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Fotografia: Rita Magdala
Ilustração: Rita Magdala
Publicado a: 20/05/2021

A tradição está longe de expirar.

Os desfados da nova pop

Fotografia: Rita Magdala
Ilustração: Rita Magdala
Publicado a: 20/05/2021

“Directa ou indirectamente, após décadas de isolamento no seu reduto próprio, o fado afirma-se aqui como referência inspiradora para um grande número de discursos musicais alternativos cujo único traço comum parece ser o da busca multidireccional de uma identidade nacional bem reconhecível na música popular portuguesa”. 

Quem o escreve é o musicólogo Rui Vieira Nery em Para uma História do Fado, livro publicado pela primeira vez em 2004, abordando o ressurgimento no pós-25 de Abril do género musical enquanto fonte de inspiração (directa e indirecta) para alguns velhos e novos protagonistas da música portuguesa da época — até à entrada da década de 80, o fado não se conseguia dissociar totalmente do Estado Novo. Para corroborar esta sua ideia, os exemplos dados pelo também professor e investigador são, em primeiro lugar, José Mário Branco e Sérgio Godinho, mas dois dos nomes que refere de seguida, António Variações e Madredeus, importam-nos mais para a cartografia do que se está a passar neste início da década de 20 do século XXI por uma razão simples: são derivações das tradições do fado, mas conseguimos associá-los a isso na mesma através das suas referências e de algumas proximidades estéticas.  

E, nesta era, tudo começa em Pedro Mafama, que usa pela primeira vez o termo “novos fados” para descrever aquilo que faz numa entrevista ao Rimas e Batidas concedida em 2017, a propósito do lançamento de Má Fama, o seu EP de estreia. Porém, esta ideia fica mais definida em Tanto Sal, o segundo curta-duração lançado uns meses depois, em 2018. E é aí, em mais uma conversa publicada nestas páginas digitais, que nos dá as coordenadas para aquilo que andava a (tentar) criar: 

“Novos fados são canções sobre a vida, que seguem uma via nova e tentam abrir novos caminhos, mas que têm uma ligação à cidade e ao sítio de onde surgem. Neste caso, Lisboa. Não é uma coisa de querer voltar atrás, é mesmo o contrário. Sinto que com essa palavra na cabeça posso usar tudo, desde percussões africanas a melodias árabes, ou outras coisas que ainda não descobri, e tudo faz sentido quando é misturado dentro dessa ideia de música lisboeta. Estou a tentar pegar em tudo aquilo com que cresci e que faz parte da minha cultura para fazer algo novo. Não é nostalgia, é bola para a frente. Precisamos de novos caminhos e é lindo começar a descobri-los pouco a pouco. Quero pegar naquilo que a Enchufada e a Príncipe trouxeram para a pista de dança e fazê-lo com canções sobre a vida. E se forem dançáveis ainda melhor!

Entre os dois projectos de Mafama surgia Conan Osiris com Adoro Bolos, essa “obra muito séria” de alguém que baralhou as contas a tudo e todos, criando discussões acesas sobre a sua validade artística que provavelmente ainda duram até aos dias de hoje. Tanto num como noutro, o fado é apenas uma ferramenta usada para adornar os instrumentais ou alimentar esse fatalismo tão português que é puxado para as suas letras. Com diferenças óbvias entre si, há algo que não se pode negar a nenhum deles: têm personalidades musicais muito vincadas que advêm do facto de serem filhos da Internet — ambos rondam actualmente os 30 anos — e de uma Lisboa (e arredores) multicultural que tanto ouvia Nelson Freitas e Anselmo Ralph como Buraka Som Sistema e Boss Ac. Também são ambos herdeiros da capacidade inata de Variações de saber coordenar aquilo que a sua música dizia com aquilo que transmitia visualmente. Temos assim uma santa trindade composta por três extraterrestres pop de gerações e “ilhas” diferentes a projectarem-se à imagem de Amália Rodrigues de forma mais evidente nesta versão de “Povo que lavas no rio”, nesta “AMALIA” ou neste “Estaleiro”



[A entrada de Ana Moura na equação] 

A narrativa desta história começou a desenrolar-se no último trimestre de 2017, mas a primeira fase de cristalização desta ideia de neo-fado parece estar mesmo prestes a acontecer em 2021 com o álbum de estreia de Pedro Mafama, Por Este Rio Abaixo, que sai este mês pela Sony Music Portugal, e o próximo disco de Ana Moura, do qual ainda só se conhece o single “Andorinhas”. 

