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Ilustração: Riça
Publicado a: 22/09/2020

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #29: José Lencastre, Hernâni Faustino e Vasco Furtado / João Martins

Ilustração: Riça
Publicado a: 22/09/2020

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.



[José Lencastre, Hernâni Faustino, Vasco Furtado] Vento / Phonogram Unit

Em entrevista ao Rimas e Batidas em Dezembro último (noutra vida, portanto…), o saxofonista José Lencastre tinha deixado claro que o trio é um formato em que encontra um grande potencial expressivo, além de lhe louvar a elasticidade “logística”, por assim dizer, bem mais difícil de operar quando trabalha, por exemplo, com o também seu NAU Quartet, que à secção rítmica tradicional acrescenta o mais “complicado” piano: “Acho que é uma das razões pelas quais o quarteto não toca tanto é porque cá em Portugal não há tantas salas com pianos que sejam bons. Hoje em dia cada vez conta mais.”

Fácil de compreender, portanto, que no momento em que inaugura o seu próprio selo, Phonogram Unit, projecto em que Lencastre conta com Hernâni Faustino, Vasco Furtado, Jorge Nuno e Rodrigo Pinheiro (pianista no NAU Quartet…) como aliados, seja este o formato eleito: Vento é, assim, o registo inaugural do selo, um trio com José Lencastre no saxofone alto, Hernâni Faustino no contrabaixo e Vasco Furtado na bateria. (Lencastre, ressalve-se de resto, não é de todo estranho às dinâmicas particulares do trio, formato em que trabalhou já bastante no passado, em encontros com Jorge Nuno e Pedro Santo, por exemplo, ou, de edição mais recente, com Raoul Van der Weide e Onno Govaert).

Ao todo são seis feéricos temas de livre improvisação, em regime de pronunciada abstracção, com José Lencastre a comandar a atenção com o seu tom altamente personalizado, carregado de imaginação, capaz de se aventurar por terrenos pouco cartografados, de peito aberto ao risco, sempre em busca da frase mais inusitada, sendo para tanto capaz de recorrer a um vasto leque de técnicas que nunca são usadas para impressionar, antes porque servem o momento. Com o veterano e já recorrente Hernâni Faustino do seu lado, Lencastre sabe que tem disponível um sólido amparo, um músico que dispõe igualmente de uma imaginação funda, que é absolutamente destemido e que escuta como poucos os que o rodeiam. Por outro lado, Vasco Furtado revela-se à altura do “embate” com tamanhos companheiros de aventura, suportando o “vento” de Lencastre e o tremor de Faustino com um baterismo inquieto, expressivo, criado com membros independentes, capazes de traduzir a mais pura excitação no embate com pele, madeira e metal.

Estreia auspiciosa, portanto, esta de uma Phonogram Unit que pretende colocar músicos também no papel de produtores fonográficos, o que poderá traduzir-se num espírito de (ainda) maior liberdade na hora de decidir que música lançar, em que condições e com que timings.



[João Martins Quarteto] Hundred Milliseconds / Carimbo Porta-Jazz

A formação deste João Martins Quarteto é deveras original: o líder posiciona-se na bateria e demais percussões, mas assume também alguma electrónica e ao seu lado conta com Fábio Almeida em saxofones alto e tenor, Gabriel Neves em saxofones soprano e tenor e ainda com Nuno Trocado na guitarra eléctrica e efeitos. Vastos recursos harmónicos, diferentes tons para colorir as composições criadas pelo próprio João Martins, gravadas em Janeiro último por Fernando C. Rodrigues nos estúdios Ninho.

Refere o homem do leme deste quarteto que “este disco tem como conceito as primeiras impressões e como estas nos influenciam na percepção com que ficamos de algo, neste caso da música”. Em Março último, mesmo em vésperas do confinamento, João Martins explicava ainda, em declarações ao ovarnews.pt a propósito da então eminente apresentação de Hundred Milliseconds no Museu Júlio Dinis, que este é um projecto com música inspirada nas suas “preferências”: “rock, jazz, música improvisada, silêncio, caos”, enumerava.

De facto, a ideia das primeiras impressões coaduna-se com o que aqui se escuta, composições que se presume que ofereçam amplo espaço de liberdade para que os solistas possam soltar as suas respectivas imaginações, para que possam expor, lá está, os seus primeiros pensamentos perante os estímulos sugeridos pelo pulso firme do líder. No tema título, por exemplo, percebe-se que o desafio há-de ter sido o de permitir aos saxofones a subida até à estratosfera, enquanto João Martins tocava com músculo próprio do rock, em cadências mais estruturadas e repetitivas, depois de uma entrada mais “solta” e exploratória, com a guitarra de Nuno Trocado a servir de subtil sombra às figuras geométricas do seu líder.

No reverso dessa “medalha” estará, por exemplo, “To Trust”: menos urgência rítmica, mais respiração harmónica, no encontro dos sopros, primeiro, e depois na sugestão baladeira da guitarra, “moldura” usada por João Martins para leves acentuações nos pratos, microscópicas sugestões de brilho metálico num tema de tons pronunciadamente noturnos. Em “Sound Painter” é Nuno Trocado que sobe até à “boca de cena”, sendo devidamente secundado por João Martins, que aí revela mestria a criar espaço, oportunidade que o guitarrista aproveita para tranquilamente se espraiar em figuras de espartana beleza, cedendo depois todo o espaço disponível ao líder que deixa no ar um solo que é todo ele requinte de contenção, expressa no mais arrastado toque das vassouras.

A segunda metade do álbum, sobretudo a que é representada no seu arranque pela dupla de temas “Amygdala” e “Ilusão”, representa a secção mais exploratória da viagem conduzida por João Martins, numa clara aproximação ao universo da música contemporânea (será demais escutar por ali ecos mais ou menos ténues, mas ainda assim reais, do Jorge Peixinho de CDE?) traduzida em 10 minutos de pura e livre expressão, parecendo até que nos é permitido escutar a silenciosa implosão das fronteiras e dos limites, quando o quarteto arrisca ambiciosos desvios para fora da “pauta”, para fora do tempo, para longe da mais comum gestão harmónica, com plena noção do quão excitante pode ser a procura, independentemente dos “resultados” alcançados.

Não sei se o título se refere ao tempo de reverberação do estúdio em que este trabalho foi gravado (ou de qualquer outro espaço específico), mas seja como for, é possível garantir que da audição atenta e dedicada deste disco resultarão ecos que se prolongarão na nossa memória por um tempo bem mais dilatado.

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