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Ilustração: Riça
Publicado a: 30/01/2021

Techno, house, hauntology e outras ondas.

Oficina Radiofónica #51: Knok Knok / Light in the Attic Records

Ilustração: Riça
Publicado a: 30/01/2021

Oficina Radiofónica é a coluna de crítica de música electrónica do Rimas e Batidas. Música Electrónica? Sim. Techno e footwork, house e hauntology, cenas experimentais, ambientais, electro clássico e moderno, drum n’ bass e dubstep, dub e o que mais possa ser feito com sintetizadores e caixas de ritmos, computadores e osciladores e samplers e sequenciadores e outras máquinas que façam “bleep”, “zoing”, “boom” e “tshack”.



[Knok Knok] Gravidade / Base Recordings

Vem de muito longe a relação de Armando Teixeira com as máquinas: quando, em 1993, lançou finalmente o solitário registo dos Ik Mux, A Alma do Insecto, a dupla de synth pop que tinha criado com Paulo Coelho uns bons anos antes já se tinha desmembrado, ficando então o músico com caminho livre para se ligar aos bem mais pesados Bizarra Locomotiva e aos pioneiros Da Weasel, projectos em que se manteve algum tempo, mas de que se viria também a afastar (do grupo de Iniciação a Uma Vida Banal, primeiro, do de Homem Máquina um pouco mais tarde). No início do milénio, Teixeira estreou o projecto de canções Balla, na NorteSul, lançando mais 5 álbuns sob essa identidade (entidade?) nos 15 anos seguintes, num jogo de tensão com um lado mais nostálgico da pop que partia do sampling para mapear a sua própria memória musical, do easy listening ao synth pop. E depois veio o reverso dessa medalha, Bulllet, fantasia que ao longo de dois álbuns lançados na Loop:Recordings (e, já agora, importante referir, a bem da total transparência, que essa foi a editora que eu mesmo criei, em 2001, com D-Mars, aka Rocky Marsiano) aprofundava essa relação simbiótica com as máquinas ao explorar o terreno que se estendia entre uma certa ideia de hip hop e o universo das bandas sonoras e da library music.

Knok Knok, a dupla que Armando Teixeira mantém com o baterista Duarte Cabaça representa o depurar desse percurso anterior, a redução ao essencial desse curioso olhar sobre a história da música electrónica de que o veterano músico nunca abdicou. Os Knok Knok serão quase uma versão portuguesa da dupla Zombi de Steve Moore e A.E. Paterra, no sentido em que também baseiam a sua arquitectura sonora na dinâmica que se estabelece entre as texturas electrónicas de recorte mais analógico e o pulsar humano, mas ainda assim metronómico, da bateria. Mas se os norte-americanos buscam o essencial das suas referências no eixo Goblin / John Carpenter, reimaginando os códigos das bandas sonoras clássicas dos slasher movies a partir de uma perpsectiva algo roqueira, os portugueses preferem navegar no vasto oceano kosmische-kraut-synth pop que entre os anos 70 e os anos 80 se estendeu dos Neu! aos Human League.

No álbum anterior, que a Base Recordings também lançou em cassete em 2017, Armando Teixeira foi generoso na revelação do seu “arsenal”: Synth Bass Roland GR33B, Minimoog, Multimoog, Buchla Music Easel, Oberheim OB8, Yamaha CS30, Yamaha SK30, Korg MS20 e Sequential Circuits Pro One foram as peças que dispôs no seu tabuleiro de calculado xadrez, num jogo de reinvenção de coordenadas e referências que resultou numa entusiasmante, embora talvez demasiado discreta obra. Pode ser que ao segundo álbum, o agora lançado Gravidade, essa relativa invisibilidade se possa mitigar, já que a dupla merece toda a atenção que lhe conseguirem dispensar.

