CD / Digital

Kendrick Lamar

Mr. Morale & The Big Steppers

pgLang / TDE / Aftermath / Interscope

Texto de Alexandre Ribeiro

Publicado a: 19/05/2022

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O sigilo profissional foi quebrado: os áudios das sessões de terapia de Kendrick Lamar, que decorreram nos últimos cinco anos, foram disponibilizados… pelo próprio. Mr. Morale & The Big Steppers, quinto álbum (e último pela TDE) do artista de Compton, é uma série de revelações/divagações suas em que corta o filtro para tentar comunicar de verdade: o que, neste caso, significa atirar em cheio, falhar redondamente, provocar com e sem nexo, embrulhar-se na lama e sair de lá sujo… mas quando olhamos para a imagem não existe, e voltamos a repetir, o tal filtro.

Dividido em dois lados, o sucessor de DAMN. (2017) encontra, para além de K-Dot (mais presente do que nunca enquanto narrador-participante), quatro personagens que servem de pilares para estruturar a sua narrativa, Whitney Alford, Kodak Black, Eckhart Tolle e Baby Keem. Por diferentes razões, este quarteto vai guiando o protagonista pelas suas tormentas: Alford, a mãe dos seus filhos, é vítima e redentora; Black é o libertado (dos seus próprios pecados); Tolle, guru espiritual alemão com obra publicada — um preferido de Oprah Winfrey –, é o conselheiro e barómetro moral; Keem é o disruptor (quem leva para frente e o representante de um futuro melhor para a família e o hip hop).

A poltrona não é imaginária nem é uma artimanha: é fácil imaginá-lo a contar as histórias, a fazer as vozes diferentes enquanto encarna as pessoas de quem está a falar, a exaltar-se e a chorar ou a chegar a conclusões a que nunca chegaria sem acompanhamento. Depois de um “Writer’s block for two years” porque nada mexia com ele, Kendrick desempacotou os pensamentos que estavam guardados lá bem no fundo e só teve de descobrir uma maneira de os deitar cá para fora — poucos da sua geração atingem este nível –, conseguindo fazer isso funcionar com a destreza de alguém que produziu obras-primas como good kid, m.A.A.d city, To Pimp a Butterfly e DAMN. (e ainda fez Section.80, untitled unmastered. e Black Panther The Album Music From And Inspired By pelo caminho…).

E há muito para desempacotar, tanto na forma como no conteúdo, reforçando-se mais uma vez a capacidade de Kendrick em conseguir fazer canções com várias camadas — este é um disco que merece definitivamente a paciência que a era do clique fácil pouco permite. A infidelidade e a procura da felicidade no sexo, a pesada responsabilidade que lhe foi atribuída pelos outros ou a masculinidade tóxica que se espraia pelas diferentes áreas da sua vida são motifs a que volta recorrentemente em MM&TBS, e todas eles se reflectem na maneira como trata as mulheres ou olha para a cultura em que se insere (em “The Heart Part 5” também já tinha reflectido sobre isso com nota máxima).

Do campo da toxicidade herdada do pai — algo que ele estará a tentar afastar de si e dos seus, assumindo-se que seja um dos motivos para esta obra tão funda –, a auto-análise em “Father Time”, música com refrão do britânico das mil almas Sampha, acerta em cheio na mouche quando rima: “Egotistic, zero-given fucks and to be specific/ Need assistance with the way I was brought up/ What’s the difference when your heart is made of stone/ And your mind is made of gold/ And your tongue is made of sword, but it may weaken your soul?” — evitar as lágrimas e ser um durão, o maior da sala, chocará, eventualmente, com a aproximação ao lado mais sensível e honesto.

Antes de irmos até a “Auntie Diaries”, um dos storytellings mais complexos que Lamar já teve de executar e resolver (e, dependendo da pessoa que a ouve, o seu maior falhanço ou a sua maior conquista), voltemos à primeira faixa, “United In Grief”: “I’ve been goin’ through somethin’” e “I grieve different” são frases que denunciam o que vamos receber mais à frente, uma torrente de confissões que são declarações de alguém que está à parte mas que não nega o continuum de onde veio (uma herança pessoal e comunitária que pesa bastante). E a capa é um argumento forte para se assumir que este é o seu trabalho mais pessoal e confessional, expondo a sua família na fotografia de Renell Medrano.

