pub

Fotografia: Marco Franco
Publicado a: 29/01/2021

A desenhar novos círculos.

Yaw Tembe de Chão Maior: “Interessa-me essa busca por mais do que um chão fechado em si próprio”

Fotografia: Marco Franco
Publicado a: 29/01/2021

O chão só é maior se quem o pisa não limitar os seus passos e for, ao invés, dotado do espírito de aventura que convida à partida, à exploração, que leva a calcorrear novos caminhos, a desbravar velhos trilhos tomados de novo pela natureza, a escalar promontórios e a contemplar novas paisagens. É por aí que andam Yaw Tembe, Norberto Lobo, Leonor Arnaut, Ricardo Martins, João Almeida e Yuri Antunes, o sexteto que responde ao nome Chão Maior e que hoje mesmo lança o seu trabalho de estreia, Drawing Circles, através da Revolve.

Gravado no Convento de São Francisco, em Montemor-o-Novo, numa profícua, ainda que breve, residência artística, este é um álbum que busca a perfeição circular nas irregularidades normais que a natureza impõe, um disco que vive das composições de Yaw Tembe e do trabalho de entrega colectiva a uma ideia de busca, a um trabalho de genuína invenção, entre os passos e os circulos.

O álbum apresenta seis peças, todas com as palavras “Círculo” ou “Passo” como parte dos respectivos títulos, que encenam pequenos dramas nas vozes de dois trompetes, de um trombone, da guitarra e da bateria, bem como da própria voz humana, vozes essas que se entrelaçam em diálogos, protagonizam reflexões, discursam ou silenciam, sempre um busca de uma qualquer ideia de equilíbrio.

O Rimas e Batidas conversou com Yaw Tembe, jovem nascido na Suazilândia, mas há vários anos estabelecido em Portugal, com um percurso académico traçado entre as Belas Artes e a Escola Superior de Música, entre a escultura e o som. O trompetista e compositor falou sobre Drawing Circles, sobre os processos criativos que culminaram na obra agora apresentada, mas também respondeu a questões sobre a relação algo distante que os afrodescendentes parecem ter com a prática do jazz entre nós.



Começo por perguntar: como é que este projecto surge e como é que estas pessoas se reúnem em cima deste Chão Maior?

O projecto surge de um interesse que eu já tinha em trabalhar em algo que eu estava a compor nestes últimos anos. Eu comecei a compor a partir de improvisações ao trompete e queria, de algum modo, expandir esse material para um ensemble maior. Já tinha várias pessoas com quem queria trabalhar, entre as quais o Norberto Lobo, com quem já tinha tocado em várias situações — a última tinha sido em quarteto no disco Estrela. Havia, por exemplo, o Ricardo Martins, baterista. Foi sempre alguém com quem quis tocar, muito pela forma como ele se expressa tanto fisicamente com instrumento como pelas ideias musicais, obviamente. E depois pensei ter uma secção de metais e as escolhas para mim foram óbvias: o João Almeida, que é um trompetista com quem me tinha cruzado na Escola Superior, o Yuri Antunes, no trombone, e por fim temos a Leonor Arnaut, com quem já existia o desejo de fazer algo mais sério e também foi um dos encontros que se deram na Escola Superior de Música. 

As composições que tu estavas a referir foram adaptadas ao ensemble ou foste à procura do ensemble exacto que pudesse interpretar as composições com os arranjos que já tinhas na cabeça?

Já tinha esses rascunhos de trompetes, que eram apenas improvisações e melodias de trompete. Fui escrevendo este material com a ajuda do piano e fazendo esse arranjo. No fim, basicamente, acabei com uma estrutura destas composições para quatro vozes monofónicas, guitarra e bateria. E a bateria surge aqui como disruptor que vai um pouco contra o movimento pensado da melodia em específico. É como se a bateria estivesse num outro plano, por assim dizer. 

