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Ilustração: Riça
Publicado a: 04/02/2021

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #46: Chão Maior / No Nation Trio / RED trio & Celebration Band

Ilustração: Riça
Publicado a: 04/02/2021

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.



[Chão Maior] Drawing Circles / Revolve

Há, na música de Chão Maior, espaço e imaginação, determinação e drama, vida e pensamento. Ou seja, muita coisa para absorver, para desfrutar. Para sentir. Em entrevista ao Rimas e Batidas, o líder Yaw Tembe, responsável pelas composições, explica que esta música nasce da relação com a paisagem, com a natureza, em caminhadas que são derivas e em que se faz sempre acompanhar pelo trompete e por um gravador portátil com que vai registando as ideias que são posteriormente desenvolvidas. Ora, partir, ainda que numa simples caminhada, implica sempre voltar, e o que se sente de facto na música de Chão Maior é esse ímpeto para a resolução, para a estrutura circular – aliás, referenciada no título, Drawing Circles – que em determinados momentos nos remete para as estruturas repetitivas que os minimalistas americanos, como Steve Reich ou Terry Riley, exploraram nas suas pioneiras obras.

O ensemble que Tembe desenhou é muito curioso: juntam-se a si e ao seu trompete, João Almeida, também em trompete, Yuri Antunes, em trombone, a vocalista Leonor Arnaut, Norberto Lobo, na guitarra, e Ricardo Martins, na bateria. Há por aqui uma pluralidade de idiomas e essa poderia ser aliás outra leitura do nome do colectivo: este chão que todos pisam é maior do que o do jazz, digamos, “tradicional” – que é idioma ainda assim presente em certos momentos nas diferentes vozes – e toca noutras linguagens, tanto em termos formais (é sobejamente conhecido o trabalho guitarrístico de Norberto Lobo noutros domínios, por vezes mais próximos do que se poderia descrever como free-folk; o baterista Ricardo Martins tem ligações a Pop Dell’Arte ou Jibóia) como conceptuais (as ideias “harmolódicas” de Ornette Coleman parecem representar aqui um papel determinante, com os planos melódico, harmónico e rítmico a assumirem idênticas responsabilidades). E é entre o espaço e a imaginação que esta música ganha vida, uma vibração quase telúrica e até algum drama derivado da tensão, como acontece no extraordinário “Circulo 3”, talvez a peça-chave de Drawing Circles, por ser a que, tendo a forma mais dilatada (ultrapassa os 13 minutos), permite a melhor exposição das ideias que animam este projecto: nos círculos desenhados pelas diferentes vozes, nas suas tangentes, confluências, encontros e desencontros, na propulsão estática da bateria que repete cadências, adivinha-se, enfim, a hipnótica originalidade que ampara esta música, que nos puxa para dentro desses círculos que podem, afinal de contas, ser espirais.



[No Nation Trio] Habitation / Phonogram Unit

Depois da auspiciosa estreia com Vento (projecto com Vasco Furtado, Hernâni Faustino e José Lencastre), eis que a Phonogram Unit, entidade editorial gerida por vários músicos, incluindo o trio agora citado e ainda Jorge Nuno e Rodrigo Pinheiro, voltou, na recta final de 2020, à carga com Habitation, trabalho que marca a estreia do No Nation Trio.

E é de rigor acústico que se faz este trio “desterrado” (e será que a recusa de bandeira não é geográfica, antes musical?) formado por Jorge Nuno em guitarra acústica, Hernâni Faustino (hardest working man on double bass business?) em contrabaixo e João Valinho em bateria e percussão. Faz sentido que os três se encontrem em terra de ninguém: Nuno tem pergaminhos numa vertente mais eléctrica, rock e psicadélica; Faustino é nome veterano de referência nos domínios mais livres e avançados dos “nossos” jazz e música improvisada, sempre capaz de alcançar os mais desafiantes terrenos de expressão; e Valinho, mais jovem, tem igualmente mostrado ter considerável elasticidade (ouvimo-lo, só em 2020, em duas edições distintas da Creative Sources de Ernesto Rodrigues e ao lado de José Lencastre, Jorge Nuno e Felipe Zenícola no extraordinário Anthropic Neglect).

Gravado no início do ano passado nos estúdios Namouche, em Lisboa, este é um disco que premeia a escuta atenta: a gravação minuciosa e transparente do enorme Joaquim Monte revela o carácter de cada instrumento em todo o seu natural esplendor – faz parte do recorte conceptual do trio a manutenção dessa “naturalidade”, mantendo os instrumentos arredados de qualquer processamento de sinal, entregues de forma directa à “honestidade” dos microfones. Quatro peças “Untitled”, totalmente improvisadas, evoluem como uma suite concebida em remoinho, progressivamente envolvente, com os instrumentos a saberem deixar os silêncios respirar dentro da cúpula que habitam, instigando delicadas conversas através de cordas friccionadas ou dedilhadas, de peles acariciadas por escovas ou percutidas com baquetas, num bailado de vibrações que evitam convenções harmónicas, que não chegam exactamente a definir-se melódica ou ritmicamente, que preferem a liberdade, a escusa da previsibilidade estruturada e que dessa forma estão sempre receptivas ao inusitado, ao pulo sobre o abismo, ao mergulho mesmo com o desconhecimento do que possa encontrar-se lá no fundo. Não importa, é o acto, não a sua consequência, que é aqui determinante. E que cada um dos músicos tenha a generosidade de escutar os outros e com eles interagir ou a eles reagir é o que nos mantém a atenção presa nos quatro diferentes “espaços” desta “habitação”.



