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Fotografia: Filipe Feio
Ilustração: Rita Magdala
Publicado a: 18/03/2022

Tomás Martins, Fred, Intakto, Papillon, NERVE, Wake Up Sleep, Gson, Made in Lx e Rui Gonçalves ajudam a contá-la.

A história oral da criação de The Art of Slowing Down, o álbum de estreia de Slow J

Fotografia: Filipe Feio
Ilustração: Rita Magdala
Publicado a: 18/03/2022

Foi há precisamente cinco anos, a 18 de Março de 2017, que foi lançado o primeiro álbum de Slow J, The Art of Slowing Down, através da plataforma independente Sente Isto. Foi um disco marcante, não só para o próprio autor, uma vez que o colocou finalmente a viver da sua arte, mas também para a música moderna portuguesa. Esta é a sua história, contada por quem esteve directamente envolvido – Slow J, obviamente, mas também Tomás Martins, Fred, Intakto, Papillon, NERVE, Wake Up Sleep, Gson, Made in Lx ou Rui Gonçalves lançam luz sobre todos os detalhes de uma obra que o presente continua a celebrar e que o futuro há-de igualmente reconhecer.



[Primeiro, a ideia era criar um segundo volume de The Free Food Tape]

Slow J: Há músicas do The Art of Slowing Down que foram feitas antes de lançar a Free Food Tape [em 2015]. Aliás, o meu plano original era lançar um segundo volume da The Free Food Tape. Mas esse volume dois acabou por se transformar no The Art of Slowing Down, um bocado até por sugestão do Fred. Na altura conheci-o, e foi ele que deu a ideia de, em vez de meter mais um EP, saltar directo para um álbum.

Tomás Martins: Se bem me lembro havia a ideia de criar um pouco o contraste, com uma capa branca e uma capa preta, que seria a do The Free Food Tape Vol. 2. Mas o que acontece sempre, se olhares para isto como o João e o Slow J — o João tem uma ideia mas o Slow J é que vai ensinar ao João o que é suposto aquilo ser. É uma cena que se vai desenrolando. O que sinto que aconteceu é que o conceito do TAOSD se foi desenrolando como algo mais completo e rico a nível de diferentes sonoridades a que o João queria ir, mas também começava a ser um extra step daquilo que tinha sido. 

Slow J: O ponto de vista do Fred era que eu já seria capaz de o fazer. E seria muito mais benéfico para o meu trajecto. É muito mais difícil venderes concertos se não tens um álbum. E também havia uma noção de que era o momento certo. O Regula tinha acabado de fazer uma trajectória bué fixe e lembro-me de ter uma conversa com o Sam The Kid no [estúdio] 5-30, em que ele estava a dizer: tu agora se trabalhares bem nisto e não sei quê vais conseguir fazer uma cena semelhante, no sentido de trajectória. Não é que não acreditasse em mim próprio, mas acho que eles tinham uma visão mais concreta sobre onde é que eu ia. Eu estava um bocado a trabalhar e a dar tiros no escuro. Estava a dar o meu melhor mas sem ter a mínima noção…

Fred: Conheci-o através da Internet, vi um vídeo de uma música e contactei-o para falar com ele, conhecê-lo um bocadinho, ele não tinha estúdio na altura e ofereci-lhe uma sala lá [no 5-30, em Campo de Ourique]. Percebi que ele estava a iniciar a carreira e eu, como tinha e tenho um espaço com essa ideia de fazer trabalhos com novos artistas e poder proporcionar-lhes um espaço onde possam estar em contacto uns com os outros e fazer várias coisas, quando ouvi a música dele achei que era um artista com um potencial gigante e fui falar com ele para poder estar lá connosco.

Fred: Lembro-me de muitas conversas que tivemos e de muito tempo que passávamos juntos a trocar ideias. E realmente o potencial dele e as coisas que me ia mostrando já mostravam um trabalho muito maior do que um EP. Não me recordo que palavras exactas é que lhe disse, mas diria o mesmo neste momento: acho que ele tinha ali um trabalho muito, muito bom, que teria de pôr cá para fora. Ele tem as suas ideias e no meio das conversas todas e contactos, e da vivência que fomos tendo, chegou a essa conclusão — e ainda bem que o fez, porque é um disco histórico, que ficará para sempre marcado como um disco importantíssimo para a música portuguesa.

Slow J: Cá em Portugal acho que não é muito cultural a cena dos EPs. Mas em Londres, onde eu estava a aprender a produzir e por aí fora, a cena era fazer EPs. Toda a gente fazia EPs ou mixtapes até chegarem a um ponto de massa crítica em que decidiam: agora vamos fazer o álbum para solidificar a cena. Mas a questão de te apresentares ao público, mostrares a variedade do que consegues fazer, era muito mais nos EPs. Os artistas mais estabelecidos é que faziam álbuns. Na minha cabeça era esse o raciocínio.



[“Vida Boa” — a primeira faixa de The Art of Slowing Down]

Slow J: A “Vida Boa” foi feita ao mesmo tempo que outras músicas da The Free Food Tape. Simplesmente guardei a “Vida Boa”, também não estava terminada. Guardei-a para aquilo que seria o segundo volume e depois acabou por se tornar uma música do álbum.

Slow J: Não sei se não foi a primeira cena que fizemos juntos [com Intakto]. Quem nos apresentou foi o [nasty]factor, que estava a trabalhar comigo nos estúdios Big Bit. Comecei a ir ao estúdio do Intakto, de vez em quando. E havia beats dele que curtia mesmo bué. Esse foi um deles. É um beat em que acabei por adicionar várias coisas: a guitarra… O beat tornou-se melódico com o que adicionei. O groove e o sujo é o que estava no beat original do Intakto. Inspirou-me. Lembro-me de que para mim era estranho a cena do “aiaiaiaia” [risos]. Melodicamente foi a cena que me veio ao ouvido e fiz. E acho que tornar-me melhor a fazer canções também passa por perder os meus preconceitos e seguir um bocado o que a música pede. Aí foi mais um salto de fé, como o “Cristalina” foi. Ok, pode haver pessoas que vão achar isto “shalala”, mas a canção é boa, vai-se defender a ela própria.