Como é que escreves? Estou a reparar que atrás de ti tens umas pautas… [risos] estas revelações do Zoom dão para às vezes espreitarmos um bocadinho para dentro da vida das pessoas. Há quem escreva directamente no papel, há quem tome ideias melódicas gravando-as… como é que tu abordas esse processo de escrita?

Voltando um pouco atrás, estas improvisações surgiram (ou foram gravadas com um gravador portátil), grande parte delas, no meio de viagens… paisagens e situações fora do contexto urbano onde estava apenas eu, o trompete e essa paisagem “natural” e a gravação. A partir desse material pré-gravado comecei a experimentar harmonias no piano e fui escrevendo, em notação convencional para várias vozes e aos poucos fui experimentando. Enquanto acontecia este processo de composição, ia também tendo o primeiro contacto com o grupo e fazendo pequenas modificações no material que estava escrito. Material este que também esteve sempre muito aberto para interpretação e improvisação. Nunca foi uma coisa estanque. 

Ia-te perguntar sobre isso, se nas tuas composições já deixas esse espaço para no momento da gravação permitir essa invenção espontânea ou se havia direcções mais apertadas para os teus músicos.

Não estava pressuposto no sentido em que fazia parte da própria composição a existência dessa improvisação. E os imprevistos que isso traz. Dito isto, acabo sempre por propor um ponto de partida (ou uma direcção) da improvisação para não ser algo completamente descontextualizado.

Tu acabaste de revelar que muitas dessas ideias iniciais das composições nascem de encontros solitários com a natureza, se calhar com sítios onde tu sentes que esse chão é mesmo maior. De onde é que vem esse nome? Certamente que há uma ideia filosófica/espiritual por trás do nome.

O nome, em específico, vem de um esforço colectivo, assim de um brainstorming… mas o que estava como base para esse brainstorming era esta ideia de pensar numa música que se relaciona com o solo, neste caso com uma coisa concreta, se calhar um pouco em oposição a algo mais etéreo ou mais abstracto. A própria música vem destas derivas que têm essa relação com o solo muito presente. Por isso a ideia de chão estava presente. Depois acho que tem muito a ver com esta ideia de expansão também. Há uma coisa concreta, que é o chão, mas que se alastra. Da mesma forma que na música, na composição, esse espaço para improvisação existe e a música pode crescer nesse sentido. A relação com o chão vem daí, de não ser uma coisa delimitada num território muito específico e um território que já conhecemos. Interessa-me (e interessa-nos) essa busca por mais do que um chão fechado em si próprio.

O disco foi gravado no Convento de São Francisco, em Montemor-o-Novo. Estiveram em residência? Passaram o tempo juntos? Como é que foi esse processo de colocar no disco rígido do computador as ideias, as composições, etc.? Como é que decorreu essa interacção?

Já tínhamos algum tempo de ensaio antes da gravação. E acho que as ideias já iam bastante definidias, por assim dizer, em relação ao que íamos fazer. Mas tivemos realmente alguns dias para alastrar ainda mais essas ideias. Gravámos nesse espaço, o Convento de São Francisco, onde estão as oficinas, e foi em formato residência. Tivemos três ou quatro dias para gravar, fazer vários takes, voltar atrás, ouvir e houve um tempo também para escolher o que era bom.

As composições têm nos títulos as palavras “Círculo” ou “Passos”. A ideia que eu tenho em termos musicais do “Círculo” é uma estrutura em que não há uma hierarquia, que estão todos voltados uns para os outros e não há propriamente um lugar superior. Estou a ler bem a coisa? Foi essa a ideia na nomeação das diferentes peças? Ainda não falámos nos “Passos”… imagino outra coisa [risos]. 

Diria que o Chão vem dessa postura sem hierarquias. Mais do que os “Círculos”. Sem dúvida que o círculo também pressupõe essa inexistência de vértices, mas a ideia de círculo acaba por vir deste lado cíclico das próprias composições, de serem pequenos fragmentos que se vão repetindo e que nessa repetição quase que vão limando estas arestas ou vértices até à formação desta forma paradoxal como crio o projecto. Não são composições limpas, há muita imperfeição que é assumida como tal. Mas tem muito a ver com este fragmento que se vai repetindo e sinto isso como a formação de vários círculos. A repetição de um movimento acaba por criar um ciclo. 

