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Oficina Radiofónica é a coluna de crítica de música electrónica do Rimas e Batidas. Música Electrónica? Sim. Techno e footwork, house e hauntology, cenas experimentais, ambientais, electro clássico e moderno, drum n’ bass e dubstep, dub e o que mais possa ser feito com sintetizadores e caixas de ritmos, computadores e osciladores e samplers e sequenciadores e outras máquinas que façam “bleep”, “zoing”, “boom” e “tshack”.
[Cátia Sá] DA BARRIGA / Ed. Autor
Os sapos que se fazem ouvir, ruidosos, em “Estrela”, são como o néon em
One From The Heart, um símbolo artificial de um mundo que afinal de contas não passa de uma elaborada fantasia. E isso é que surpreende em
Da Barriga, álbum de estreia de Cátia Sá, artista que já conhecíamos como parte integrante de Guta Naki, projecto com que gravou
dois álbuns para a Meifumado, e como colaboradora em várias das “papilas” de
Lingua dos Octa Push. Mas a pop esquálida dos primeiros ou os graves tropicais dos últimos não têm real paralelo neste trabalho de estreia em nome próprio. Cátia escreve letras que jogam com ideias e com palavras, com rimas e subentendidos, com subtil escárnio e lúdico
nonsense, e na base instrumental ergue a tal fantasia rica de detalhes, com ruídos subtraídos da natureza ou das entranhas da cidade, fragmentos rítmicos que são ecos distantes de tipologias de clube, mas demasiado fragmentados para que se perceba o seu exacto ADN, e um onírico sentido melódico que nos remete para uma certa inocência
teen. Só que nada aqui é inocente: na extraordinária “Deusa da Poda”, que parece nascer de um qualquer “
glitch” dentro da mesma máquina que um dia nos deu
“Flat Beat”, o pulsar grave sustenta uma espécie de rap irónico em que se afirma que “puta é deusa” que “racha o pau” e “fica inteira”. Podia ser um hino, mas é apenas um deslumbrante pedaço de pop sério apontado não ao futuro, mas ao estranho presente em que vivemos embrenhados. Todas as canções aqui expostas (e são nove as faixas, mas com um pequeno interlúdio a quedar-se nos 15 segundos e dois momentos que pouco se estendem para lá da marca de um minuto) são servidas por uma envolvente seda electrónica que parece nascer da filtragem de uma difusa memória pop, todas são carregadas de luz e até mesmo a faixa de abertura, a já mencionada “Estrela”, desenhada com angelicais
loops de voz (e sapos…), refere o jardim da capital com o mesmo nome, e não um qualquer astro que possa ser visível num céu nocturno. Luz, fantasia, imaginação, refinamento poético, coordenadas mais do que suficientes para que não se perca Cátia Sá de vista (no próximo dia 6 de Março,
Da Barriga assume condição de cassete, com lançamento marcado para a ZDB, no Bairro Alto, em Lisboa).
[Peter Zinovieff & Lucy Railton] RFG Inventions for Cello and Computer / Pan
Peter Zinovieff é um visionário e um pioneiro, nome central da memória electrónica britânica que em 2015 mereceu uma generosa retrospectiva lançada por Peter “Sonic Boom” Kember. Estranhamente, no entanto, Zinovieff só agora edita o seu primeiro trabalho pensado como tal (a antologia lançada pela Space Age Recordings resultava de uma recolha de material de arquivo disperso e inédito, não um álbum
per se): uma colaboração com a violoncelista
Lucy Railton que surgiu, precisamente, na sequência da edição de
Electronic Calendar. Zinovieff, que esteve envolvido na criação do mítico
sintetizador EMS, nunca viveu da música (na
entrevista que me concedeu há uma década, em Londres, começou por explicar que a mulher com quem casou era muito rica, o que lhe permitiu ser uma das primeiras pessoas do mundo a ter um computador em casa), facto que ajuda a explicar a relativa obscuridade do seu nome e a sua parca obra publicada. No entanto, e como fica bem demonstrado neste trabalho agora lançado pela Pan, essa independência financeira também garantiu que Zinovieff nunca tenha abandonado o seu natural espírito inquisitivo. A demanda do pioneiro nunca esmoreceu, traço de carácter que o levou a desenvolver software de produção musical que usa, aliás, como ponto de partida para este encontro. Explica-se nas notas que acompanham este lançamento que a base para este conjunto de “invenções” (que se traduzem numa peça de 35 minutos) foram uma série de imaginativos improvisos de Lucy Railton no violoncelo, exercícios com que a artista (que antes nos deu
Paradise 94 através da Modern Love) procurou demonstrar os seus amplos recursos no instrumento. Manipulados e transformados por Zinovieff, esses improvisos são depois opostos a novas camadas de solos de Railton, num intenso e profundo diálogo que se traduz numa envolvente e hipnótica peça de tons glaciares, uma longa massagem para os ouvidos que se faz de harmonias dissonantes e de frequências de ressonâncias metálicas. Este trabalho chegou a circular ao vivo, em 2016 e 2017, em diversos festivais devotados às mais remotas linguagens experimentais. Em disco, sem a referência perfomática que se obtém com os dois músicos em palco, torna-se complicado perceber quais os sons debitados pelo computador, quais os que Railton executa no seu violoncelo, mas longe de ser um factor dissuasor da nossa atenção, a difusa natureza de cada frequência, drone ou fragmento harmónico é algo que convida a uma audição profunda que garante sempre extraordinárias recompensas.