Intakto: Conheci o Slow J um pouco antes de ele lançar a The Free Food Tape. Eu já tinha ouvido a “Portus Calle”. O Factor disse-me que o Slow J tinha interesse em conhecer-me e em trabalhar comigo, eu também tinha interesse. O beat do “Vida Boa” foi-lhe apresentado na primeira vez que estivemos juntos. Mas o processo de construção do “Vida Boa” é mais mérito do Slow J. A base do beat que eu tinha não me dava inspiração para criar além daquilo que já tinha. Lembro-me de que era um sample de Erykah Badu com Stephen Marley e na altura não conseguia desenvolver mais do que aquilo: ou seja, sample e drums, a primeira nuance que se ouve no beat. O Slow J meteu o sample com fade, porque realmente tinha as vozes bastante presentes. Eu achava que ia ser um beat sem rap por cima, mas tendo em conta a maneira como ele reagiu ao beat, deu para perceber que aquilo tinha potencial para ser algo mais. Tudo isto no primeiro dia. Ele curtiu logo, levou-o e o processo foi basicamente dar-lhe a liberdade toda, mandar-lhe o beat por pistas e deixá-lo criar à maneira dele. O Slow J acrescentou guitarras e fez a construção toda, eu só dei indicações sobre se concordava. E o resultado final para mim está genial. Não há melhor palavra para definir o Slow J do que “génio” musical.

Slow J: Cantei a “Vida Boa” no meu primeiro concerto, em Telheiras [a convite de ProfJam e da AstroRecords]. Mas só cantei o primeiro verso, provavelmente ainda não havia o segundo. Essas ideias vieram depois. Os segundos versos muitas vezes são a parte complicada das músicas. Neste caso houve muitos meses de intervalo. Para escrever tens o lado criativo e de inspiração, mas tem de haver ginásio. Escrever todos os dias, mesmo quando a inspiração não bate, para que o trabalho continue a ser feito e para que ela venha e os momentos sejam criados. E sinto que a entrada do segundo verso do “Vida Boa”, “família à volta da mesa” é bué estranho. E foi bué estranho quando escrevi. Foi uma cena em que tive dúvidas, será que isto encaixa mesmo? Está meio esquisito. E o facto de ser esquisito tornou-o memorável e é das coisas que as pessoas mais cantam no concerto. Se calhar é o meu verso mais cantado. Isso diz-me que não é só inspiração, é também ginásio.



[Quando Slow J cuspiu 100 barras em “Comida”]

Slow J: Foi na passagem de ano de 2015 para 2016. Podia ser uma faixa solta, não houve um plano. Tinha uma música acabada, lancei. Literalmente estava na passagem de ano e pensei: “hmm, acho que vou lançar”. Fui a casa, fiz upload, lancei e voltei para a passagem de ano. Foi mesmo isto [risos].

Slow J: Foram dois exercícios que são meio jogos que levaram ao “Comida”. Um deles era a cena de escrever uma canção de 100 barras, a cena de que o Valete falava bué. Mas, na verdade, a maneira como o “Comida” começou era escrever uma barra por dia. A qualidade tem mesmo de ser excelente de cada uma. Era um bocado essa a ideia, mas acabei por não o fazer até ao fim. Mas até certo ponto foi escrito bué devagar. Já tinha o beat, provavelmente, o beat switch que no fim fica em half-tempo deve ter sido depois.

Slow J: Também é um exercício de arranjos interessante. Aprendi bué coisas a fazer esse arranjo, tem poucos elementos mas é lixado manteres o ouvinte interessado numa música tão grande. E demonstra uma cena interessante que descobri nessa altura. Vamos dizer que tens oito barras de um verso. Se tu a meio, da quarta para a quinta, fazes uma transição ou um silêncio e depois entra o beat, e isto é o início da música, o ouvinte naturalmente assume que da oitava para a nona vai haver outra. E que de quatro em quatro barras isso vai acontecer. Se isso não acontecer, o teu ouvido vai-se aborrecer. Isto é um problema bué grande. Se fizeres uma transição muito grande muito cedo depois vais ter de corresponder a essa expectativa durante a música inteira. E o “Comida” demonstra essa cena fazendo o contrário: tu ficas só com o sample durante tipo 30 barras. O que faz com que não cries expectativas além disso. E quando às 32 rebenta o beat pela primeira vez, aquilo sabe bem. E depois eu espero mais 32, para entrar o bass, e depois mais 32. E a música acaba por resultar bué bem como se fosse uma canção pop de um minuto e meio esticada [risos]. A produção é bué um exercício de manter o ouvinte interessado dando-lhe o mínimo de novidade possível ao longo da música.



[Um disco construído entre duas casas — o estúdio 5-30 e a guesthouse Lost Lisbon]

Slow J: Quando lancei o videoclipe do “Cristalina”, o Fred deu-me o toque, conversámos e criámos uma relação. Ele ofereceu-me uma sala, basicamente. E no tempo que estive lá fiz bué trabalho. A maior parte das coisas hão-de ter sido feitas ali.

Fred: Ouvia as ideias dele, eu estava no meu sítio a trabalhar, ele estava na sala dele, íamo-nos cruzando e trocando ideias. Eu mostrava-lhe coisas minhas, ele mostrava-me dele. Grande parte das músicas ouvi na sua génese lá no estúdio.

Fred: É uma pessoa muito focada, com ideias sólidas e concretas do que quer e do que procura, e trabalha nesse sentido. Do entendimento do que é uma canção que ele quer fazer e não descansa enquanto não conseguir fazer. Foi uma das coisas que aprendi com ele e que me ajudou – ainda hoje em dia ajuda — a desenvolver o meu trabalho. Lembrar-me da sua forma focada e persistente que tem de querer fazer uma canção cada vez mais perfeita e depois desenvolver até ao produto final. Ele tem muita atenção a todas essas peças e acompanha o processo todo, do início ao fim.

Tomás Martins: Na base da minha relação com o João, ainda antes de ser manager, ele perguntava-me o que é que eu achava, íamos para o carro ouvir as cenas, eu dava-lhe feedback e motivação. À medida que fomos lançando as cenas e a coisa foi-se tornando profissional, esse acompanhamento era muito diário e recorrente, falar sobre quem chamávamos, sobre o que eram as músicas. A maior parte tem uma visão muito autobiográfica, sobre a vida do João naquele momento, por isso eram tudo processos em que eu estava presente, nem que se fosse só como amigo. Isso ajudava e eu podia dizer: sei que estás a falar sobre isto mas nesta parte do verso estás-me a perder ou não estou a perceber o que estás a dizer com isto.

Tomás Martins: O TAOSD vem de uma espécie de corte e costura de vários momentos e experiências que o João teve ao longo de, vá, dois anos. Vejo-me como aquela pessoa que admira o suficiente o artista para lhe dar motivação e energia, e é amigo o suficiente para lhe dizer aquilo que realmente acha e não estar só a dizer aquilo que ele quer ouvir.

Papillon: Estive presente nalguns momentos: foi fazer o “Pagar as Contas”, ouvir algumas músicas que ele tinha na altura, como o “Vida Boa”, estive com ele nalgumas sessões de estúdio e tive a oportunidade de acompanhar o processo na fase de conceção. O Slow J é um bacano extremamente colaborativo na maneira de fazer a música dele e pede opiniões às pessoas que estão no estúdio, quer saber o que acham, e ele perguntava-me sempre. Eu sou um mau crítico porque é muito fácil de me agradar [risos]. Basta teres uma guitarra e whatever e já fico bem contente [risos]. Mas na altura fiquei mais contente porque senti que era um bacano que estava em construção, em desenvolvimento, e com uma sonoridade bué interessante. Lembro-me de ouvir o “Vida Boa” e dizer que é fantástico, grande som, grande vibe. Na altura era bué fresh, uma cena que não estávamos a ouvir. Sempre admirei essa capacidade do J de trazer coisas frescas e de ser destemido na maneira de fazer música. 