[RED trio & Celebration Band] Suite 10 Years Anniversary / NoBusiness

Obra de fôlego, esta, e em todos os aspectos: em primeiro lugar o fôlego que é necessário para suster um projecto tão desafiante como este por uma década, assegurando a manutenção da vibração primordial em cada novo passo, seja em estúdio ou em cima do palco; depois, a própria amplitude da banda convocada para a celebração dessa década de disruptiva e criativa actividade: são 14 os músicos convocados!!; finalmente, o tremendo fôlego das três peças que se espraiam por dois CDs e que juntas somam mais de 100 minutos de pura invenção sonora.

O concerto foi o resultado de uma encomenda do Teatro Maria Matos (ainda se lembram de como era o Teatro Maria Matos…?) e deu ao trio de Rodrigo Pinheiro (piano), Hernâni Faustino (contrabaixo) e Gabriel Ferrandini (bateria) a possibilidade de convocar para tamanha celebração uma banda com Sei Miguel (trompete), Luís Vicente (trompete), Fala Mariam (trombone), John Butcher (saxofones tenor e soprano), Pedro Sousa (saxofone tenor), Rodrigo Amado (saxofone tenor), Nuno Torres (saxofone alto), Ernesto Rodrigues (viola), Ricardo Jacinto (violoncelo), Mattias Stahl (vibrafone), Carlos Santos (electrónica), Miguel Abreu (voz e baixo eléctrico) e ainda David Maranha (percussão).

Para este dilatado ensemble, cada um dos membros do trio assina uma composição. “Corrente” foi concebida por Rodrigo Pinheiro, peça com quase 33 minutos, de vibração pronunciada, ainda que com diferentes graus de intensidade – por volta dos 21 minutos, por exemplo, depois de dramáticas secções, o piano assume uma clara dianteira, dialogando com o vibrafone de Mattias Stahl, em primeiro lugar, antes do sopranode John Butcher se juntar à “festa”, numa passagem que bem poderia figurar na partitura de uma qualquer peça de música contemporânea, o que atesta bem do inventivo poder do pianismo de Pinheiro.

É também com o piano de Rodrigo Pinheiro que arranca “Mais Vale”, a composição de Gabriel Ferrandini, em tom solene, como se as notas emulassem as badaladas de um relógio que nos diz que é chegada uma qualquer hora especial. O piano mantém-se solitário por vários minutos, apenas umas parcas notas e as suas sombras harmónicas, antes do espaço começar a ser povoado à sua volta, um drone soprado, estilhaços percussivos, outras frequências, a voz de Miguel Abreu, sombria e espectral. De progressão lenta, este tema é feito da tensão com a pressão do próprio tempo, de resistência, de vagar, mas evolui e apressa o passo quando mais um diálogo é estabelecido pelo vibrafone de Mattias Stahl, desta vez com a bateria de Ferrandini. A entrada do zunido insectóide de um saxofone faz subir o tom de tensão que precede mais uma quebra dinâmica que lança o tema numa direcção mais introspectiva que traz de volta a voz murmurada de Miguel Abreu para um final de crescente abstracção. Talvez a mais intrigante das três composições, esta.

A peça final fica reservada para o segundo CD e é a mais longa, ultrapassando os 42 minutos. “Ditirambo”, que tem assinatura de Hernâni Faustino, convoca, além do contrabaixo do compositor, pois claro, os instrumentos dos outros dois membros do trio, o piano de Pinheiro e a bateria e percussões de Ferrandini, e é a eles que cabe a abertura, plena de silêncios recortados por esparsos sons. A eles hão-de juntar-se depois Sei Miguel, Fala Mariam, John Butcher, Ricardo Jacinto, Mattias Stahl e Carlos Santos. Pinheiro protagoniza um incrível solo ainda antes do primeiro quarto da peça se cumprir, devidamente secundado pelos seus dois companheiros; num segundo “andamento”, regressa-se ao silêncio e convocam-se sopros e farrapos de electrónica para pintarem de negro um espaço já quase sem luz, mas que se vai progressivamente abrindo. E é esse jogo de contrastes, entre a luz e a penumbra, e entre o silêncio e a barragem harmónica, entre o sussurro e o grito, dinâmicas que pontuam este “Ditirambo”, que se evolui até um final “free” de convocatória geral, espécie de êxtase colectivo que traduz da melhor maneira o espírito original do trio, que só sabe tocar em modo de entrega absoluta, sempre no vermelho, sem concessões. Que venham mais 10 anos, pelo menos, pois claro.

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