Fui agora conferir: a gravação já data de 2019 e entretanto pelo meio houve este estranho ano de 2020. Este Chão Maior já se apresentou alguma vez ao vivo ou ainda não houve essa oportunidade?

Antes da gravação já tínhamos dado alguns concertos, todos aqui pela zona de Lisboa, Setúbal. No Out.Fest, no Barreiro, na ZDB. 

O exacto ensemble que gravou?

Sim. Por acaso no nosso primeiro concerto o Ricardo Martins não pôde tocar, então veio o Sebastião Bergmann. Mas ele já estava na banda, foi só uma questão na agenda.



O que é que acontece à música quando chegam a palco? Transforma-se? É muito fiel à gravação?

Acho que há o interesse de esticar ainda um pouco mais esses movimentos contidos em cada fragmento, por isso em concerto temos pegado em menos peças e estendemo-las e ver até onde podemos levar esse movimento circular e cíclico.

Deixa-me recuar um bocadinho. Esta é a tua primeira entrevista para o Rimas e Batidas, e eu queria também dar um bocadinho de contextualização do teu percurso. Há bocado falavas da Escola Superior de Música: foi aí que fizeste o teu percurso académico? Fala-me um bocadinho da tua formação. Como é que foste parar ao trompete?

Se calhar [começo] do fim para trás. A experiência na Escola Superior de Música veio como uma necessidade de, não vou dizer colmatar… em que me interessei em ter uma formação mais… eu senti que o meu percurso como músico até à data precisava de mais foco. Questões mais técnicas ligadas ao instrumento e até à aprendizagem de uma abordagem mais clássica na vertente jazz. E veio com esse necessidade que senti que me fazia falta na altura. Isto porque a minha relação com a música estava muito ligada a uma vertente mais experimental, por assim dizer, porque eu antes de estar na Escola Superior de Música tinha estudado Escultura nas Belas Artes, e daí surgiu uma abordagem mais experimental à música e ao som não ligada ao jazz de uma forma conservadora, se quisermos dizer dessa forma. 

Há uma problemática que eu gostava de abordar contigo e que se prende com a ideia do ensino e que tem a ver com um paradoxo, ou pelo menos algo que eu identifico como tal. E esse paradoxo tem a ver com a falta de afrodescendentes no ecossistema jazz português. Recentemente, em conversa com uma saxofonista britânica, a Nubya Garcia, eu dizia-lhe que é incrível como neste momento presente da cena jazz britânica há muitas mulheres, muitas mulheres negras, muitas artistas solistas, quando por exemplo na cena jazz portuguesa as mulheres estão quase sempre circunscritas ao microfone e à voz, e ela dizia-me que se essa variedade acontece em muito se deve à estrutura de ensino que se impôs nas últimas décadas no Reino Unido. Porque é que tu achas que não há mais músicos afrodescendentes em Portugal a fazerem jazz? Particularmente falando do jazz, tendo em conta o peso histórico que África tem no jazz. 

É um tema complexo. Eu acho que há vários pontos por onde ver essa questão. Primeiro, de forma bastante aberta, sem dúvida que o jazz acaba por ser uma forma bastante elitista. E acho que em Portugal isso também acontece. E sendo elitista põe de lado bastantes comunidades que não fazem parte dessa elite, incluindo a comunidade africana e de afrodescendentes. 

Quando dizes que é muito elitista, falas do facto dos instrumentos serem caros? De nem toda a gente ter acesso a comprar um bom saxofone ou bom trompete? Tem a ver com isso?

Tem não só a ver com isso, mas por exemplo se pensares nas escolas que existiam em Portugal, percebes que não eram baratas, não é? E é tudo uma questão de contexto. Não é barato ires para um Hot Clube. Não é fácil pensar em ir para o ensino superior, que também não é barato. E todo o contexto que há no jazz em Portugal, ou em grande parte dele, é criado por esse grupo que tem meios de pensar nessa formação e tudo o que vem depois dessa formação. 