Slow J: Fiquei no 5-30 até ter uma oferta para ir para o Lost Lisbon, uma guesthouse no Cais do Sodré. Montei estúdio lá e foi lá que terminei o álbum. Lembro-me da sensação de: se estes dois sítios não tivessem aparecido no timing em que apareceram, se calhar não tinha conseguido acabar o álbum. Foi sempre uma lufada de ar fresco. O 5-30 é um estúdio que tinha uma grande mística, toda a gente que lá estava bebia um bocado daquilo. Ao mesmo tempo é um bocado fechado, estás no submundo, sem janelas. Acho que todos nós, gradualmente, começámos a sentir essa cena. Ter um sítio com mais luz ajuda bué, quando estás a trabalhar muitas horas. E foi um bocado por isso, como apareceu a oportunidade saltei para ela. 



[A libertação artística de “Serenata”]

Slow J: Foi escrita em três momentos distintos. Foi um bocado o explorar do que tinha descoberto no “Cristalina”: até onde é que isto pode ir? Isso foi explorado várias vezes durante o TAOSD, mas ali claramente foi a cena de ter mesmo uma canção, de não ter nada, não tem beat… A transição do fim depois tem um riff mais hip hop, o groove com o bater da guitarra faz lembrar melodias de Dr. Dre [risos], num aspeto bué acústico. No “Comida”, o pior que pode acontecer é as pessoas não gostarem assim tanto, porque já é o que estão à espera. Ali é um bocado mais um gamble. Mas se sinto que é uma boa canção, isso vai proteger a música. A conversa não vai bazar muito para o “olha, agora está a cantar”. Foi uma cena que também senti com o “Teu Eternamente”, porque foi a primeira vez que as pessoas me ouviram com auto-tune. E era uma cena que me trazia bué insegurança. Na verdade, há músicas do TAOSD que têm auto-tune, mas são mais tipo coros, é mais efeito. 

Slow J: Antes de ter escrito a “Serenata”, fui ao NOS Alive ver o concerto de Sam Smith [em 2015]. E foi um concerto inacreditável, o gajo é incrível — a carreira dele está meio estranha agora mas naquela fase ele estava a matar tudo. Eu não conhecia tudo, era fã de algumas cenas e fui porque a minha prima mais nova queria ir, então fomos os dois. E há um som do gajo que nunca tinha ouvido que é “Lay Me Down”. E quando entra o refrão daquilo… é dos mais inacreditáveis que já ouvi. A forma da melodia faz com que a maneira como o público canta seja inacreditável. Então quando o gajo entra… não sei quantas mil pessoas a cantar. Matou-me completamente. Fiquei bué com a cena de: será que consigo escrever um refrão tão…?

Slow J: E na “Serenata”, “dizes que queres ser a minha terapia” é muito “can I lay by your side”. Foi muito baseada na ideia dessa canção. Acabou por ser um exercício bué fixe de como escrever um refrão. O tipo de songwriting é mesmo o que a protege, porque vais ouvir a versão na net e estou desafinado — para o meu ouvido de hoje em dia. A produção não tem nada, é guitarra e voz. E quando vais ver ao vivo, é talvez a maior de todas ou lá perto. 

Slow J: Hoje em dia continua a ser uma das canções mais cantadas nos meus concertos. Lembro-me de haver pessoas a pedirem para cantar, e eu tinha vergonha de a cantar ao vivo [risos]. Eu aprendi a cantar ao vivo. Não houve aulas no meio nem nada. No estúdio, estiquei a corda o mais longe onde consigo ir em termos de performance e depois ao vivo tive de correr atrás. E já houve vezes em que atingi notas ao vivo que nem sabia que conseguia. Quando estás numa certa energia com o público, as cenas clicam e há muitas coisas que não considerava que estavam nas minhas cartas que de repente apareceram e é muito interessante. Essa é uma das canções que mais me levou a aprender a cantar.

Slow J: Sendo que a “Serenata” saiu como demo [em 2016] e foi um bocado rocha [risos]. Pelo menos a minha sensação foi essa, que as pessoas não ligaram nada de especial. E gradualmente sinto que acabou por encontrar um público. 



[“Sonhei para Dentro” nasceu de um beat que já tinha saído]

Slow J: O beat fiz no âmbito de uma rubrica de skate [em 2015]. Era um formato em que entrevistavam um músico e um skater juntos. Na altura, chamaram-me a mim e ao BP — fiz um beat e eles filmaram uma cena de skate dele e usaram o beat como banda sonora. O instrumental que fiz foi o “Sonhei para Dentro”. É um beat de que curti bué, então o exercício foi tentar encontrar uma canção que fizesse sentido naquele beat.

Slow J: Este álbum também é bué pré-trap moderno. A sonoridade ainda não é aquela… Não comparando, mas sinto a mesma cena no good kid, m.A.A.d city. Aquilo tem bué elementos de trap, mas a maneira como o bass bate, as tarolas, não são o trap moderno que se estabeleceu, ainda não havia essas ferramentas. E o “Sonhei para Dentro”, tal como o “Pagar as Contas”, para mim são um bocado visões do que é que o trap poderia vir a ser a partir dali, esteticamente.



[A intro inspirada por Valete]

Slow J: Na intro é o [ex-presidente uruguaio José] Mujica que está a falar. Simplesmente era uma pessoa cujas ideias me inspiravam bué na altura. Ao mesmo tempo, é um bocado um head nod ao álbum do Valete [Serviço Público] em que tens sempre líderes a falar espanhol [risos]. Achei interessante, é um head nod à legacy do Valete. O ouvinte que cresceu a ouvir o que eu ouvi compreende o porquê, mesmo sem perceber o que o gajo diz, de eu abrir o álbum assim.



[“Arte” e a influência dos Imagine Dragons]

Slow J: Lembra-me dos Imagine Dragons… Os gajos levam bué hate do pessoal do rock, mas o produtor deles é o Alex da Kid, que fez o “Love The Way You Lie” de Eminem com Rihanna. E a sonoridade do álbum dos Imagine Dragons era uma cena bué nova. Exatamente por estar tão a olhar para a frente, de ter essa noção de hip hop e rock juntos. Lembro-me de que estava à procura de qualquer coisa que tivesse esse tipo de dimensão, de som de estádio. Gravei aquela guitarra, fiz aqueles drums barulhentos, saiu-me o beat, saiu-me a ideia, não me lembro de ter sido uma música que tenha demorado muito a fazer. Acho que os versos foram um bocadinho mais chatos, se não me engano. Também estava a referenciar um bocado Xutos & Pontapés, naquela maneira que fiz a entrada. Achei que era um som bué interessante para ser a primeira música.