Apercebendo-se deste caldeirão de inventividade que a cidade lisboeta emanava — e pensamos aqui na Enchufada, na Príncipe ou na Think Music enquanto maiores elementos diferenciadores –, a aclamada fadista aproximou-se dos dois Pedros (o Mafama e o da Linha) que andam aí a fazer a terra tremer para obter a ajuda necessária que lhe permitisse dar vida às novas ideias musicais que lhe assaltavam a mente. 

Depois da colaboração em “Vinte Vinte”, a proximidade da autora de Desfado com Conan Osiris vai ganhar mais tracção neste seu próximo longa-duração, tendo já confirmado que por lá existe um poema escrito pelo Rapaz do Futuro — podem ouvi-lo aqui, a partir dos 59 minutos. Branko, a última parte do trio que fez o tema que ganhou videoclipe este ano, também tem algo a dizer sobre este fado progressivo: 

“Aquilo que eu sinto é uma mudança que me faz olhar para a música portuguesa e para o fado, não pondo tudo no mesmo saco. Passa por sentir que está cada vez mais forte a relação e a presença da música tradicional na música electrónica. E acho que, enquanto criador, a minha cabeça tem várias direcções e vou escolhendo ir mais para a esquerda ou mais para a direita, mais no futuro ou mais no presente, ou o que quer que seja, mas essa viagem e essa informação sempre estiveram presentes, tentar aperceber-me desses ritmos e tentar crescer ao conhecer patterns diferentes. Ouvir texturas de instrumentos e aperceber-me quais é que eram os problemas que eu sentia na música que ouvia e que estava a tentar fazer essa reinterpretação. Tentar chegar a uma versão disso que eu gostasse. Comecei a ouvi-la em alguns artistas.

Não me cabe a mim dizer o que está bem feito ou mal feito, mas, na minha cabeça, nunca senti bem concretizada a contextualização da música tradicional portuguesa e do fado com a música electrónica. Ao ponto de não me fazer sentir que eu não estava a ouvir um remix ou a uma coisa mais diggin’ in the crates, de trazer o passado para o presente. Senti sempre que era um destes dois ângulos. 

No fundo, aquilo que eu sentia falta e que, de alguma forma, tentei fazer com o ‘Vinte Vinte’ foi a concretização disso, desse formato de 2020 sem ser samplado, sem samplar nada e sem querer que fosse um remix de pista. Sem ser voz de fado com delays, sem ser uma guitarra portuguesa trabalhada em loop de forma a atingir a repetição, ou seja, fui mesmo agarrar no formato de canção, no caso do fado e da música tradicional. Tens um fado mas o pattern rítmico é de chula reproduzido através de kicks e snares electrónicos. Foi essa a experiência que eu senti que ainda poderia ganhar mais espaço — para acabar por contagiar mais um bocadinho aquilo que é a música das nossas cidades.”

Voltando a Ana Moura: quem melhor do que uma artista com nome mais do que firmado (e uma das carreiras mais bem-sucedidas em termos comerciais das últimas décadas) para declarar abertamente — sem precisar de vocalizá-lo — que Conan Osiris e Pedro Mafama são o presente e o futuro da música popular portuguesa? É só seguir a deixa. Nós já sabíamos, mas está na altura de todos saberem.



[Os novos não-fadistas]

Entre outras considerações tecidas para a revista Visão, Rui Vieira Nery dizia isto sobre Conan Osiris: “Ouve-se ali a memória genética da cultura mediterrânica: tem flamenco, Magreb, fado, coisas do Próximo Oriente…”. Kizomba, tarraxo, kuduro, funaná, afro-house e trap são outros vislumbres de “memória genética” que se podem atribuir ao som de Mafama e Conan Osiris. 

Se vamos começar a criar uma árvore genealógica destes neo-fados, os primeiros filhos são a lisboeta Rita Vian e João Não, jovem de Gondomar — descentralizar também é importante –, dois artistas que pegam no conceito de música global e levam-na para lados só seus, englobando hauntologia (pela “via” Beautify Junkyards), reggaeton e outras latitudes musicais tropicais. Confirma-se isso mesmo no embalo “drilleiro” de “Purga”, produzido por Franklin Beats, outro nome a reter, e no quadro vívido de balanços sensuais de Terra-Mãe, promessas de futuros completamente distópicos onde, imagine-se, robôs fazem as canções mais emotivas, e a expressão de certezas acerca de um presente com cadências incomuns. 

No campo dos intérpretes é importante não desvalorizar a importância do auto-tune, recurso técnico absolutamente necessário para a formação e desenvolvimento das personalidades estéticas de alguns destes criativos. Pense-se menos em “limitação” e mais em “extensão”. A partir daí, só mesmo “expansão”.



