que este Império Pacífico se socorre em cada uma das seis faixas deste trabalho que se queda logo abaixo dos 30 minutos e que portanto pede audições repetidas, tão hipnoticamente envolvente que é: melodicamente transparente e ritmicamente impulsivo (subtil a repescagem da cadência soluçada do kick de “Blue Monday” na fantasia para pista-às-4-da-manhã que é “Bonfim”), Exílio é um delicioso tratado sobre as melhores raves baleáricas que só aconteceram nos nossos sonhos e que por isso mesmo são imaculadamente perfeitas.



[Nídia] S/TPríncipe

Nídia libertou há pouco mais de uma semana a última peça do tríptico cujas duas primeiras partes já por aqui tinham merecido atenção. S/T é um maxi e encaixa portanto da melhor maneira entre o fôlego relaxado do álbum Não Fales Nela Que a Mentes e a experimentação contida do single Badjuda Sukulbembe, trabalhos lançados no final de Maio último.

“Temos de ser mais amigos e mais humanos. O covid veio para nos ensinar que sem o outro não somos ninguém. Desde que parei de julgar e odiar seres humanos a minha vida ficou mais colorida como a bandeira LGBTQ e firme como o punho de Martin Luther King.” É com estas palavras que Nídia enquadra esta nova adição com a sua marca ao catálogo da Príncipe, quatro bombas para pistas inclusivas, desenhadas entre o urgente pulsar do techno, o êxtase do trance e as cadências quebradas que só ela mesmo parece saber conjurar, em arranjos rítmicos de complexidade mais acentuada do que a “funcionalidade” linear das pistas pede à maior parte dos produtores. Mas Nídia, já o sabemos bem, não é uma produtora qualquer e nunca cedeu à mediania em nenhum dos momentos da sua já assinalável discografia (que também se tem expandido por via das remisturas: tem apenas dias o incrível retratamento que ofereceu a “Glorious” de Sudan Archives).

De “CHEF” a “Nunun” passando por “Hard” e “Jam”, tudo aqui é nervo e poder avassalador, com pads sintetizados que fervem como óleo em chapa quente (sobretudo na “trancey” “Jam”). Nídia volta a deixar claro que domina com pleno saber as suas ferramentas de produção, assinando um quadrado perfeito em que nenhuma das peças convocadas para os seus arranjos soa deslocada: por um lado, não há um elemento percussivo, um efeito ou uma frequência que seja fora do sítio, por outro, sente-se um corajoso alheamento das marcas que poderiam ancorar esta música no momento presente do continuum hardcore em que seguimos imersos e isso é o que lhe poderá garantir mais facilmente o futuro. É quando a música se liberta do seu tempo que mais facilmente se alcança aquele raro plano em que uma obra parece ao mesmo tempo pertencer ao passado e ao futuro. E Nídia é assim: criadora de malhas para as raves que um dia vão acontecer em Marte ou noutro lugar distante em que possamos, enfim, ser, como ela apela, “mais amigos e mais humanos”.



[Maria & DarkSunn] Crooked N’ Grinded / Monster Jinx

Nunca é demais exaltar o incrível trabalho que a Monster Jinx tem feito ao longo de mais de uma década de íntegra dedicação a uma visão. São cerca de cinco dezenas (!!!) de lançamentos desde 2009, todos condignamente apresentados, todos generosa e digitalmente disponibilizados numa das mais bem geridas páginas Bandcamp que temos por cá. Na casa do Monstro Roxo habitam algumas das mais irrequietas mentes criativas da nossa modernidade electrónica, produtores que, alheios a vagas de fundo, têm desenvolvido trabalho sério quase sempre apontado ao futuro. E até mesmo quando parecem remeter para um certo passado, estes criativos parecem sempre fazê-lo a partir de um qualquer momento que ainda não aconteceu…

A mais recente adição ao catálogo da Jinx é a “split tape” Crooked N’ Grinded assinada por Maria e DarkSunn, respectivamente um dos mais recentes e um dos mais veteranos membros da família roxa. O conceito é simples: tanto Maria (Alverca) como DarkSunn (Almada) habitam nos subúrbios da grande cidade e ambos precisam de negociar tempo entre múltiplos transportes – comboios, barcos e autocarros – quando pretendem encontrar-se no centro (e a Monster Jinx, em tempos pré-pandémicos, protagonizava uma popular residência no Musicbox, um dos símbolos desse tal centro a que só chega quem investe tempo nos transportes). Dessa forma, cada um imaginou a banda sonora para essas viagens, oferecendo-as a diferentes lados de uma cassete, “como aquelas que costumávamos ouvir nos anos 90”, devidamente enquadradas por algumas gravações de campo que injectam fragmentos de realidade nesta panorâmica fantasia.

Maria é um dos mais poéticos beatmakers da nossa praça, um tipo que ouviu Shadow e FlyLo, como tantos da sua geração, mas que parece ter arranjado espaço na sua biblioteca íntima de referências para aquela melancolia que é tão tuga como o fado (escute-se, por exemplo, “No Complys and Power Slides”). Com um perfeito domínio das mais hipnóticas cadências, Maria, que também sabe equipar sempre as suas composições de sólidas fundações rítmicas, é sobretudo um imaginativo melodista, capaz de com enorme naturalidade conceder uma dimensão cinemática às suas peças que soam frequentemente a bandas sonoras para filmes que Michael Mann ainda não teve tempo de fazer.

DarkSunn é farinha de outro saco. Claro que partilha com Maria (e, já agora, com outros “primos” da família Roxa) os mesmos códigos arcanos do hip hop sub-100 BPMs, a mesma paixão por texturas fumarentas, mas talvez ele se distinga do seu companheiro nesta aventura Crooked N’ Grinded por um mais generoso recurso a samples, soando por isso mesmo a sua música mais devedora de uma linhagem clássica do que a de Maria. Onde um é mais Shadow o outro poderá soar mais Dilla, onde um é mais FlyLo, o outro poderá tender mais para o lado de um Daedelus, por exemplo. E ambos oram igualmente com devota regularidade na igreja de Madlib, pois claro.

Pela sua veia samplística, DarkSunn afirma-se facilmente como o mais “psicadélico” da dupla (ouça-se a pequena maravilha que é “Mandalorian Death”, por exemplo), e também aquele que mais protagonismo na mistura oferece à bateria: os seus “drums” são sempre musculados, bem programados (atentem à lição que é “Abraxas”), afirmando-se como graníticas bases para edifícios erguidos com relevante matéria resgatada a rodelas preciosas de soul, jazz, de bandas sonoras, respeitando portanto o ADN tradicional de um género que, e esse é o toque diferenciador na arte de DarkSunn, tem conhecido dramáticas evoluções de que o produtor também está perfeitamente a par.

Agarrem a vossa cassete de Crooked n’ Grinded, comprem pilhas novas para o walkman e façam-se ao caminho (também resulta activando os dados no telemóvel e carregando no play da página Bandcamp deste lançamento). Maria na ida, DarkSunn na volta: Monster Jinx all the way!

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