Slow J: Quando fiz a tape do sLo-fi foi a primeira vez que fiz música com o objectivo de tu não reparares quando passa de uma música para a outra. É suave na maneira como entra, como muda de uma para outra, o objectivo é um bocado esse. Porque o meu ponto-de-vista sempre foi: quando a minha música entrar, quero que repares. Quero que te magoe uma beca o ouvido e fiques “o que é isto?”, dar-te essa sensação energética. E por isso é que achei que o “Arte” era a intro perfeita por ser uma cena tão barulhenta e diferente do que tinhas até ali no hip hop.



[O groove de “Casa”]

Slow J: Acho que foi só um beat maluco que saiu e ficou uma ideia fixe. É engraçado como o tempo passa e as cenas mudam, mas lembro-me de que fazer um beat marado, muito diferente, era uma cena que me excitava bué. E a maneira como o “Casa” groova, e é dark e agressivo ao mesmo tempo – é afro e tem uma cena de dança. Puxou-me bué. Um beat inspira-me, mas normalmente não me puxa um tópico. Normalmente vem do que é que estou a viver na minha vida em determinado momento. O facto de ser o segundo tema teve um objectivo concreto de contraste, entre o primeiro e o segundo som.



[“Às Vezes” alguém merece a tua confiança]

Slow J: O “Às Vezes” demorei uma hora ou duas a escrever, é para aí o som mais rápido que já escrevi. E não sabia como terminá-lo, não estava a ver ainda. Num dia fui com o Fred conhecer o estúdio dos Xutos e ele convidou o NERVE também. É preciso perspectiva nestas coisas, porque as cenas eram diferentes naquela altura. O NERVE era a coisa mais quente que existia no planeta. Que exagero [risos], mas tinha acabado de lançar o álbum que demorou sete anos a fazer [‘Trabalho & Conhaque’ ou ‘A Vida Não Presta & Ninguém Merece a Tua Confiança’]. Eu era um puto que ainda não tinha lançado nada de jeito. Ou seja, tinha umas coisas mas não estava minimamente perto da dimensão do que ele estava a fazer. E foi engraçada essa cena de conversar uma beca com o gajo, ele é intro, eu sou intro, e randomly pensar: se calhar tenho aqui uma música que é meio a tua vibe.

Slow J: Fiz o “Às Vezes” numa fase em que estava a ouvir bué Allen Halloween. Claramente há influências dele no flow que uso no “Às Vezes”. E o NERVE ouviu e curtiu. Naquela altura fiquei a pensar: se calhar ele manda um verso, se calhar não, se calhar vai só cagar. Foi a minha sensação, não fiquei com certeza nenhuma [risos]. E depois lembro-me de receber o verso do gajo pelo Messenger, tinha tipo 1% de bateria, uma cena engraçadíssima, eu estava num restaurante ou algo do género e fui lá fora ouvir o verso e fiquei “que verso, mano! Que cena!” E acho que é dos versos mais essenciais do TAOSD. Acho que é dos versos que mais dão mística ao álbum. Sem ter o NERVE no “Às Vezes”, parece que perdes bué do álbum. Tive sorte, ele há-de ter curtido da música. Depois tem também vocals do Francis Dale, aqueles falsetes inacreditáveis, que é mesmo a voz dele. A nota que ele atinge… eu não tenho essa nota dentro de mim. Mas houve muita experimentação. Cheguei a ter o NERVE como interlúdio antes do “Às Vezes”.

NERVE: Conhecemo-nos nessa visita ao estúdio, estávamos os dois numa fase engraçada. Eu tinha acabado de lançar o ‘Trabalho & Conhaque‘, ele tinha lançado há pouco tempo a The Free Food Tape, portanto houve ali uma boa química. Acompanhei parte do processo do álbum do Slow J, ou seja, encontrámo-nos mais vezes depois dessa primeira visita ao estúdio dos Xutos, mas acho que foi nesse primeiro encontro que ele mostrou o “Às Vezes”, uma faixa que estava praticamente feita, ele já tinha a parte dele escrita, tinha refrão. E havia ali um espaço no final em que ele me perguntou se eu queria fazer alguma coisa. Com a música já feita, o meu trabalho foi procurar ali algum ângulo que pudesse acrescentar alguma coisa de valor, e de facto fiquei entusiasmado com a ideia, porque a ambiência, o instrumental, também a própria temática assim mais taciturna e negra que se enquadrava bem no tipo de coisas que andava a escrever na altura, quis de facto participar e acho que fiz uma coisa relativamente rápido, o que não era assim tão comum nessa altura. Mas do meu lado nunca houve dúvidas sobre se eu iria querer participar nessa faixa ou não [risos].



[As múltiplas transformações de “Biza”]

Slow J: O “Biza” é crazy. A versão final é para aí o terceiro beat. O segundo, se não me engano, era do Taser [agora Wake Up Sleep] — e isso informou algumas das decisões que foram tomadas, daí o Taser ser creditado. 

Wake Up Sleep: Conheci-o no estúdio do Fred. Tive oportunidade de estar com o Slow J por mero acaso e foi aí que ele teve a oportunidade de conhecer um pouco do meu trabalho instrumental. Pouco depois ele fez uma proposta para o “Biza” e experimentei fazer algo. Na altura sinto que não tinha a maturidade de agora, seria completamente diferente o que sairia neste momento, isto para dizer que o produto final dessa obra não tem (ou pelo menos não consigo identificar) o meu cunho. Depois de lhe ter enviado a minha maquete tivemos talvez uma chamada, mas o contacto perdeu-se não sei bem porquê e entretanto o álbum saiu e vi que ele me tinha dado os créditos de produção nessa faixa. Tenho um enorme respeito pelo Slow J e o seu trabalho e fico contente que se tenha traduzido na faixa que hoje o pessoal pode ouvir. Aquele não é o meu beat, portanto assumo que contribuí para o desenvolvimento da faixa num sentido mais simbólico – e estou grato por isso na mesma. É interessante ver como a faixa se transformou, é das que o people mais sente. Atualmente ele não deixa de ser um dos artistas com quem gostaria de vir a trabalhar de uma forma mais séria.

Slow J: Fiz uma madrugada na Big Bit, apanhei o metro de manhã, estava de directa, fui para o comboio no Cais do Sodré e estava um trompetista a tocar. E enquanto estava a ouvir o “Biza” fui falar com ele, combinámos à noite juntarmo-nos na Big Bit, conversámos e ele gravou o mítico trompete do “Biza”. Depois de ele ter gravado, tirei o beat inteiro e fiz o piano e os drums.



