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Ilustração: Riça
Publicado a: 10/10/2020

Techno, house, hauntology e outras ondas.

Oficina Radiofónica #40: Sam Gendel / Danalogue x Sarathy / Machinedrum

Ilustração: Riça
Publicado a: 10/10/2020

Oficina Radiofónica é a coluna de crítica de música electrónica do Rimas e Batidas. Música Electrónica? Sim. Techno e footwork, house e hauntology, cenas experimentais, ambientais, electro clássico e moderno, drum n’ bass e dubstep, dub e o que mais possa ser feito com sintetizadores e caixas de ritmos, computadores e osciladores e samplers e sequenciadores e outras máquinas que façam “bleep”, “zoing”, “boom” e “tshack”.



[Sam Gendel] DRM / Nonesuch

Quando, a propósito de Satin Doll, falámos com Sam Gendel, o saxofonista e clarinetista teve o cuidado de nos explicar que enquanto músico não admite limitações e que não será o menor ou maior domínio técnico de um instrumento que ditará se pega ou não nele. A propósito do seu trabalho com a guitarra eléctrica, que até o tem levado, por via da sua amizade com Joachim Cooder, a tocar regularmente com o mestre Ry Cooder, explicou-nos então: “Arranjei o meu próprio sistema, não sou bem capaz de o explicar, mas os meus amigos guitarristas gostam bastante da forma como eu toco, mas também, quando me veem, não conseguem evitar perguntar: ‘que raio estás tu a fazer?’ [risos]. Porque, de facto, quando eu toco, percebo que possa parecer bizarro para quem é guitarrista. Mas eu gosto. E nem é só com a guitarra: eu sou capaz de pegar noutros instrumentos e fazer alguma coisa. Acho que enlouqueceria se só tocasse saxofone. Os outros instrumentos lembram-me o que é brincar na areia, de forma livre, fazendo formas estranhas. Com o saxofone isso também pode acontecer, mas é apenas bom ter uma ferramenta com que se pode criar sem preocupações técnicas, sem julgamentos mentais que podem surgir a qualquer momento”.

É esta disposição mental que ajuda a explicar o seu novo álbum, DRM, acabado de lançar com carimbo Nonesuch (e ao contrário do que sucedeu com Satin Doll, que mereceu lançamento amplo em CD e vinil, esta edição é exclusivamente digital, com distribuição em praticamente todas as plataformas costumeiras, embora o próprio Sam Gendel tenha feito uma micro-edição em cassete – apenas 150 exemplares — que ele mesmo está a vender através do Discogs). O músico elabora um pouco mais sobre este novo trabalho: “Imagino as pessoas a escutarem DRM e a pensarem: ‘Que raio é isto?’, como se tivessem acabado de ver um veleiro a atravessar os céus. Imagino-o como se alguém, daqui a muitos anos, ouvisse a música popular de hoje e depois a tentasse recriar sem ter acesso a nenhuma das ferramentas correctas ou sequer compreendendo o que estivesse a fazer. Estilisticamente”, acrescenta, “não está muito distante de muito pop-rap contemporâneo que se escuta na rádio. Muitas dessas bases electrónicas e instrumentais que se ouvem hoje em dia já tendem para algo bastante fora e experimental. É algo rítmico e pontilhístico, que cola elementos diferentes e aparentemente impossíveis de encaixar de formas imaginativas”. Pode, portanto, entender-se DRM como um estudo ou um elogio ao lado mais moderno da produção hip hop. E, de facto, ao longo das 14 faixas do alinhamento escutam-se oblíquas aproximações ao trap e ao mais moderno R&B, mas sempre com uma “lente” que distorce o objecto observado.

Gravado numa única sessão de 16 horas e com o material então obtido a ser depois trabalhado e manipulado em tempo real com a ajuda do percussionista electrónico Philippe Melanson, que já participava em Satin Doll, DRM foi criado com uma caixa de ritmos Electro Harmonix DRM32 com quarenta anos, vários sintetizadores vintage e uma velha guitarra acústica com cordas de nylon. Sam Gendel também usa a sua própria voz, sussurrando melodias sem grande apego à afinação convencional, o que o ajuda a criar estranhas passagens harmónicas, e recorrendo pontualmente a palavras, num fluxo de improviso em que importa mais o som do que propriamente o sentido. O que está completamente ausente desta gravação é, afinal de contas, o saxofone, que é “só” o principal instrumento de Gendel: “Não houve nenhum esforço activo da minha parte para não usar o saxofone; apenas não fez parte da equação quando comecei a gravar. Encontrei uma fórmula quando comecei a trabalhar com a caixa de ritmos DRM32 e segui-a. Também não me considero apenas um saxofonista, sou apenas alguém que trabalha na música”, explica no press release oficial de DRM.