“Há uma coisa que eu sei sobre ele: ele ouve. Apesar de não dizer nada, ele ouve”. Se o tom geral nos indica que andou desligado (“I would never live my life on a computer”), a verdade é que o que Marcus J. Moore, que escreveu uma das duas biografias que existem sobre Kendrick, nos disse em entrevista há uns anos parece aplicar-se não só a como a informação sobre a sociedade lhe vai chegando, mas também à música que anda a consumir: “Mr. Morale”, produzido por Pharrell Williams e com participação de Tanna Leone (outro membro da pgLang), soa a um sucessor espiritual, e menos abrasivo, de “Black Skinhead“, canção que fez parte do alinhamento de Yeezus de Kanye West; “We Cry Together” é o único momento em que se sente alguma Griselda na linguagem instrumental (The Alchemist assina o beat); se “Mirror” tivesse lá um crédito de produção atribuído a Tyler, The Creator não ficaríamos espantados; os primeiros 14 segundos de “Silent Hill” poderiam pertencer facilmente a uma canção dos BROCKHAMPTON. Porém, isto são mais assunções do que certezas — a passagem pela revisão Lamariana torna o produto final hiper-pessoal, rap vanguardista que tanto se faz de sub-graves pesados e pianos delicados como de arranjos de cordas grandiosos e ad-libs criativos e altamente viciantes. (E note-se também a evolução no campo do canto – cada vez mais aprazível de se ouvir e menos em choque com as camas instrumentais). 



O impacto do tempo passado com o primo, autor de The Melodic Blue e parceiro de editora na pgLang, sente-se de imediato em “N95”, um banger para a geração “o moshpit foi criado nos concertos de hip hop em 2017” e que saiu certamente do mesmo pacote de beats de “family ties” e “vent“: o primeiro e o segundo circulam à volta da estética que Playboi Carti foi desenvolvendo com produtores como Pi’erre Bourne, e que Keem tem reinventado à sua maneira, e o terceiro traz a energia de “Piss On Your Grave” de Kanye West e Travis Scott. E fica a certeza: Keem e Lamar são uma dupla muito perigosa que deve ser tida em conta.

Nesse segundo tema, Kendrick diz-nos que tem “true stories to tell”, debruça-se depois sobre “them fabricated streams and them microwave memes” e garante-nos que existe um “real world outside”. Critica os “fake deep” e os “fake woke”, atirando-se também a quem baseia a sua personalidade em “designer shit”. A cultura do pacote bonito e do interior vazio é o principal alvo até se virar para a “cancel culture”, esse suposto monstro que depois volta a atacar em, por exemplo, “Worlwide Steppers”: “N***** killed freedom of speech, everyone sensitive/ If your opinion fuck ‘round and leak, might as well send your will/ The industry has killed the creators, I’ll be the first to say”.

Apesar do primeiro instinto ser um gigante “não, porra, tu também, Kendrick?” — não existem nuances novas em relação a todos os outros ferozes (e, por norma, redondamente errados) críticos da cultura do cancelamento –, o segundo instinto é olhar para isto como uma reacção (pouco fundamentada) ao lado negativo dessa “cultura”: as zonas cinzentas estão-se a perder nesta forma de olhar para tudo a preto e branco, como se não existisse espaço para pessoas com falhas. Se a execução técnica volta a ser de elevado calibre — e isso é algo transversal ao disco, nem há dúvidas –, a falha de compreensão parte de um pressuposto errado: a de que a cultura de cancelamento é capaz de calar alguém com poder e dinheiro, seja ele o próprio Kendrick, Kanye West, Dave Chappelle, Joe Rogan, DaBaby ou Marilyn Manson. O que parece que falta entender é que o melhor (mas que raramente acontece) daquilo a que chamam cultura de cancelamento é a força de mexer com os poderes (mal) instaurados e a impunidade de que muitos usufruíam nestes sistemas corrompidos — e que tanto o afectaram (e afectam).