[“Último Empregado (Interlude)” e a conexão com Fumaxa]

Slow J: Conheci o Fumaxa na Big Bit numa sessão do Bispo. Acho que não fiz nada nessa sessão mas devia estar por lá. E demo-nos logo bué bem, depois é que percebi que ele tinha morado em Londres e tínhamos várias coisas em comum. Tive pena de não ter conseguido ter mesmo um som inteiro produzido pelo gajo, mas é interessante, porque aquele sample… Eu nunca teria pegado naquilo ou dado o valor que dei se não tivesse chegado dele. Acho que é uma cena que as pessoas subestimam na colaboração. Porque tenho a ideia de que a parte dele é o sample. O sintetizador acho que já fui eu. Mas essa cena puxou-me a ideia. 

Slow J: É um ponto-de-vista, como é que hei-de dizer? É o meu gangsta rap. Aquilo que está dito ali e a forma como está dito é o meu as gangsta as it will ever get [risos]. E o Fumaxa é um gajo com bué boa energia, tanto que naquela fase sinto que acabou por crescer como produtor pelo quão as pessoas gostavam de o ter por perto. As pessoas dão pouco valor a esses intangíveis, mas é se calhar o único gajo que esteve no TAOSD, no You Are Forgiven e estava com o [Here’s] Johnny quando ele estava a produzir Regula e Holly Hood, e com o Landim… A quantidade de salas a que ele teve acesso e técnicas que pôde aprender e de pessoas que estavam abertas para lhe mostrar e receber inputs dele. Tem bué a ver com a personalidade dele, mais do que os beats — claro que ele tem um óptimo gosto e tem vindo a melhorar e a melhorar, mas acho que esse melhorar veio do quão ele está disposto a trazer boa energia à sala.



[O estrondoso single “Pagar as Contas”]

Slow J: Primeiro veio o beat, estava a tentar fazer um pesado. E cheguei ao refrão do “Pagar as Contas”. Convidei o Papillon, que conheci através do Factor, já nos tínhamos cruzado uma ou duas vezes. Ainda não tínhamos bué à vontade um com o outro, mas foi um dos momentos em que criámos mais esse à vontade, em que passámos mais tempo juntos. O Papi para mim era dos melhores MCs que estava na cena nessa altura. Tinhas o Papi, o Sacik Brow, o ProfJam… eram os gajos de quem eu era mesmo fã. E foi bué fixe perceber que ele estava aberto a trabalhar com um gajo, sei lá, eu ainda estava a dar os primeiros passos. O Papi é um gajo bué simples, mostrei-lhe a música, ele gostou e a partir daí estava chill.

Papillon: Eu não estava super por dentro das cenas do Slow J até começar a trabalhar com ele. Soube da primeira tape dele através do Factor. E foi numa ótica super descomprometida de estarmos a ouvir sons no carro. Lembro-me de ouvir o “Portus Calle” e ele disse “Ouve que esse bacano é fixe, ele trabalha comigo, é o Slow J”. E esse foi o meu primeiro contacto com a música dele.

Papillon: A primeira vez que ouvi o “Pagar as Contas” era o beat e o refrão. Identifiquei-me logo com a faixa, com o tema e a vibe. Casava muito com a abordagem que tinha e que continuo a ter. Mas acho que não lhe dei uma resposta imediata… Acho que disse: mano, curti bué, deixa ver o que é que sai [risos]. Depois a vida acontece e às vezes demora um bocado e, se não me engano, ele voltou a entrar em contacto comigo e a dizer “olha, já fizeste alguma cena para este beat?” Não me lembro da resposta que dei, mas lembro-me da primeira vez que ouvi ter sido emocionante para mim, porque o facto de ele estar a dizer “pagar as contas” várias vezes no refrão remeteu-me para momentos na minha vida mais de dificuldade económica. E peguei nessa emoção para fazer o verso. Lembro-me muito bem desse sentimento de throwback que o beat me deu, de me lembrar das dificuldades e de ter de lutar contra elas constantemente. O beat todo tinha essa carga que ajudou à letra que consegui fazer para essa canção.

Slow J: Mas o Gson não era suposto entrar no som. Originalmente convidei o Papillon e o ProfJam. Mas o Prof… não me lembro se não teve timing para fazer, mas são cenas que acontecem. E como o Prof não estava a conseguir para o deadline de que precisava foi por isso que chamei o Gson. 

Papillon: O J andou a tentar perceber quem é que fazia sentido entrar no som, como é que ele ia organizar as peças. É um som em que o Prof também esteve envolvido no processo criativo e poderia ter sido ele a fazer um dos versos.

Slow J: Conheci o Gson quando trabalhava na Big Bit. O Phoenix RDC esteve lá a gravar e a misturar um projecto. Então acabei por fazer bué noites com o Phoenix. Fazíamos da meia-noite até de madrugada. Completamente random, um gajo que chegou ao estúdio, pagou para fazer aquelas sessions, era o meu trabalho e fazia. E numa noite qualquer, estávamos lá tanto tempo que às vezes estávamos só à conversa, ele começou a mostrar-me pessoal do bairro dele no SoundCloud. E havia um puto que matava sempre toda a gente, estás a ver? E eu fiquei tipo: “quem é?” E o gajo disse algo como, “posso trazê-lo aqui se quiseres, tranquilo”. Então houve uma noite em que veio o Gson, conhecemo-nos e mantivemos o contacto desde aí.

Gson: Na altura eu e o João estávamos muitas vezes em estúdio, então era mais ou menos fácil e intuitivo fazer cenas com ele. Tínhamos aí algumas experiências de laboratório. O “Pagar as Contas” foi se calhar uma das que saíram bem. Pediu-me para pôr ali uma cena e, como bom mestre que é, depois o som teve aquele resultado. Aquele beat foi ligeiramente convidativo também: ele já sabia onde é que me estava a meter.

Slow J: Eles [Wet Bed Gang] tinham acabado de lançar o “Não Tens Visto”, que começou tipo bola de fogo. Fazia todo o sentido. Como ele também estava dentro e fez aquilo rapidíssimo… Ficou fixe no fim. 

Mas houve a dificuldade para Slow J entre escolher quem vinha primeiro na música: se Gson ou Papillon.

Slow J: Era perceber como é que a música funcionava melhor, porque é um bocado longa. É uma cena que faço bué, trocar partes de músicas, cortar partes, voltar a pôr. É bué experimentação, às vezes a experimentar fico mais confuso do que estava ao início e no “Pagar as Contas” foi um desses casos.

Made in Lx: Ele estava a acabar o álbum, ligou-me — não era por causa desta música. Mandou-me as músicas todas que tinha e disse-me para eu escolher. E acabei por escolher esta. É um som com grande power. Não vou muito pela letra, é mais pela vibe geral do som, se me puxa para algum lado. Acho que quando comecei a planear o vídeo o Gson ainda não estava na música. 