[Priscilla Ermel] Origens da Luz / Music From Memory
O trabalho da
Music From Memory em torno de uma zona até aqui pouco explorada no cada vez mais nítido mapa musical do Brasil tem sido extraordinário. Os
dois volumes de
Outro Tempo revelaram uma série de incríveis nomes que circularam entre a electrónica e outras exploratórias paisagens musicais entre finais dos anos 70 e meados dos anos 90 do século passado e desse meritório trabalho de “cartografia” musical já resultou a reedição dos assombrosos álbuns
Memória das Águas e
Barracas Barrocas de
Fernando Falcão. A antologia
Origens da Luz é mais uma réplica desse tranquilo abalo editorial proporcionado pela Music From Memory. Na peça com que aqui no ReB se deu conta da eminente edição deste álbum, citava-se o
press release da editora holandesa para clarificar um pouco a biografia desta enigmática artista: “Explica a Music From Memory que Priscilla foi educada numa família de músicos de São Paulo tendo aprendido violoncelo e guitarra desde muito cedo. ‘Ela embarcou posteriormente numa viagem musical extremamente pessoal que se espraiou de origens centradas em Tom Jobim e Chico Buarque até ao registo de música do mundo natural e de comunidades ao seu redor. Cineasta e antropóloga de formação, Priscilla dedicou toda a vida a estudar a música universal’, refere-se ainda nas notas com que se apresenta
Origens da Luz. ‘Desiludida com a música clássica contemporânea vinda da Europa, ela passou longos períodos a viver com populações indígenas do Brasil, colecionando instrumentos que depois combinaria com sintetizadores e gravações de campo. Depois de ter estudado com o reputado mestre taoista Liu Pai Lin, ela integrou o passo lento do Tai Chi numa música que se liga intimamente com uma multiplicidade de culturas ao mesmo tempo que de forma inequívoca reflecte a sua alma brasileira'”. Empregando gravações de campo, fundindo dimensões acústicas e electrónicas, cruzando sintetizadores e efeitos com flautas, violoncelos ou guitarras acústicas, bem como recorrendo a uma série de pequenos instrumentos de percussão recolhidos entre o Brasil tropical e o Oriente tradicional, Priscilla Ermel usava o estúdio como a tela com que pinta mundos naturais, navegando num limbo entre alguma MPB, a new age e os mundos imaginados de Jon Hassell para nos oferecer delicadas aguarelas musicais, límpidas e líquidas, subtilmente mágicas e profundamente evocativas. Situar o lançamento dos seus álbuns —
Saber Sobre Viver (1986),
Tai Chi – Gestos de Equilíbrio (1989),
Cine Mato Gráfico (1990) e
Campo de Sonhos (1992) – ajuda igualmente a entender a música aqui apresentada como parte de um mais vasto puzzle montado numa época em que a tecnologia electrónica facilitou um novo tipo de exotismo musical. Priscilla Ermel passa a ser novo nome nesse fascinante universo. Façam favor de mergulhar.