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Ilustração: Riça
Publicado a: 11/11/2020

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #36: Alan Wakeman / José Lencastre, Jorge Nuno, Felipe Zenícola & João Valinho

Ilustração: Riça
Publicado a: 11/11/2020

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.



[Alan Wakeman] The Octet Broadcasts – 1969 and 1979 / Gearbox Records

Na introdução de “Forever”, o locutor da BBC Brian Priestley explica que Alan Wakeman “é parte de uma jovem geração de músicos de jazz britânicos” ressalvando como “há quatro anos ele ainda estudava na escola de Londres em que o professor de artes era Mike Westbrook”, uma das suas mais marcantes influências ao nível da escrita, revela-se, antes de se mencionar ainda como John Surman também o marcou, “as far as playing is concerned”. Wakeman tocou abundantemente com Mike Westbrook e Graham Collier (com quem gravaria, logo no ano seguinte a esta sessão, o ultra-clássico Songs For My Father ao lado de músicos como Alan Skidmore ou Harry Beckett), mas nunca editou como líder, pelo que esta edição da Gearbox Records que recupera duas sessões encomendadas pela BBC tem um interesse particular.

Wakeman, primo do famoso teclista Rick Wakeman, nasceu em 1947 e contava apenas 22 anos quando, a pedido da BBC, reuniu em Novembro de 1969 no Aeolian Studio 2 uma banda que combinava valores “emergentes e experientes”: além de Wakeman, aqui em sax tenor e clarinete, escutam-se Alan Skidmore em sax tenor, flauta e “two gongs at once”, Mike Osborne em sax alto, clarinete e pandeireta, Paul Rutheford em trombone e “small chinese gong”, John Taylor em piano e castanholas, Lindsay Cooper em baixo e guizo, e Paul Lytton na bateria. Wakeman assume aqui sobretudo o papel de compositor e arranjador, deixando que os músicos mais experientes, como Skidmore, Osborne, Rutheford e Taylor brilhem em intensos solos. Com material escrito propositadamente para uma sessão com um grupo que não se voltaria a reunir e que tocou apenas uma vez para uma transmissão que nunca foi repetida, esta edição é particularmente relevante, até porque documenta um período dourado da profundamente rica história do jazz britânico.

Wakeman explica nas notas de lançamento que escreveu “toda a música para ambas as sessões pensando nos músicos convocados” e seguindo de perto, portanto, “a ideia de (Duke) Ellington de que os músicos fazem a música”. Na prática, isso significa que Alan Wakeman pensou nas melodias, nos arranjos e nas estruturas das peças, deixando aos solistas vasto espaço para a invenção espontânea. E isso é notório logo na incrível peça de abertura, “Dreams”, que vive de um vibrante ânimo colectivo que desagua num caótico final em que os músicos dão o máximo pela liberdade absoluta numa cacofónica e exuberante celebração. O momento seguinte, “Forever”, é, no entanto, bastante distinto, bem mais baladeiro, com Skidmore a brilhar num belíssimo apontamento na flauta e Osborne a voar bem alto num inspirado solo com que carrega o colectivo até às estrelas.

Este The Octet Broadcasts é igualmente interessante por balizar a evolução de Wakeman como músico, arranjador e compositor com duas sessões separadas por uma década. Em 1979, a BBC renovou o convite ao saxofonista que convocou outro octeto, uma vez mais reunido unicamente para esta ocasião e nunca gravado noutra circunstância: aqui escutam-se três saxofonistas que dobram em tenores e sopranos – além de Wakeman estão igualmente presentes Alan Skidmore e Art Themer –, o trompetista Henry Lowther, o trombonista Paul Rutheford, o pianista Gordon Beck, o baixista Chris Lawrence e ainda o baterista Nigel Morris.

No estúdio de Maida Vale, o radialista e crítico de jazz Charles Fox começa por explicar que o xadrez apaixona vários músicos de jazz, como Dizzy Gillespie ou Anthony Braxton, além do saxofonista Alan Wakeman que, revela-nos também o apresentador, recebeu uma encomenda do Arts Council para escrever uma suite inspirada no jogo. Integrando um ensemble dirigido pelo baixista Graham Collier, Wakeman fez no início de 1979 uma viagem à Índia, país onde uma variação do xadrez é conhecida como Chaturanga (que é também o título do primeiro andamento da suite), tendo aí recolhido inspiração nas ragas que guiam o ambiente do tema título em que começa por brilhar Chris Lawrence com um motivo melódico em que aplica toda a sua mestria no arco, com os três sopranos depois a entrelaçarem-se harmonicamente numa evocação do som do tocador de shenai Bismillah Khan.

O tom extático mantém-se depois com a lírica abertura de “Manhattan Variation” a cargo de Gordon Beck em modo bastante livre que logo depois conduz o colectivo por um labirinto hard bop de sólida construção deixando aos sopros algum espaço em segundo plano para pinceladas harmónicas de complexa beleza. Há ainda tempo para uma envolvente balada (“Vienna”) e até para um incendiário e completamente atonal “duelo” entre trombone e sax tenor, “Robatsch Defense”, que só peca por ser tão breve.