Made in Lx: Acho que esta ideia não me veio logo, ainda demorámos algum tempo a fazer este vídeo, porque eles estavam um bocado no início, a produção envolveu uma bomba de gasolina, um escritório e um antigo banco… Por isso andámos uns seis meses a cravar favores [risos]. As bombas de gasolina normalmente é difícil falar com os donos, mas conseguimos esta, eles deixaram-nos mas acho que não perceberam bem porque nunca mais nos disseram nada. Devem ter visto as filmagens das câmaras de segurança no dia a seguir. Nós explicámos o que íamos fazer, mas eles não devem ter percebido que íamos simular um assalto [risos] e depois não pediram nada em troca.

Made in Lx: Lembro-me de que a primeira coisa que queria fazer era a cena da mesa, de o gajo se passar e partir o escritório todo. Acho que partimos daí e depois construímos o resto à volta disso. 

Slow J: Na altura queria que tivesse tido mais [impacto]. Mas na minha cabeça de ouvinte de hip hop não estava a ver o que é que podias pôr que fosse mais quente que o “Pagar as Contas” porque eu tinha algum buzz, mas juntares o Papillon e o Gson, para o tipo de fã que eu era naquela altura… Inclusive lembro-me que tocámos o “Pagar as Contas” no ISCTE antes de ele ter saído. E lembro-me da cara dos fãs, porque não apresentámos os convidados antes da música começar. Então estás a ouvir a música pela primeira vez e de repente entra um, depois entra o outro, e ouves os fãs mesmo “ahh”. Aquelas junções de sonho. Obviamente nenhum de nós tinha o impacto que temos hoje, de termos criado a nossa marca… mas para o fã de hip hop naquela altura era a cena e foi esse o meu ponto de vista.

Papillon: Eu nunca estou à espera de nada, não tenho muita expectativa em relação às coisas que se lançam. Fico sempre mais concentrado no feeling e no que queremos fazer, mas na altura tinha alguma expectativa só pelo facto de se estar a fazer um vídeo muito interessante. Foi muito bom ver aquela malta toda a fazer um vídeo daquele nível de produção e a fazer uma cena mesmo fixe e coerente. A minha expectativa era mais para a recepção do vídeo do que propriamente para o som — se bem que estão colados um com o outro. Mas foi uma recepção positiva e fiquei bué contente.

Papillon: A partir desse momento, começámos a fazer cenas juntos, a parar mais tempo em estúdio, só numa óptica quase descomprometida de fazer música, e acabou por culminar numa colaboração onde ele ajudou a produzir o meu primeiro álbum. O “Pagar as Contas” foi a porta de entrada para começarmos a colaborar juntos. E acabámos por perceber que clicávamos fixe e que criativamente estávamos quase sempre na mesma página.



[A simplicidade de “P’ra Ti”]

Slow J: É um bocado uma note to self: a ideia era ser uma cena para o meu “eu” do futuro. Ser uma mensagem de força, de keep going. É uma canção bué simples, só com a guitarrinha, ficou com o clique lá atrás porque foi mal gravado por mim [risos]. É daquelas em que a vibe suja, de “isto foi um take”, era mais importante do que tentar tornar a cena perfeita. Lembro-me de ter escrito mais coisas para ali, tentar perceber se conseguia transformá-la numa canção inteira, mas acabou por ficar assim.



[“Sado”, a homenagem a Setúbal]

Slow J: Tem bué que se lhe diga em termos de conceito: é um bocado a ideia de pertença a um sítio — ou não. Quem é que se foi embora, quem é que abandonou o quê, se tudo correr mal voltas para lá como um derrotado. E a ideia de que o rio se está a cagar para isso, olha sempre de lado. Quer sejas quem está lá sempre, quer sejas quem foi embora e voltou, há uma indiferença em relação a isso, só tens de fazer a tua cena. 

Slow J: Ao mesmo tempo é uma homenagem à minha cidade, que acaba por ser a terra que escolhi, porque obviamente há pessoas que passaram mais tempo lá. O sítio onde me sinto em casa. O “Sado” soa a uma música que tenha escrito à guitarra e depois fiz o beat — acho que foi assim.

Slow J: As últimas coisas que fiz no álbum foi preencher buracos: tipo falta o segundo verso do “Sado”. Lembro-me que foi das últimas em que trabalhei. Foi uma semaninha ou duas de “falta-me só um verso” [risos].



[“Beijos (Interlude)”]

Slow J: Foi apenas uma experiência que fiz, uma sensação maternal de muitas experiências que tenho, mas quando estava a montar as canções todas do álbum soube bué bem naquele sítio e colou. Acho que a energia daquele som sabe bué bem na narrativa do álbum.



[Uma “Mun’Dança” para acabar em grande]

Slow J: Na minha cabeça é uma canção inacabada. Foi um bocado random. Já tinha o álbum todo acabado e fiz este som. E estava a pensar: vai ser uma cena fixe para as próximas coisas. Depois, na altura, o Miguel Mendes [o videógrafo Made in Lx] ouviu e ficou tipo, “não, puto, tens de pôr isto, tens de pôr isto no álbum, esta é a melhor, não vais pôr no álbum a melhor?” e é uma cena bué engraçada [risos]. Achei interessante como nota de saída.

Made in Lx: Estive a chateá-lo todos os dias até ao momento de ele estar a fazer as misturas, acho que ele só decidiu mesmo à última hora. Mas estive mesmo a chateá-lo bué. Vou um bocado pelo feeling da música e para mim chegava [ou seja, não era necessário torná-la uma canção mais completa], por isso insisti com ele.

Slow J: Nunca fiz muito esse raciocínio, apesar de ter achado interessante quando o Rui Miguel Abreu fez a review e falou da questão de a primeira e a última música serem um bocado a moldura e faz-me bué sentido na leitura do álbum, mas não foi uma cena que eu tivesse pensado muito conscientemente. A “Mun’Dança” foi só vista como uma nota de saída e como um possível caminho para o futuro. Um “eu também posso ir aqui”.

Slow J: Acabei por ir a Bristol no final do álbum. Fui ter com a minha namorada, com quem vivo agora e temos o nosso filho, ela estava a morar lá e lembro-me de que fiquei uma semana ou duas sem ouvir o álbum nem trabalhar em música. Um dia saí para dar um passeio, fui só a andar e a ouvir e acabei o álbum. Ou melhor: percebi que ele já estava acabado. 