Como vem acontecendo com cada vez maior frequência e até pertinência, este álbum conta igualmente com uma “tradução” visual para todas as faixas, com vídeos algo surreais e absurdistas gravados durante o período de confinamento nas redondezas da casa de Gendel por Marcella Cytrynowicz: “Os visuais não são necessariamente ditados pela música”, explica o artista, “mas ambos partilham uma aura levemente surreal, como se eu fosse um personagem de um jogo de vídeo que habita todos estes cenários diferentes”. Sam Gendel, posso garantir após ter assistido aos vídeos, foi comedido na sua escolha de advérbio de modo para classificar a tal aura surreal…

O álbum desenrola-se como uma versão psicadélica da rádio contemporânea, soando por vezes – como acontece logo na faixa de abertura, “3 Dollars”, ou, mais adiante, com “Super Woke Dada” – ao tipo de hip hop que Tom Waits poderia criar se de repente aceitasse um convite da Stones Throw para gravar um álbum de instrumentais: há um lisérgico sentido de deslocação temporal obtido através dos ritmos dolentes, mas também devido ao tipo de mistura e de efeitos usados, um pouco como se uma foto bem iluminada e enquadrada com todo o cuidado nos fosse mostrada não directamente, mas antes através de um daqueles espelhos de feira que deformam os reflexos. Ponto alto, sem a menor sombra de dúvida, é a sua versão para “Old Town Road”, o mega-hit viral de Lil Nas X, que, curiosamente, merece aqui um tratamento bem “jazz”, já que há primeiro uma subtil e gradual exposição do tema melódico principal, que depois é esqualidamente desmontado, tornando o todo um objecto tão estranho quanto inexplicavelmente viciante, com um arranjo absurdista de sintetizador e bleeps soluçantes.

Complicado mesmo é chegar ao final do álbum e resistir à vontade (necessidade?…) de o voltar a escutar imediatamente, porque DRM parece colocar-nos perante um enigma que sentimos ser possível resolver caso lhe devotemos mais alguma atenção. Só que não…



[Danalogue & Sarathy] Equinox / Ed. de autor

Discretamente lançado no passado mês de Julho, Equinox é um projecto que cruza os particulares talentos de Danalogue (o homem das electrónicas nos The Comet is Coming, projecto em que ainda militam Shabaka Hutchings e Max Hallett) e de Sarathy Korwar, o percussionista responsável pelo extraordinário More Arriving.

Apropriadamente lançado numa cassete (infelizmente já esgotada…), em tempos o formato de eleição nos terrenos da new age, Equinox resulta de trabalho efectuado durante o equinócio de primavera de 2018 (e daí o título) nos estúdios do Total Refreshment Centre, em Londres, seguindo todos os preceitos originais da música que hippies criaram com sintetizadores e instrumentos acústicos nas margens dos desertos da Califórnia no arranque dos anos 80 enquanto permitiam que os cristais refractassem a luz. Há até instruções: “Queimem incenso, ponham-se confortáveis, ponham a música a tocar, respirem profundamente”.

Em declarações obtidas através do Instagram (pura verdade…), Danalogue explicou ao Rimas e Batidas como tudo aconteceu: “Na altura em que fizemos o disco eu andava ocupado com os The Comet Is Coming e também estava a produzir um álbum dos Snapped Ankles – que eram ambos expressões muito energéticas e carregadas de fogo. E eu sonhava com fazer música que tivesse uma qualidade mais contida e meditativa, que fosse também o produto de uma atmosfera meditativa no estúdio. Queimámos muito incenso e salva branca e acabámos por nos elevar a uma zona assim algo fora do corpo! Nunca nos referimos a peças concretas de música, mas de facto eu tinha na cabeça discos soberbos de Kieran Hebden (Four Tet) e Steve Reid, no sentido de que se tratava de uma colaboração única, uma muito excitante colaboração entre dois artistas bastante diferentes entre si, um baterista expressivo e talentoso, e um produtor electrónico, que tocaram e gravaram ao vivo, de forma completamente improvisada”-

Equinox, explicam-nos ainda os autores, “nasce de um amor mutuamente sentido pelo trabalho um do outro e também por sons wonky, analógicos e psicadélicos”. E até se citam mais referências: “Terry Riley, Sun Ra, Isao Tomita, Don Cherry são alguns dos artistas que Danalogue e Sarathy quiseram canalizar nestas faixas”. Ainda Danalogue sobre o que.o atraiu na direcção de Sarathy Korwar: “Eu gosto realmente da forma de tocar do Sarathy”, garante. “Ele tem a capacidade de chegar à música de forma completamente imediata e presente, e toca de uma forma fluída, reagindo à vibração e também impulsionando a música de forma energética para a frente. Eu estava a trabalhar numa banda sonora para uma exposição sobre o Basquiat, estávamos num ensaio e os outros músicos ainda não tinham aparecido e começámos a improvisar e logo ali decidimos que precisávamos de gravar”.

