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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 28/01/2021

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #45: Apifera / Soul Jazz Records

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 28/01/2021

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.



[Apifera] Overstand / Stones Throw

Os israelitas Apifera são o grupo que nasceu do combo montado por Rejoicer para tocar algum do seu material, tanto em sessões de estúdio como ao vivo. O ano passado, o produtor e multi-instrumentista lançou Spiritual Sleaze na norte-americana Stones Throw e depois viu-se obrigado a cancelar a respectiva digressão de apresentação, facto que procurou contornar oferecendo aos fãs que já tinham manifestado intenção de o verem em palco uma série de performances ao vivo captadas em vídeo. Esse material foi depois reunido no EP digital Spiritual Sleaze Live em que Rejoicer, encarregue de vários sintetizadores, contava com os préstimos do seu irmão Nomok, também em teclados, e do baterista Amir Bresler.

Ora, Nomok volta a surgir em 4 das 10 faixas de Overstand, o álbum de estreia do novo projecto de Rejoicer, o quarteto Apifera criado com a ajuda de Amir Bresler e ainda do teclista Nitai Hershkovits e do baixista Yonatan Albalak. Na verdade, todos esses músicos já tinham participado nas sessões de estúdio que renderam material diverso para os dois álbuns que Rejoicer já tinha adicionado em nome próprio ao catálogo da Stones Throw: além do já mencionado Spiritual Sleaze, o músico e produtor lançou na editora californiana o álbum Energy Dreams, em 2018. E terá sido desse impulso particular nascido da acção colectiva que surgiu o projecto Apifera. O nome, que referencia uma orquídea particularmente apelativa para as abelhas, reflecte não apenas uma proximidade espiritual com a natureza, mas o próprio carácter orgânico da música gerada pelo quarteto.

Nos temas “Overstand” e “Notre Damn” o quarteto conta ainda com os préstimos de uma secção de sopros composta por Sefi Zisling (trompete), Yair Slutzki (trombone) e Shlomi Alon (saxofone e flauta), o que lhes expande significativamente a paleta tímbrica da sua música, imprimindo uma aura ainda mais espiritual a cada uma das peças. Curiosamente, no entanto, e tratando-se de música instrumental, o grupo nunca cede aos longos formatos de teor mais indulgente, com o tema mais longo a não se esticar muito para lá dos 4 minutos e meio e o mais económico a quedar-se logo abaixo dos 2 minutos, opção que revela muito acerca das intenções do grupo.

O ingresso de Rejoicer na Stones Throw não terá certamente sido acidental: a sua música enquadra-se no devir sampladélico que sempre animou o catálogo orientado por Peanut Butter Wolf e mesmo quando faz uso, como mencionado, de músicos em estúdio, o produtor organiza sempre o seu material como quem escuta com ouvido criativamente afinado uma colecção de discos em busca de material para samplar. A música de Apifera soa por isso mesmo como uma espécie de depuramento estrutural do jazz de facção mais espiritual ou de fusão que tantas “viagens” inspirou na década de 70 e 80, retendo o pulso, o perfil cromático e harmónico, mas abdicando das derivas mais abstractas e libertárias que muita dessa música apresentava. Como se o quarteto tivesse passado muito tempo a escutar clássicos como Mwandishi daí retirando apenas os momentos em que o colectivo liderado por Herbie Hancock se cristalizava num groove propulsor apontado às estrelas. Por isso mesmo, embora a estirpe técnica de Rejoicer e restantes companheiros seja de gabarito, não há por aqui propriamente qualquer cedência a alguma tentação de exibição gratuita de proficiência instrumental, preferindo-se antes, como tão bem demonstrado, por exemplo, em “The Pit & The Beggar”, a exploração de nuvens de cromatismo analógico por via dos sintetizadores, enquanto a secção rítmica assume a cadência fluída que faria qualquer beat digger sorrir caso com algo semelhante se cruzasse ao passar os ouvidos por uma banda sonora de blaxploitation dos anos 70.

Overstand traduz-se, portanto, em grooves fluídos, orgânicos, como um ecossistema feito de sinuosas linhas de baixo, estremecimentos tectónicos precisos na bateria e densas neblinas sintetizadas que nos rodeiam e transportam para um oásis que por vezes permite entrever nas suas melodias a distinta origem cultural destes músicos. Muito mel por aqui, sem a menor sombra de dúvida.



[Vários Artistas] Cuba: Music and Revolution / Soul Jazz Records

Muito antes das redes sociais, no início do milénio, uma comunidade internacional de diggers reunida no mítico fórum da Soulstrut começou de forma pioneira a discutir novos filões para a incessante escavação de grooves que tanto inspirava DJs a partirem em busca de novas orientações para os seus sets como produtores a irem ainda mais fundo nas suas investigações sampladélicas. Muito do que os anos seguintes revelaram nos terrenos da library music, disco, jazz, soul ou música africana foi por ali inicialmente discutido e dissecado. O canadiano Dan Zacks era um dos mais activos membros da comunidade Soulstrut, autor de um pioneiro podcast de título Happy Jazz Show e mentor da crew Waxing Deep. E foi ele que em 2006 lançou, primeiramente em CD e através do seu próprio selo, a compilação Si, Para Usted revelando ao mundo que a música de Cuba ia bem para lá daquilo que alguns anos antes Ry Cooder nos tinha mostrado com Buena Vista Social Club.