Desta vez não há, pelo menos na página Bandcamp respectiva, enumeração dos instrumentos usados, mas a lista não há-de, certamente, ser muito distante da que foi anteriormente revelada. O pulsar analógico dos volts continua a sobrepor-se à alquimia digital dos zeros e uns, pelo menos a acreditar no carácter do som de que se faz esta Gravidade. O grupo confunde um pouco as coordenadas da identidade ao oscilar entre títulos em inglês (“Molds and Yeasts”, “Spherical Space”, “Maze”, “Contact Improvisation”…) e português (“A Matriz”, “7 por 4”, “Centopeia”, “Osso Rugoso”), mas o que pode resultar dúbio na estratégia de nomenclatura, é concreto no que ao som diz respeito: há aqui uma visão panorâmica que alcança passado e futuro, mas que é decididamente fruto das ideias de uma dupla que habita o presente e que a partir desse particular posto de observação investiga o que é ainda possível dizer sobre as emoções humanas usando máquinas.

E na música que nos puxa em Gravidade encontram-se ecos da minimal wave mais experimental que emergiu na Inglaterra do pós-punk e que se espalhou em cassete pelos subterrâneos de todo o planeta, mas também das experiências laboratoriais dos pioneiros do Radiophonic Workshop, das missões aos confins do cosmos operadas pelos musonautas do Kraut, das depurações pop da geração de 80 que escolheu os primeiros sintetizadores baratos em vez das guitarras eléctricas e daí até ao infinito oceano em que se mergulha de cada vez que se abre o browser no Bandcamp e se começa a navegar pela electrónica que do México ao Japão parece ter estabelecido um verdadeiro esperanto maquinal.

Os arranjos são muitas vezes inusitados e surpreendem, como em “Which Way is The Wind”, com o grupo a deixar claro que o que pretende não é mimetizar linguagens já testadas e cristalizadas, antes combinar todas as coordenadas estudadas ao longo dos anos em algo de diferente. Esta Gravidade que nos puxa para um centro não é apenas física, é também temporal, porque nos mantém os pés – e os ouvidos – fincados e focados no presente, e humana, porque nos pretende dizer que é ainda no que em nós permanece de humano que devemos encontrar as respostas, não no que circula, “partilhado”, através das fibras ópticas em que agora viajamos. O futuro talvez parecesse mais interessante vislumbrado do passado (já há mais de 20 anos que devíamos ter bases na lua, certo?), e o passado talvez não seja assim tão incrível como às vezes procuramos acreditar quando o medimos a partir dos artefactos que resistiram ao tempo. A única certeza que temos é que o tempo de que dispomos é o que se faz presente. E esse os Knok Knok sabem usar da melhor maneira: escutem “Maze” e digam lá se não é o “Opening Theme” perfeito para o filme que o estranho tempo em que actualmente vivemos tem feito projectar nas nossas mais delirantes imaginações…



[Vários Artistas] Somewhere Between: Mutant Pop, Electronic Minimalism & Shadow Sounds of Japan 1980-1988 / Light in The Attic

Nos últimos anos, a editora de Seattle Light In The Attic impôs-se como uma das referências incontornáveis do ultra fértil ecossistema de operações que procuram no passado os tesouros musicais que ajudam a enriquecer o nosso presente. Ainda esta semana se mencionou a etiqueta criada por Matt Sullivan e Josh Wright na outra coluna temática de crítica aqui da casa, Notas Azuis, a propósito das antologias Si Para Usted, focadas na música de Cuba. De facto, ao longo dos anos, a quantidade de aventuras de prospecção “arqueológica” conduzidas pela LITA em terrenos “exóticos” (e o termo é válido tanto em termos geográficos como estéticos) é assombrosa: da soul e do funk clássicos da própria Seattle à clássica cena reggae de Toronto, da obra da referência máxima do rock psicadélico da Coreia do Sul até uma das primeiras grandes incursões nos obscuros domínios da New Age, passando pelo hard rock criado por nativos americanos ou incontáveis e ultra oportunas recuperações de peças-chave das obras de iluminados como Marcos Valle, Sugarman, Lee Hazlewood ou Karen Dalton, para não nos alongarmos demasiado.