Na linha de momentos questionáveis, outra escolha polémica: a inclusão (em diferentes momentos) de Kodak Black, que tem um cadastro um tanto ou quanto complicado, principalmente problemático no que toca à forma como trata mulheres. A justificação (não-oficial) é dada em linhas como “I think about Robert Kelly/ If he weren’t molested, I wonder if life’ll fail him” (em “Mr. Morale”) ou “I know the secrets, every other rapper sexually abused/ I see ‘em daily buryin’ they pain in chains and tattoos/ So listen close before you start to pass judgement on how we move” (“Mother I Sober”). Mesmo reclamando não ser um “savior”, Kendrick quer, ainda assim, absolver aqueles que erraram, independentemente da gravidade dos seus erros, colocando, de certa forma, o ónus da culpa nas vítimas.

Nestes encontros e desencontros com as ideias do que é o certo e o errado — faz-nos pensar, questionar e voltar a pensar e questionar — que são tão raros num plano mainstream (ainda para mais quando falamos de rap), o culminar desta sua forma actual de olhar o mundo encontra-se em “Auntie Diaries”, um tema em que aborda a homofobia e a transfobia com pouco tacto, e algumas escolhas que quase estragam tudo (o deadnaming, o misgendering e a repetida utilização da “F-bomb”), mas que se resolve no fecho, fazendo um paralelismo entre a utilização da nword e a fword e demostrando a evolução do seu próprio pensamento. Uma arrojada empreitada que acabou por compensar o risco merecido, acreditamos.

Dentro das micro-histórias dentro da grande história, “Die Hard” pode ser considerada uma faixa-irmã de “LOYALTY.“, uma love song à moda da Califórnia (e o tema mais virado para rádio) com Blxst e Amanda Reifer, “Purple Hearts” é a deriva mais r&b com Summer Walker igual a si mesma (“No, it ain’t love if you ain’t never eat my ass”) e Ghostface Killah cheio de intenção e altamente estilizado (ele e Method Man são os melhores elementos de Wu-Tang Clan em 2022); a actriz Taylour Paige faz um papelão — queremos ouvi-la mais a cantar e rappar — em “We Cry Together”, uma espécie de ponto-de-viragem nesta terapia musical que é o álbum. É aí que Whitney Alford pede a Kendrick para “stop tap-dancing around the conversation”, possibilitando o “breaktrough” a partir de “Count Me Out”, a primeira do segundo lado.

Depois da viragem para as últimas nove faixas, Kendrick tira a “Crown” em cima de “Through The Night“, faixa instrumental que constava originalmente em Brown Loop, álbum lançado em 2016 por Duval Timothy (artista multidisciplinar do sul de Londres que aparece mais vezes nos créditos e a quem se deve prestar atenção), chama Beth Gibbons (dos Portishead) para “Mother I Sober”, um relato horrível e extremamente vívido que envolve abusos, violência e traumas geracionais — o final é catártico com um simbólico “You broke a generational curse” e o orgulho dos mais próximos pela abertura total –, e olha, pela última vez, ao “Mirror” para informar que se escolheu a si mesmo e que está a ponderar afastar-se da “culture” para seguir o seu coração. Se só servir para uma coisa, esperemos que Mr. Morale & The Big Steppers sirva para reflexões sobre aquilo que norteia a cultura que tanto adoramos.

Música honesta é sinónimo de boa música? Kendrick Lamar não está ralado com isso em Mr. Morale & The Big Steppers, por isso entrega-o da forma mais crua possível para chegar ao resultado final. As interpretações, sejam elas certas ou erradas — se é que isso existe aqui –, ficam para quem as recebe. “The cat is out the bag”, ele não é o nosso salvador, nem quer ser o nosso mártir. Resta-nos esperar que seja o melhor que consiga ser. Sem moralismos.


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