Com o subtítulo  The Funky Beats of Revolutionary Cuba, Si, Para Usted rendeu dois volumes que a editora de Seattle Light In The Attic haveria de relançar em vinil em 2010. O material, masterizado a partir das fitas originais, deixava claro que o país comandado por Fidel Castro não tinha ficado imune aos libertários movimentos do funk que as rádios de Miami faziam chegar com alguma facilidade aos transístores de Havana.

Claro que os espantosos alinhamentos dos dois tomos de Si, Para Usted lançaram muita gente por todo o mundo em busca dos originais de colectivos como os Irakere, Grupo FA5, Orquesta Riverside, Sintesis ou Combo Tiempos Nuevos, todos lançados através do progressivo selo Areito, o “carimbo” mais popular usado pela estatal Empresa de Grabaciones Y Ediciones Musicales (EGREM). E se quem busca pedaços relevantes de passado impresso em vinil sabe bem que Portugal sempre foi terreno fértil, por razões mais do que óbvias, para a música brasileira ou dos PALOP, menos fácil de entender será porventura a relativa facilidade para se encontrar por cá material lançado pela já mencionada Areito. Menos fácil pelo menos até nos lembrarmos que há mais de quatro décadas que o stand devotado à cultura cubana na Festa do Avante vem sendo responsável por um fluxo contínuo de interessante vinil para o nosso país…

Para lá da elevadíssima qualidade da música e dos músicos – como demonstrado não apenas nas mais genuínas declinações do son, mas também nas modernas investidas pelos terrenos do jazz, da canção de autor ou das tais aproximações ao r&b, soul e funk –, o que os discos encontrados por cá foram deixando claro é que também a componente gráfica das capas era de elevada qualidade e de distinto carácter, espelhando em muitos casos a história da própria revolução cubana. Essa riqueza visual é muito bem explorada no livro que Gilles Peterson e o patrão da Soul Jazz Stuart Baker lançaram há algumas semanas. Cuba: Music and Revolution – Original Album Cover Art of Cuban Music é mais um incrível coffee table book que funciona não apenas como um impressionante bálsamo para o olhar, mas também como um valiosíssimo guia para quem procure aventurar-se nos vastos terrenos desta incrível nação musical. A dupla de editores já tinha assinado a curadoria de dois tomos semelhantes focados na Bossa Nova do Brasil e no jazz libertário do período do Civil Rights Movement dos Estados Unidos e possui também por isso afinada experiência na execução deste tipo de projectos graças a um olhar treinado por décadas de intensa actividade colecionista. Peterson tem aliás comandado vários projectos com músicos em Cuba e isso há-de certamente ter facilitado o seu acesso aos arquivos da EGREM bem como a obtenção da necessária bênção institucional do governo cubano. O resultado é uma preciosa obra que pela primeira vez reúne e documenta um acervo que poucos fora de Cuba conheceriam com esta profundidade.

E, pois claro, um livro assim merece uma banda sonora à altura. A compilação agora editada refere que reúne “Experiments in Latin Music” lançados entre 1975 e 1985. Como seria de esperar, vários dos nomes selecionados por Peterson e Baker já constavam nos dois volumes de Si, Para Usted, embora apenas num par de casos haja coincidência na escolha de reportório: os Irakere, Los Van Van, Grupo Monumental, Grupo de Experimentación Sonora Del ICAIC, Los Reyes ’73, Los 5 U e Juan Pablo Torres Y Algo Nuevo também tinham sido escolhidos por Dan Zacks para as suas compilações de há 15 anos, mas a proposta que a Soul Jazz acaba de lançar adiciona a essa lista outros válidos argumentos musicais a cargo de Conjunto Rumbavana, Juan Formell (com Los Van Van), Las D’Aida, Pablo Milanés, Emiliano Salvador, Eduardo Ramos, Orquesta Ritmo Oriental, Paquito D’Rivera ou Raúl Gómez alargando na verdade o que era o mais apertado foco musical que norteava Si, Para Usted.

Claro que há por aqui doses generosas de grooves dançantes de toada jazzy (Grupo Irakere, Las D’Aida, Pablo Milanés), sensuais leituras big band de son (Conjunto Rumbavana), pontes entre a Salsa e África servidas por incríveis linhas de baixo sintetizadas (Juan Formell), explosões multi-coloridas de metais (Grupo Monumental) e progressivas incursões pelo jazz (Grupo de Experimentacion Sonora Del ICAIC), mas também há espaço para abstracções pianísticas de recorte tropical (Emiliano Salvador), funk electrificado com motores movidos a rum (Los Reyes 73), pesados breaks baterísticos com vozes psicadélicas em cima (Eduardo Ramos), suaves derivas acústicas pelas margens do sunshine pop como se Havana fosse mesmo ao pé da Califórnia (Los 5 U 4)  e até piscadelas de olho aos morros do Rio de Janeiro (Raúl Gómez). Prova clara de que a música de Cuba, mesmo com o país bloqueado economicamente pelo seu gigante vizinho, sempre teve vistas largas e imaginação rica.

Esta compilação merece o típico tratamento luxuoso oferecido com frequência pela Soul Jazz e está disponível em triplo LP ou duplo CD com extensas notas a acompanharem e a enquadrarem toda esta incrível música. Um festim total, portanto: para os olhos, para os ouvidos, para a alma e para o corpo. Viva Cuba, pois claro!

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