[Rosalía e o folclore português sentam-se à mesa] 

Apesar do fado servir como uma espécie de guia para todos estes nomes que abordamos aqui, a verdade é que o interesse vai muito para além daí, espalhando-se pelas pérolas rítmicas e melódicas que existem na vastidão da música tradicional portuguesa — chula, corridinho, vira, malhão e outros tantos. 

Tal como fizeram noutra era Zeca Afonso, José Mário Branco ou Fausto (Por Este Rio Acima, se lerem nas entrelinhas, continua a ser bastante importante para as novas gerações), existem artistas a virarem-se com interesse para estas arritmias folclóricas enquanto pensam em Pedro Mafama, Conan Osiris e Rosalía (“Malamente” marca um antes e depois para muito boa gente): Filipe Sambado, em Revezo, e mema., em Cidade de Sal, apresentam propostas que se encaixam nesta linha, assumindo a sua atracção pelos três nomes mencionados em conversas com o ReB, mas nunca deixando a sua herança do rock português e da música electrónica, respectivamente, se dissolverem na ambição de misturar terrenos. 

As ligações com a autora de El Mal Querer não terminam na inspiração: para os mais distraídos, Raül Refree, produtor que fez Los Ángeles (2017) a meias com a cantora espanhola, juntou-se à fadista portuguesa Lina para um disco em que “bastou a paixão, a inteligência, o bom gosto e a coragem para fugir ao óbvio e experimentar coisas novas”. 

No campo do fugir ao óbvio, mais uma nota: pense-se mais em Dino D’Santiago a cantar “Os Putos”, por exemplo. Ou em “Lila Fadista“, canção dos Fado Bicha com produção de Moullinex.



[O hip hop e o namoro mais assolapado com o fado em tempos recentes] 

Viva!”, fantástica abordagem de Sam The Kid à música de Carlos Paredes, até pode ser o momento mais notável de cruzamento entre rap e fado — abordámos outros casos aqui –, mas houve quem percebesse em tempos mais próximos que dessa matéria mais clássica daria para criar novos clássicos: de uma forma mais moderna, Slow J fê-lo em “Sonhei para Dentro” (2017) ou “Lágrimas” (2019), enquanto Mike El Nite convidou Vian para dar vida a “Carmen” (2018). 

Mais ao lado, vindo da tradição mas completamente embrenhado na música urbana que vai do trap ao r&b, há ainda Mike11, que pega na guitarra portuguesa para se envolver nesta “conversa”. “Lisboa” e “Pra Quê Falar” são os melhores exemplos da sua ambiciosa abordagem ao formato canção e argumentos para o afirmar como um compositor e arranjador com muito para dar.

Para fechar este capítulo, a vénia a Stereossauro e ao seu Bairro da Ponte, empreitada importantíssima em que lhe foi dada a chave dos arquivos da Valentim de Carvalho: isso deu-lhe a possibilidade de resgatar legalmente pedaços de som de músicas de Amália Rodrigues, Carlos Paredes ou Alfredo Marceneiro e trabalhar directamente com Camané, Carlos do Carmo e Ana Moura. Admirável.



[Conclusão] 

De dança afro-brasileira até banda sonora de casas boémias e de prostituição, o fado foi sofrendo mutações até se solidificar nas costas de gigantes como Amália Rodrigues e Carlos do Carmo. Tornar-se Património Cultural Imaterial da Humanidade, em 2011, foi um dos últimos passos numa caminhada que se espera agora tomar caminhos que aos olhos de alguns até poderão não parecer os mais certos ou óbvios. 

Na frente, a alumiar caminho, vai mesmo Pedro Mafama, voltamos a reforçar, o “pirata do mar” que está prestes a desembarcar de vez nas águas populares portuguesas, lado a lado com Pedro da Linha. Esta é a dupla-forte que tem dois dos discos mais importantes desta temporada (e quem sabe se das próximas também…) sob a sua alçada. Dois bons entendedores da linguagem afro-portuguesa de onde tanto bebem estes novos fados — que vai ganhar ali uma nova ênfase neste segmento quando as “Borboletas da Noite”, tema que conta com Tristany (que também tem um cameo no videoclipe de “Vinte Vinte“), saírem à rua. 

Novos fados, abafados, desfados, neo-fados, fadosnãofados, chamem-lhes o que quiserem, metam-nos numa sala escura com silêncio ou numa pista-de-dança cheia de corpos suados; seja o que for, a mensagem com que vos deixamos é concisa e directa: façam barulho que se vão cantar os novos fados.


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