Com a ajuda de Kristian Craig Robinson (multi-instrumentista e produtor que trabalha no Total Refreshment Centre e que aqui é responsável não apenas pela gravação, mas também pela percussão em “Inner Space” e pela flauta de bambu em “Major Goes Free”) e de Alabaster DePlume (que recita um texto e toca saxofone em “Amoeba’s Dream” e que desta forma retribui o facto de ter contado com os dois autores de Equinox no seu próprio To Cy & Lee: Instrumentals Vol. 1), Danalogue e Sarathy criaram, de facto, uma ultra-interessante homenagem à new age, com colorações quarto-mundistas pontuais (é para aí que nos remete a flauta de Kristian, mas também as espacializadas percussões) e um etéreo sentido de deriva, cruzando-se os sintetizadores do membro dos The Comet is Coming com o orgânico pulsar servido por Korwar.

“Inner Space” soa a encontro entre algumas marcas do jazz de fusão e outras subtraídas à new age, seguindo numa direcção que facilmente poderia desembocar na Brainfeeder, tal a sua ambiência cósmica e, sobretudo, a dolente cadência pontuada pela bateria de Sarathy que aí se apresenta no seu registo mais hip hop e ritmicamente contido. Já “Amoeba’s Dream” parece um tema encontrado numa dessas cassetes de new age que poderão ainda sobreviver em lojas de produtos orgânicos na beira das estradas californianas que levam ao deserto, com Sarathy a sublinhar com cadência algo tribal a voz hipnotizante de DePlume que também é responsável por um meditativo crescendo no saxofone.

O único real problema de Equinox é a sua brevidade (são apenas quatro peças, com pouco mais de 20 minutos no total), mas tal característica também convida a audições repetidas e imersivas que têm a real capacidade de nos transportarem para um outro lugar.



[Machinedrum] A View of U / Ninja Tune

É em termos de transcendente experiência espiritual que Machinedrum fala sobre A View Of U, título em que a vogal U representa a palavra e a ideia de Universo. Adepto de meditação, Travis Stewart explica que as experiências de abandono do plano físico que tal prática pode proporcionar lhe permitiram encarar o seu trabalho sob novas perspectivas: “A sensação de se estar fora do próprio corpo parece infinita. Parece o início da criação. Parece que torna possível o impossível. Parece estranho e familiar ao mesmo tempo. Parece assustador ao princípio, mas logo que se perde esse medo e se aceita a experiência tudo parece incrivelmente belo e capaz de mudar a vida. Quando me encontro na zona criativa”, explica o artista, “costumo perder a percepção do tempo, da identidade, do lugar. Quando me fui tornando consciente dessas experiências de abandono do corpo físico através da minha criação musical, podendo escolher que temas deveriam figurar no álbum através da meditação, percebi que este deveria ser o tema central do álbum”.

Formalmente, há nesta visão total aqui sugerida por Machinedrum a ideia de que esse universo a que o artista se refere é o da moderna música electrónica, aqui abordada de múltiplos ângulos, do hip hop ao r&b mais cromado, da EDM ao drum n’ bass, do footwork a várias declinações da caleidoscópica “bass culture” do presente, com Machinedrum a soar sempre como alguém que está focado no “big room” do clube ou no palco principal do festival: a sua música é abertamente maximal, expansiva, carregada de luz e de brilho, pontuada por crescendos dramáticos e servida por um inteligente sound design que parece ser o resultado do hoje necessário compromisso de tornar as criações tão válidas nos airpods quanto nos maiores e mais exigentes sistemas dos grandes clubes. E não é assim tão fácil criar música que faça pleno sentido em contextos acústicos tão diferenciados.

Sinal do estatuto conquistado por Machinedrum ao longo de uma carreira iniciada nos alvores deste milénio é a solidez da sua lista de convidados neste A View of U: Rochelle Jordan, Mono/Poly e Tanerélle, Freddie Gibbs, Father, Jesse Boykins III, Tigran Hamasyan, Chrome Sparks e Sub Focus representam um leque estético que se expande das mais modernistas zonas do R&B ao mais vital hip hop do momento, dos mais avançados laboratórios de criação de electrónica ao jazz contemporâneo, do synth pop ao drum n’ bass. E em todos esses contextos, Machinedrum ostenta uma eloquência a toda a prova, dominando as dinâmicas identitárias de cada uma dessas cadências como se toda a sua discografia se tivesse concentrado apenas nessa linguagem específica. Mas é no consciente e assertivo abraçar de todo esse universo que Machinedrum encontra o seu lugar. Daí a tal perspectiva mais panorâmica que refere ser possível de obter através de um estado de meditação profunda.

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