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Kendrick Lamar

"The Heart Part 5"

pgLang/ TDE/ Aftermath/ Interscope/ 2022

Texto de Rui Miguel Abreu

Publicado a: 10/05/2022

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“The Heart Part 5” surgiu de rompante na noite de passado domingo e, compreensivelmente, rebentou com a Internet global na segunda-feira, como primeira antecipação do muito aguardado novo álbum, Mr. Morale & The Big Steppers, que deverá aterrar em todas as plataformas já na próxima sexta-feira, dia 13 de Maio. O tema produzido pelo trio Beach Noise (Matt Schaeffer, Johnny Kosich, e Jake Kosich) a partir de glorioso sample de “I Want You” de Marvin Gaye deixa muito claro que os cinco anos de que K Dot precisou para nos oferecer o sucessor de DAMN. não foram desperdiçados: o beat é de elevadíssimo calibre, funky e sofisticado ao mesmo tempo, com espaço musical amplo, com margem para respiração; o flow de Kenny é avassalador; a mensagem é profunda, uma ode à empatia carregada de verdades e não imune à auto-crítica; e, finalmente, temos o vídeo criado com Dave Free e que recorre a tecnologia deepfake a cargo do estúdio Deep Voodoo, pertença dos criadores de South Park. Importante referir também que o título indica que este tema é a mais recente adição a uma série que remonta a 2010, com cada uma das partes deste “The Heart” a preceder um importante projecto ou uma nova fase. É, certamente, esse ao caso aqui.

O beat em primeiro lugar, portanto: bateria e congas, mais um piano que parece ser tocado em uníssono com um baixo a assegurarem a pressão rítmica inicial. Depois o piano vai-se tranquilamente soltando para assumir alguns esquissos melódicos e, quando já passam uns 20 segundos depois de cumprido o primeiro minuto, abrem-se as portas da barragem para que jorre um dilúvio orquestral de cordas e vozes corais para dentro do arranjo, o que serve de ponte para o segundo verso em que a voz de Kenny já surge devidamente acamada em luxo sinfónico de toada algo disco, mas ainda assim com dimensão atmosférica; e depois, no momento seguinte da canção, apenas piano e baixo, por breves momentos, antes de Kendrick pedir ao seu engenheiro “take the drums off”, arrancando assim mesmo, só com marcação do baixo e a sua própria respiração, para novo conjunto de barras, com baixo e congas a suportarem as suas palavras. Só na marca dos quatro minutos e meio reentra uma guitarra, funky como tudo, a preparar o remate do tema com as cordas a reentrarem mesmo antes do tremendo final.

Há, certamente, algo simbólico na escolha de “I Want You” de Marvin Gaye para principal matéria samplável. Esse tema deu título ao álbum de 1976 que contava com co-produção do próprio Marvin e ainda de Leon Ware e Arthur “T-Boy” Ross e que tinha na capa uma icónica pintura de 1971, The Sugar Shack, da autoria de Ernie Barnes. Tudo perfeito aqui e, tendo em conta a factura apresentada pelos herdeiros de Marvin a Pharrell Williams por causa do bonito serviço prestado em “Blurred Lines” de Robin Thicke, certamente nada barato. Mas isto é Kendrick a querer desligar-se da espuma dos dias em que surfam muitos dos seus pares e a elevar a fasquia com um som clássico que aponta para a Grande Música Negra Americana sem tirar os pés do presente.

E como grande música pede mais grande música, Kung Fu Kenny só podia mesmo recorrer ao seu Agame na hora de enfrentar o microfone: o tema é, do ponto de vista da técnica vocal, uma autêntica tour de force com múltiplos registos – spoken word, rajadas intensas de palavras, com cada uma das barras a ser entregue com clareza máxima –, Kendrick está visivelmente zangado, mas não permite que isso lhe turve a performance – e há ainda canto, no refrão, voz dramaticamente processada e mais palavras cuspidas com a classe e autoridade de um verdadeiro GOAT. Tudo certo e perfeito aqui: esta é, sem a menor sombra de dúvida, uma das melhores performances da carreira discográfica de Kendrick.

A mensagem, depois: “I come from a generation of pain, where murder is minor” estabelece o duro tom do que se segue e pinta o retrato de uma América em que o destino de um homem negro está não nas suas mãos, mas num conjunto de factores aleatórios que lhe podem facilmente roubar o futuro: “be it will or the wheel alignment”. Depois disso, Kenny espalha mais barras de ouro neste tema do que as que se encontram nos cofres de Forte Knox, fala para dentro da sua comunidade acerca da sua própria cultura – “Homies done fucked your baby mama once you hit the yard, that’s culture” – e assegura que quer ser a voz de muitos – “The streets got me fucked up, y’all can miss me/ I wanna represent for us” – antes de ir ainda mais fundo acerca da sua própria essência – “Our foundation was trained to accept whatever follows/ Dehumanized, insensitive” com tudo a acontecer “In the land where hurt people hurt more people”. No último verso vem a resolução, a prova de que Kendrick Lamar é uma voz de que a América precisa agora: “The purpose is in the lessons we learnin’ now”, assegura ele, antes de canalizar o espírito de Nipsey Hussle e fazer um apelo – “and to my neighborhood, let the good prevail”.

Finalmente, a embrulhar tudo isto, há um vídeo poderoso, talvez o mais importante vídeo dos últimos anos, para ser colocado ao lado de “This is America” de Childish Gambino. Usando a tal tecnologia deepfake – que é verdadeiramente assustadora quando pensamos nas possibilidades que abre para a manipulação da verdade –, Kendrick assume as faces de uma série de ícones negros, alguns deles bem controversos, de OJ Simpson a Kanye West e Will Smith, passando por Jussie Smollett, Kobe Bryant e Nipsey Hussle, com as palavras rimadas a ressoarem de forma ainda mais especial consoante o rosto que as debita. É uma ideia cada vez mais complexa de entender neste tempo conturbado em que todos vivemos, a da perspectiva do outro, que é o conceito central que Kendrick aqui segue. E daí que antes do vídeo arrancar se possam ler as palavras fundas “I am. All of Us” assinadas por Oklama, a mesma “personagem” ou “identidade” que Kendrick usou para comunicar recentemente que o novo álbum será a sua última edição com carimbo da Top Dawg Entertainment e que parece também definir o seu novo domínio digital.

Já se suspeitava que Kenny viria com tudo nesta sua despedida da TDE que poderá marcar uma viragem na sua carreira. E “The Heart Part 5” não desilude, atirando-o para os píncaros e deixando-nos, pelo menos até à próxima sexta-feira, com os níveis de ansiedade no máximo. Preparem-se porque vem aí o disco do ano.


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