Digital

Smino

Luv 4 Rent

Motown / Zero Fatigue / Universal / 2022

Texto de Leonardo Pereira

Publicado a: 29/11/2022

pub

Se António Variações só estava bem onde não estava, Smino está bem em todos os sítios onde está. É com esta comparação que começamos a falar de Luv 4 Rent, terceira longa-duração do rapper de St. Louis, Missouri. Com 15 faixas e 50 minutos, é um projecto ambicioso que se distancia, pela sua duração, de alguns dos lançamentos recentes no universo do rap, como por exemplo Elephant Man’s Bones, Cheat Codes, Laughing So Hard, it Hurts e THE LIZ 2, que ficam todos pelos 38 minutos, mas aproximando-se de outros como The Forever Story e Mr. Morale & The Big Steppers. No entanto, esse não é o factor que separa este seu novo álbum dos restantes (e até dos seus dois primeiros discos). Explicamos o porquê de seguida.

O artista americano estreou-se oficialmente em 2017, com blkswn, cheio de baladas de amor, subtil mas assertivo, sensual e tingido com várias cores do r&b, tanto nas batidas como nas temáticas, com melodias vocais inspiradas na soul e adaptadas aos ritmos mais acelerados do hip hop, um conjunto de variadas cadências que circulam entre tons eróticos e de romance, interlúdios que aludem às suas experiências pessoais e fantasiadas, compondo uma cena altamente visual ao mesmo tempo que serve a banda sonora para o filme que está a realizar.

No ano seguinte, o músico lança NØIR, em que se junta a ostentação desenvergonhada às narrativas, mais algum peso aos graves das batidas e colaborações de semelhante volume à lista de faixas. Apesar do tom mais urbano do disco, tudo o que Smino faz de único na sua música continua bem presente, versos rappados, cantados, falados, refrões trepidantes ou que derretem corações, bridges que compõem um ambiente quente e sumptuoso, acomodado também por uma adaptabilidade ao tipo de história que está a contar, e disfarçando o amor e a intimidade que ele conta tão bem numa atitude mais directa e descritiva, usando os 808s com a intenção de ser óbvio e claro na mensagem que está a passar. Smino é um camaleão – faz-se sentir presente nas histórias que conta e convence o ouvinte de que esta, para ser bem contada, só podia sê-la por ele nos seus termos.

Luv 4 Rent é, até aqui, o pico da exibição do talento indiscutível de Smino. Antes de ouvirmos o disco, um amigo comentou que, para percebê-lo bem em toda a sua grandeza, seria necessário ouvir umas quatro ou cinco vezes e só a partir daí é que começaríamos a descortinar o quão brilhante é. À primeira audição, sabe tudo bem, mas sentimos que não o percebemos na sua totalidade. À segunda, há aqui uma ou duas coisas que temos de perceber melhor. À terceira, quebramos a primeira pepita do potencial ouro que é o álbum e de seguida entendemos que vamos ter de ouvir mais umas quantas vezes para ver todos os detalhes, ir a todos os cantos, ouvir todos os ad-libs, seguir os interlúdios de diálogo, ler todas as entrelinhas, enfim, para o apreciar na sua totalidade.

Desta vez, os pilares do amor e da ostentação alçados no catálogo anterior estão a servir de sustento para o pano de fundo verdadeiro: a comunidade em que Smino se insere: a primeira faixa, “4rm Da Source”, começa com Smi a dizer “Ok y’all, my lil’ cousin gon sing this next song”, uma reflexão sobre as suas famílias de sangue e de afinidade, uma indagação sobre a história e a evolução dele próprio e até as perspectivas que tem à volta do olhar americano sobre pessoas negras. Em termos conceptuais, esta exploração de narrativas mais profundas e mais emocionais resulta incrivelmente bem, acrescentando vários andares de textura no edifício que está a erguer, com o uso de interlúdios dialogados e monologados que ligam espaços mentais e psicológicos e que ajudam a visualizar situações, lugares e estados (físicos e mentais) com um detalhe magnífico. A composição do álbum, em termos de sequência de faixas, também é fruto de um esforço minucioso que nos faz perder dentro do projecto, usando os ditos interlúdios para viajar de um mood para outro, de um local na cidade para outro, de um quarto da sua casa de família para o quarto de uma das suas várias amadas, do carro onde se está a relaxar com amigos até à matiné festiva e tantos outros locais onde se passou tempo.

Há uma vertente orgânica nova nas beats (o disco conta com produções de monte booker, Cory Henry –membro dos Snarky Puppy –, Adam Sylvester, AJ Thomas, Amarah, Beat Butcha, Charlie Myles, Chi Chi, Childish Major, Daoud, DJ Dahi, Groove, Kal Banx, Nami, Phoelix, PRODXVZN, do próprio Smino e de Sucuki) que adiciona ainda mais detalhe sensorial às narrativas do álbum e permitem que a mistura de hip-hop, r&b e soul que aprimorou ganhe novas dimensões, acompanhadas pelos vocais irrefutavelmente lindíssimos, tanto cantados como rappados, mudando de tom, usando o pitch shift que se tornou ubíquo, mas de uma forma que cria a sensação de que é um conto que está a ser narrado, muito da maneira Kendrick Lamar tem usado, como uma ferramenta para adicionar uma personagem identificável e que serve um propósito no disco.

O flow tão caracteristicamente sulista (alguns diriam slurred) é controlado, apresentando um domínio sobre mudanças de métricas e de tom que nos surpreende sempre. Está constantemente a preparar a próxima punchline, com um wordplay que arriscaríamos dizer que está no top 3 actual; um número bastante grande de figuras de expressão é usada neste disco, por isso ficam algumas das barras que achámos maravilhosas:

“Caucasian driver, no top, Greg Popp / But the spurs on that bih we outside” – “No L’s”;

“We F’in to Lloyd the Mayweather / Got the box and now she want a ring”; “Busy you, busy me, like, how busy can busy be? / Hardly catchin’ Z’s, no fatigue / Hate it when it rain, Missy E” – “Blu Billy”;

“Darlin’, what’s you bargain? Let get it bustin’ like we Boston / Your n**** all simp, blew his head like hе Marge, damn … / Mike Wazowski, got my eye on her”; “Who smokin’? I’m on Mars right now, I feel like Bruno / Got eight pack, loud as drum, this shit deserve a drum roll” – “Pudgy”

Há pouco tempo comentava que este álbum partilha qualidades com outros discos icónicos que se cimentaram como auges dos artistas que os criaram. Acho que a questão fulcral da qualidade deste disco é que não o conseguimos etiquetar de qualquer maneira – a natureza camaleónica de Smino, a sua extraordinária voz poética, lírica e narrativa, o brio na produção e na execução de um conceito, viabilizado por uma atenção ao detalhe e por um esforço inegável, faz com que a sua arte se destaque no panorama onde se insere. O artista recusou respeitar limites (auto-impostos ou impostos por outros), e simplesmente exerceu a sua liberdade no processo, limou as arestas, deixou-se envelhecer e construiu uma peça de música que sobreviverá à passagem do tempo. Um dos melhores álbuns de 2022 e a oficialização de Smino enquanto criativo de topo.


pub

Últimos da categoria: Críticas

RBTV

Últimos artigos