O Japão tem merecido dedicada atenção por parte dos responsáveis pela gestão do catálogo da LITA: o grande Haruomi Hosono, figura tutelar do lado mais avançado da pop japonesa, mereceu a sua própria série de arquivo, mas há uma série de outros olhares mais amplos para a produção musical nipónica que nestes últimos três anos se traduziram em importantes edições do selo de Seattle. Um tomo dedicado à folk e ao rock de finais dos anos 60 e inícios dos anos 70, para começar, mas sobretudo as importantes antologias dedicadas ao que a LITA descreveu como Japanese City Pop (que já avançou para segundo volume) e Japanese Ambient, Environmental & New Age. Nem de propósito, Somewhere Between: Mutant Pop, Electronic Minimalism & Shadow Sounds of Japan 1980-1988cobre a “zona cinzenta” que se estendia entre esses dois vastos terrenos explorados nas duas antologias referidas atrás. Hosono, refira-se, marca presença em todos estes diferentes retratos da produção musical japonesa.

Neste volume, que tem curadoria repartida entre Yosuke Kitazawa e Mark “Frosty” McNeill (da dublab), a música assume um recorte mais angular, decididamente electrónico, subtilmente experimental, procurando expandir as ideias que os Yellow Magic Orchestra de Hosono, Yukihiro Takahashi e Ryuichi Sakamoto desde que se estrearam em disco, em 1978. A quebra das barreiras da língua pela erosão do tempo que aumentou o interesse do presente pelas mais inexploradas ou remotas regiões pop do passado (pense-se no recente interesse editorial pelas declinações psicadélicas turcas, pelas formas dançantes africanas ou, como indica o caso em análise, pela modernidade pop japonesa) tem  permitido que uma avalanche de reedições do que de melhor se produziu no país das marcas de electrónica musical mais avançada. Essa explosão tecnológica comandada por marcas japonesas como a Roland ou Yamaha, ao nível das ferramentas para fazer música, ou pela Pioneer e Technics, no que ao consumo dessa mesma música diria respeito, justifica muito do avançado carácter da produção que se documenta nesta Somewhere In Between. Esta era, de facto, música que se deleitava na exploração das possibilidades oferecidas por essas novas tecnologias, o resultado da experimentação em laboratórios que procuravam reinventar o próprio tecido aural da pop.

Entre o cetim sintético dos sintetizadores digitais que então entravam no mercado e que marcam a pop inocente com ecos de italo-pop de Noriko Miyamoto ou o “exotismo” “quarto-mundista” dos Mkaju Ensemble de Midori Takada e daí ao pulsar pop de transparência absoluta explorado pelos Dip in the Pool de Tatsuji Kimura e Miyako Koda que chegaram a ter o seu álbum de estreia, Silence (de que se retira, aliás, o delicioso “Hasu No Enishi” incluído neste retrato antológico), lançado na Europa em 1986 através da muito atenta Rough Trade, há por aqui muitas sonoridades absolutamente entusiasmantes que convidam ao mergulho no vórtice a que o alinhamento nos pode conduzir usando, por exemplo, o Youtube. Os Wha Ha Ha de Akira Sakata foram outro dos grupos que na primeira metade dos anos 80 recebeu atenção deste lado do mundo, quando a Recommended de Chris Cutler editou, em 1983, uma compilação em que reunia material dos dois registos lançados pelo grupo japonês um par de anos antes: “Akatere”, a peça aqui incluída, é uma peça de contornos absurdistas, algures a meio caminho entre a música concreta e o sunshine pop (e altamente recomendada, pun intended, é também a versão ao vivo)!

Obviamente, cada uma destas antologias é pensada não como ponto de chegada, antes como sugestão para partida em direcção a universos sonoros que a geografia e as dinâmicas do capitalismo pop podem ter mantido ao largo das nossas atenções quando originalmente se lançou todo este material. Nada que o Discogs e alguma paciência/carteira funda (riscar o que não interessa) não ajude a resolver.

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