[A escolha do alinhamento]

Slow J: É um bocado duro, honestamente. Mas é das coisas em que mais dá para ter ajuda. E tenho amigos que são… o Tomás é um gajo bué de significado e conceito. “O que é que esta música quer dizer?” Começa a retirar a frase essencial da música e como é que isso junta com a seguir. Eu sou mais de: “sabe bem ou não quando entra?” O Papi é bué bom nessas cenas, é super avançado, nos álbuns dele ele sabe tudo antes de o álbum estar feito. E por acaso não sei se ele deu uma ajuda com este, com o TAOSD. Mas costuma ser um bocado este processo, pedir opiniões, ir ouvindo, mas o que é duro é que estás sempre a ouvir uma hora de música. Agora trocas uma e vais ter de ouvir outra vez do início e é complicado manter a perspectiva, do ouvinte que vai ouvir pela primeira vez.

Tomás Martins: Sou uma pessoa muito simbólica e de significado, é isso que procuro. As pessoas com quem trabalho, os projectos onde me meto, as coisas que me mexem, são coisas que têm significados. 

Tomás Martins: Estou sempre à procura de uma história e de algo que faça sentido conceptualmente. E normalmente quando os artistas estão muito envolvidos no processo criativo, focam-se mais na sonoridade e na energia, do que propriamente na percepção do que é que a música significa e como é que se liga com outras. Então isso foi sempre muito natural para mim, sou o gajo que gosta de fazer esquemas e infografias e tentar encontrar várias formas de olhar para o álbum. Primeiro como várias peças do puzzle e depois falar com ele, perceber a visão dele e dar-lhe através de metáforas — agora vamos fazer um gráfico com a intensidade, tempo, energia e velocidade de cada música. Para depois perceberes se tens muitas músicas bué down, ou muitas super energéticas. Qual é o tema central do álbum? Isso é o tipo de perguntas que faço naturalmente porque é assim que sou.

Tomás Martins: Em alguns momentos pode ajudar a organizar o pensamento porque não só estás à procura de criar uma cena que faça sentido sonicamente mas também estás à procura de algo que faça sentido… É pôr as coisas em cima da mesa e explorar as várias facetas do projecto. E normalmente os artistas já têm aquilo tudo lá. Eles já têm essas ferramentas todas dentro deles. O nome TAOSD já estava dado, por isso o Slow J já estava a dizer ao João sobre o que é o álbum. Não só lhe está a falar do resultado como está a dizer como é o processo de desacelerar em certos momentos e olhar com calma para as situações.

Tomás Martins: E se fizeres um álbum que é só uma combinação de temas então faz só singles, porque não estás a acrescentar nada com o produto como um todo. A tentativa era: eles são grandes sons, curtimos bué deles, vivem individualmente. Mas ‘bora fazer com que vivam como uma história. 



[As misturas — e a masterização]

Slow J: Como produzi e escrevi, já tinha um milhão de listens daquelas músicas todas e tinha que misturar porque não havia budget… Eu não queria, tentei até falar com alguns amigos meus da universidade para perceber se alguém tinha esse à vontade, mas obviamente que estão nas vidas deles. Não tinha ninguém com que tivesse essa confiança de “vou pôr nas mãos desta pessoa”. 

Slow J: A mistura do TAOSD tem pouco preciosismo e acho que acabou por ser uma das coisas bonitas do álbum, em retrospectiva jogou a favor. Mas não havia outra maneira que eu conseguisse fazer. Eu não tinha quase mais plafond de ouvidos para ouvir aquilo [risos], então ataquei aquilo assim: vou acordar de manhã, rever a mistura do dia anterior rapidamente, começar uma mistura nova e acabá-la, e fechar a loja tipo às três da tarde. E fiz isto sucessivamente, dei a volta inteira ao álbum, sem preciosismo nenhum. Só princípios básicos: a voz tem de se ouvir bem, os drums têm de estar isto, coisas básicas. Não estava com “agora tenho de acertar esta sílaba ou pôr este delay espacial”. A parte criativa foi toda antes da mistura e levei a mistura como uma cena bué técnica. 

A masterização foi feita pelo engenheiro de som americano Chris Athens.

Slow J: Trabalhei com o Valete um tempo antes de lançar o TAOSD. No “Rap Consciente”, não sei se a minha mistura levou retoques, mas o master foi ao Chris Athens. E eu adorei – tudo o que o gajo fez em cima da minha mistura resultou super bem. E para todos os mixing engineers, o mastering engineer é aquele gajo que precisas de ter que seja de confiança. Se não, a tua vida é muito mais difícil.

Slow J: E o gajo salvou as minhas misturas do TAOSD, fiquei super contente [risos]. Consigo dormir descansado à noite por saber que ele existe. Como não tinha um estúdio bué acusticamente tratado e só tinha umas colunas pequenas porque não tinha dinheiro para comprar maiores, o álbum tinha muito pouco bass. Eu nem conseguia ouvir o bass quando estava a misturar. O Chris Athens acabou por me safar isso, como ele é um mastering engineer bué experiente conseguiu equilibrar o álbum, estava bastante mais médio-agudo, estridente, e acabou por ficar bem mais quente.

Slow J: Eu mandei-lhe sem indicações nenhumas, ele mandou de volta em velocidade recorde, e estava tudo perfeito. Não houve nenhum pedido de “rectifica isto, se faz favor”, nada. Incrível. E mesmo no “Nada a Esconder”, que foi masterizado por ele, nós pedimos-lhe uma revisão e depois lançámos o original que ele nos tinha enviado [risos]. É muita experiência.



[A icónica capa do macaco]

Slow J: A ideia da capa foi muito do [designer] Rui Gonçalves. Tivemos algum back and forth até chegarmos a um conceito que funciona. Sempre tive alguma dificuldade com o lado visual porque não tenho nenhum skill disso, sempre fui um gajo controlador com o meu trabalho, é difícil pôr-me nas mãos de outras pessoas e aí acho que foi uma situação em que confiei e deu resultados. 

Slow J e Rui Gonçalves conheceram-se na adolescência, num campo de férias.

Rui Gonçalves: Ele sempre soube que eu gostava de desenhar e acho que sabia que eu ia seguir essa área. Depois ficámos bastante tempo sem nos falarmos. E como descobri que ele estava a começar a fazer música, acho que no Facebook ele partilhou um som que era o “Portus Calle”, lembro-me de ouvir e curti bué. Mas nem sequer associei que era ele. Sempre soube que ele tinha uma grande voz, mas nem associei. E perguntei-lhe: este és tu, agora fazes música? E ele disse que ia lançar um projeto e que por acaso estava para falar comigo.

Depois desta conversa, Rui Gonçalves criou a capa de The Free Food Tape e o logótipo de Slow J. Por isso tornou-se natural que também concebesse o artwork de The Art of Slowing Down. Antes de mais, fez questão de ouvir o álbum na íntegra.

Rui Gonçalves: Lembro-me de que isto começou com um brainstorm. Eles sabem que curto bué de fazer cenas relacionadas com animais e uma cena bacana de trabalhar com a Sente Isto é que me dão bastante liberdade para criar: faz a cena que também curtas. Lembro-me de a cena dos animais estar desde o início. Lembro-me de falarmos de uma tartaruga, começámos com uns conceitos muito estranhos, uma grande mistura de animais. Eles são bué conceptuais, o que é fixe e ajuda na conceção da capa. Acho que comecei a pesquisar animais, a ver os sentidos por trás, o que certos povos pensam dos animais e foi por aí.