Na introdução, Fox explicou ainda que os cinco andamentos condensados para esta gravação da BBC integravam uma mais vasta suite que se estendia por duas horas e que tinha sido originalmente apresentada no 100 Club numa formação em que se encontrava Evan Parker (ausente desta sessão devido a outros compromissos e por isso substituído por Skidmore). Esse facto também permite compreender a evolução que o compositor protagonizou na década que separou as duas sessões agora resgatadas dos arquivos da BBC. Quando liderou este octeto em 1979, Wakeman já contava com uma mais ampla experiência, tendo gravado vários álbuns com Graham Collier, Mike Westbrook, John Dankworth, a London Jazz Composers Orchestra, Don Rendell e até com os Soft Machine, grupo que integrou em 1976 e com quem gravou o álbum Softs (conferir este artigo, por favor). Aos 73 anos, Wakeman permanece um veterano bastante requisitado, como se percebe pela bem recheada agenda que manteve até às vésperas da pandemia, e por isso mesmo esta é uma edição que tem também o mérito de apresentar como líder um músico que fez sobretudo carreira como sideman. Merece os aplausos presentes, por certo.



[José Lencastre, Jorge Nuno, Filipe Zenícola, João Valinho] Anthropic Neglect / Clean Feed

Praticamente na véspera de natal, Joaquim Monte posicionou microfones e gravou na belíssima sala do estúdio Namouche os músicos José Lencastre (saxes tenor e alto), Jorge Nuno (guitarra), Felipe Zenícola (baixo) e João Valinho (bateria) numa incandescente sessão dividida em três “andamentos”, aqui nomeados como “Concepts”.

Dado interessante que contribui para a originalidade deste álbum é sem dúvida o conjunto de fortes personalidades aqui reunidas: o baterista João Valinho é um jovem que nos últimos anos acumulou uma considerável experiência, tendo tocado em diferentes contextos, sobretudo nos que se estendem entre o jazz e a música improvisada, surgindo bastas vezes em ensembles com Ernesto Rodrigues. Aqui, Valinho demonstra possui capacidades cromáticas consideráveis, extraindo do seu kit não apenas tremores rítmicos desconjuntados, mas igualmente diferentes tonalidades das peles, madeiras e metais de que se faz o seu instrumento.

O baterista integrou, juntamente com o baixista brasileiro Felipe Zenícola e com o saxofonista José Lencastre, o trio que em Dezembro do ano passado se estreou ao vivo num concerto na Fábrica de Braço de Prata, em Lisboa. O concerto serviu de preâmbulo para a sessão de estúdio aqui apresentada, gravada apenas alguns dias depois da apresentação, mas com a adição do guitarrista Jorge Nuno, ele que chega dos domínios mais psicadélicos e experimentais explorados pelo seu grupo Signs of the Silhouette. Há por aqui, portanto, uma tensão entre o pulsar eléctrico de Zenícola e Nuno, e o fervor acústico de Lencastre e Valinho. E tensão, de facto, parece ser o fio condutor mais premente deste Anthropic Neglect.

Zenícola (músico com pergaminhos que já se encolveu em projectos exploratórios com Otomo Yoshihide ou Paal Nilssen-Love) é mestre nesssa gestão de tensão: o seu trabalho de um arrepiante e insistente minimalismo em Concept 2”, segurando a “casa” que Lencastre e Nuno procuram estilhaçar com rajadas angulares e faiscantes, sublinha uma extraordinária capacidade de concentração. Aí, essa sólida fundação é sobretudo aproveitada pelo saxofonista para desenrolar frases de crescente abstração que traduzem pensamento espontâneo, enquanto o guitarrista derrapa pelo espectro sonoro com expressividade total em pequenos espasmos a espaços algo “sharrockianos”, mas sobretudo altamente cromáticos até por via do seu uso dos pedais de efeitos.

A peça mais longa, “Concept 3”, que se espraia bem para lá dos 15 minutos, arranca em modo mais reflexivo com uma exposição de José Lencastre, aqui captado com um tom fundo, seguríssimo e plenamente expressivo. O saxofonista deixa muito claro que está em plena posse dos seus notáveis poderes de invenção (ele que ainda recentemente nos abalou com o Vento que assinalou o arranque da Phonogram Unit) e assume aí a dianteira numa “viagem” a que se juntam as cordas de Jorge Nuno, primeiro, de Felipe Zenícola, logo depois, e a mais subtil das pontuações que Valinho por aqui oferece, deixando assim amplo espaço para que o Lencastre voe para longe., com uma entrega crescentemente física ao seu instrumento que vai sendo seguida com um amplificar de intensidade pelos restantes companheiros. Uma vez mais, a tensão erguida pelos quatro músicos, chega a ser completamente sufocante, com cada um a puxar um mesmo centro para uma diferente direcção, numa aplicação de força criativa absoluta. Um portento que seria imperioso testemunhar ao vivo logo que possível.

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