Tenho conhecimento de vários projectos ligados a outras formas de arte, da dança ao teatro, que se inserem nas comunidades. Projectos que se desenvolvem dentro dos bairros para tentar captar novos talentos, novos interesses e até formar novos públicos. Ou seja, o teatro vai ao bairro, a dança vai até ao bairro e não estão à espera que seja o bairro a ir até às salas onde acontecem essas manifestações artísticas. O jazz não deveria também estar a fazer esse trabalho de procurar ir até essas comunidades?

Sim, sem dúvida, e quando digo que é elitista é precisamente nesse sentido. Nunca houve interesse em chegar a essas comunidades. E agora a questão que também se coloca é: qual é o interesse dessas comunidades em deslocar-se ao espaço elitista ou a uma forma de arte que em Portugal está associada a um nicho? E aí há mais uma vez uma coisa complexa: há várias formas de expressão que são criadas nesses bairros que são legítimas por si só. Não acho que as pessoas no bairro precisem de tocar música clássica, levando ao extremo, para o que é feito no bairro ser validado. Acho que é importante deixar isso claro. 

Agora, é isso: é preciso ser-se crítico na falta de opções a que certos grupos estão sujeitos. E acho que é bom, e de certeza que agora, por uma data de factores, começa-se a discutir ainda mais estas questões. E obviamente que as pessoas vão ser pressionadas a abdicar um pouco dos seus nichos. Dois exemplos disso são a Orquestra Geração e de facto há mais músicos negros ou afrodescendentes a tocar hoje em dia no contexto clássico do que há no jazz precisamente por esta questão da formação. 

Porque houve esse trabalho de ir ao encontro dessas comunidades e proporcionar-lhes essa oportunidade. 

E mesmo o caso que deste, da Nubya Garcia, e do Shabaka Hutchings, que vêm de programas que foram feitos em Inglaterra onde se deu esse foco para essas comunidades mais à parte. E passado 10 anos começam-se a ver os frutos.

Temos que dar aqui início a qualquer coisa… [risos]. Os teus projectos paralelos, nomeadamente GUME, também estão a gravar, não é? Também vai haver desse lado novidades em 2021, ou não? O que é que te reserva o calendário mais próximo?

Sim, estamos em misturas e gravações com GUME. Partimos desse ensemble mais… do núcleo. Para este álbum decidimos ter vários convidados, somos cerca de 13, 14 no total, por isso também é um processo demorado de gravar tudo e editar e misturar, mas para 2021 estará cá fora um álbum, se não houver surpresas maiores. Mas sim, é esse o plano. 

Para além de Chão Maior e GUME, há mais coisas na calha?

Sim, o duo com o Francisco Trindade aka Monsieur Trinité. Temos o duo que se chama Sirius e também estamos em preparações para gravações em breve. Com Zarabatana tivemos uma cassete editada no ano passado com Norberto Lobo como convidado e temos interesse em rodar um pouco o disco. E são esses os projectos musicais mais relevantes. 

Quais são as tuas expectativas, por um lado humanas, por outro lado artísticas, para 2021 tendo em conta o que aconteceu em 2020? Imagino que haja uma grande ansiedade pelo restabelecimento da normalidade. 

Sim, há sempre este estado de incerteza. Não saber no momento qual é o rumo que as coisas vão tomar. Se calhar no primeiro lockdown do ano passado havia uma esperança que isto podia ser uma forma de mudança social… acho que está pelo menos provado que tem de se manter essa pressão em todas as pessoas que estão a fazer as leis porque não vai ser garantido que esta incerteza por parte dos músicos e todos os que trabalham na cultura vá ser colmatada apenas de livre vontade pelas pessoas que estão na gestão disto. Acho que será sempre precisa essa pressão de quem está deste lado para que as coisas sejam mudadas para melhor. 


pub

Últimos da categoria: Entrevistas

RBTV

Últimos artigos