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Roc Marciano & The Alchemist

The Elephant Man's Bones

ALC / Marci Enterprises / EMPIRE

Texto de Rui Miguel Abreu

Publicado a: 06/09/2022

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Há que imaginar a cena: após tomar a decisão de avançar para um álbum inteiro com beats de Alchemist, Roc Marciano há-de ter passado um bom bocado a ouvir música enviada pelo produtor de Los Angeles, curvado sobre o seu laptop, sempre em busca daquele hook com densidade cinemática capaz de suportar o seu icónico flow. Naturalmente, o rapper nova-iorquino tem preferência por melancólicas peças tingidas de jazz fumarento, soul nostálgico e Alc tem uma particular capacidade de produzir música com essas qualidades, bafejada por espectrais pianos e cordas sombrias. O autor do clássico Marcberg deverá ter escutado dezenas de beats, mas encontrou as 14 peças perfeitas para dispor no seu tabuleiro. O resultado é este The Elephant Man’s Bones.

O Homem Elefante, Joseph Merrick, foi uma figura real que o cinema, o teatro e a história médica transformaram numa espécie de mito. Relíquia de uma era de transição, a sua figura deformada e trágica história inspiraram performances icónicas de John Hurt ou David Bowie e terão até levado Michael Jackson a visitar os seus restos mortais preservados em Londres (há quem diga até que tentou comprar os seus ossos, algo que os seus herdeiros sempre negaram). Entende-se o fascínio de Roc Marci: na era vitoriana, Merrick terá gerado medo, repulsa e comiseração por parte de uma sociedade em plena transformação por via da revolução industrial em que até as mais desprovidas classes precisavam de acreditar que existia alguém ainda mais desgraçado, facto que os tablóides da época exploraram sem qualquer pudor. Não é difícil, à luz da violenta América contemporânea, pensar que cada corpo negro é visto por boa parte da população como sendo igualmente deformado, digno dessa mesma repulsa, alvo de uma justificada violência. Os ossos retorcidos desses corpos negros, no entanto, tomaram essa forma não por cruel desígnio da natureza, antes pela sistémica violência de uma sociedade que os violenta e tortura.

“I’m like Big Daddy Kane/ I been gettin’ off that soft white long before shorties was rockin’ Off-White (Way before that)”. Marci não teme expor as suas próprias “deformidades” causadas pela tal violência sistémica, por uma sociedade que lhe oferece uma de três vias: o desporto, o entretenimento ou o crime, em qualquer um dos casos uma opção que irá sempre, de forma mais ou menos real ou metafórica, deformar o corpo. Marciano juntou as três vertentes: é uma espécie de player de elite do desporto de cuspir rimas, um eterno nome no pódio do underground desde que desfez a The UN e se lançou a solo numa carreira ferozmente independente, mas altamente respeitada pelos mais importantes nomes da cultura; também é um “capo”, um “Don”, com uma inclinação natural para as histórias de violência e crime, retrato possível da única América que se vê da sua janela; mas, e este “mas” é importante, Roc transformou tudo isto em arte. Uma arte negra, densa, violenta, dura e pesada, mas igualmente urgente, necessária e válida.

“Heads or tails, death or jail/ The road to success was hell/ With the bones of the dead soldiers, we left a trail/ Your soul just left your shell (Woo)”. Cada palavra é um pigmento de turva cor, cada frase uma pincelada, cada verso um quadro que Roc Marci assina como um mestre, mais dilacerante grito de Munch que mural cubista de Picasso, com a dor visível até quando enumera as marcas que o crime ajuda a comprar, entorpecedoras recompensas de quem não tem ilusões sobre a sua própria deformidade moral, preço alto a pagar pela sobrevivência, certamente.

Alc e Roc têm uma química perfeita e é interessante perceber como, sem abdicar da sua marca de autor, o produtor consegue oferecer aqui uma paleta com diferentes nuances das que expôs em recentes trabalhos com Boldy James, Armand Hammer ou Curren$y. É essa a chancela de um real autor. Por seu lado, Roc Marciano vai cimentando cada vez mais o seu lugar singular e único, erguendo um pedestal sólido de onde observa o mundo, sem filtros de qualquer espécie. The Elephant Man’s Bones é disco de tirar o fôlego. Mas antes perdê-lo assim do que com um joelho no pescoço.


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