Rui Gonçalves: Não quero dar o conceito todo, não quero explicar as razões todas por trás, porque já ouvi conceitos muito fixes em que nunca pensei, então quero deixar em aberto. Mas este é um macaco japonês que está nas termas, naquela água super quente, e tem esse elemento zen e não é só isso – acho que é dos poucos animais que os japoneses consideram sagrados. Há um misticismo por trás dos macacos. 

Rui Gonçalves: Nós temos uma capa que nunca saiu. E ainda bem. Era um bonsai, meio desenhado, meio com fotos. O João não estava a sentir o macaco… Fiz o macaco em Lisboa e depois, quando me mudei para Barcelona, o João disse-me “vamos tentar fazer outra cena que acho que isto ainda não está lá”. Acho que o que mudou foi a maneira como pusemos o lettering e o logo, e acho que foi isso que fez com que o João depois curtisse e aprovasse. Foi um detalhe que lhe deu assim um clique e por acaso faz toda a diferença.

Slow J: Porque, de facto, a capa ficou reconhecível. As pessoas sabem que é o CD do macaco [risos]. Conceptualmente, faz bué sentido. Não é uma imagética de que eu me fosse lembrar, mas a cena de ele estar no balde de água quente, de ter um ar meio relaxado, de ter uma cena de sabedoria nas linhas dele, de ser bué humano. E ao mesmo tempo o calor do balde dá a sensação de que é uma cena que está prestes a rebentar… acho que tem tudo a ver com a energia e conceito do álbum, acho que foi um match excelente em termos de cor e conceito. Acabei por dar o braço a torcer [risos].

Rui Gonçalves: Isto fui eu e o Tomás um bocado a convencermos o João de que aquela era a capa [risos]. A única cena que ele não queria era que o pessoal o associasse ao macaco. Essa foi a maior reticência dele. O João nunca ficou totalmente convencido. Acho que ele curte, mas acho que nunca curtiu tanto como o resto do pessoal curte. É dos poucos trabalhos que, passado alguns anos, ainda curto – normalmente não é algo que aconteça com os meus trabalhos.

A capa tem uma base de fotografia, mas inclui muito desenho — todo o pelo do macaco, por exemplo, foi criado por Rui Gonçalves. O tempo de elaboração durou cerca de dois meses, embora o processo tenha sido bastante mais longo. Rui Gonçalves fez depois a capa de Deepak Looper, o álbum de estreia de Papillon, e está neste momento a trabalhar noutra capa para o mesmo núcleo de artistas.



[O concerto de apresentação no Estúdio Time Out, em Lisboa — que coincidiu com o quinto aniversário do site Rap Notícias]

[Não houve uma intenção específica de lançar o álbum em Março. A ideia era lançar no final de 2016, mas por atrasos acabou por ficar para esta data.]

Slow J: O álbum saiu a seguir ao concerto, tipo à meia-noite. Foi grande cena. Lembro-me perfeitamente de nos terem aconselhado a fazer uma sala mais pequena, e de nos dizerem “mais vale 200 pessoas esgotado do que mil pessoas com meia casa”. E nós tínhamos a sensação de que queríamos fazer algo diferente. Daí termos escolhido um espaço onde as pessoas normalmente não faziam esse tipo de coisas. Foi um concerto mesmo especial. Desde esgotar – acho que nunca tinha esgotado nada na vida – à mística toda das participações, a malta toda no backstage. Curiosamente foram os Wet Bed Gang que abriram o concerto.

Slow J: Lembro-me de chegarmos lá às três da tarde para fazer o soundcheck… Atenção que isto éramos nós sozinhos a improvisar tudo. Chegámos lá e, na altura em que alugámos a sala, havia lá uma coisa a dizer: “queres pagar mais 35€ e nós montamos o palco?” E nós: “35€? Poupamos o dinheiro”. Mano, chegámos lá e não havia palco. Havia plataformazinhas espalhadas pela casa. Foi engraçadíssimo [risos]. Então, nós todos à hora do soundcheck a correr a tentar perceber como é que se encaixava as plataformas, estávamos todos a montar o palco [risos]. Foi bué fixe, são histórias que hoje em dia nos lembramos, das cenas que nos trouxeram até aqui. O soundcheck atrasado, meu deus, que dia mais stressante [risos].

Slow J: Todos os concertos que fiz em nome próprio foram muito bonitos. E esse foi bué fixe, porque sentes um público… Nós tocámos o álbum do início ao fim. Por acaso houve uma introdução brutal, que foi o Francis Dale a tocar a “Cristalina” no teclado, o Fred a rufar na bateria tipo drums de guerra, e o público começou a cantar. E cantaram a “Cristalina” do início ao fim sem eu ter entrado. Depois entrei, começámos o álbum a partir do “Arte”, tocámos o álbum todo até ao fim – as pessoas só conheciam quatro ou cinco sons e nos outros foram atrás — e depois fechámos com umas quantas canções do EP, porque obviamente era o que as pessoas conheciam. Lembro-me de que foi um grande filme mesmo. 



[O lançamento do álbum — e o impacto que teve]

Slow J: Lancei o TAOSD e passou um mês, passaram dois meses e não aconteceu nada. Eu já estava a ver se arranjava tipo um part-time que desse para fazer música na outra parte do dia. Ou a dar aulas de produção. Ou seja, nada indicava que o TAOSD seria o último álbum que faria sem viver da música. Que esse ia ser o tipping point e que a partir daí ia poder focar-me só nisso. 

Slow J: Hoje em dia também sinto, mas na altura houve uma cena avassaladora que era a comparação. Ok, lancei este álbum e está a ter estas visualizações. Mas o Dillaz tem aquelas. O ProfJam tem aquelas, e os Wet Bed Gang, sei lá. Toda esta noção de “não cheguei minimamente ali”. Mas ao mesmo tempo também é uma falta de noção de que uma coisa não implica a outra. Obviamente, na altura havia músicos com poucas visualizações que faziam vida da música. Encontravam público noutros sítios.

Slow J: A minha memória dessa altura é que ganhei muito mais following estando quieto e calado do que a fazer promoção ou entrevistas. Acho que foi uma cena bué gradual. Houve alguns pivotal moments, como ter oportunidade de nesse Verão tocar no Super Bock Super Rock.

Slow J: Sabes aquela cena natural de ter um grupo de amigos e normalmente há um que aparece com músicas novas, e tem um bocado esse efeito dominó? Demora o seu tempo. Aquelas pessoas mais atentas, que leem o artigo do Rimas e Batidas ou que ouvem na rádio não sei quê apanham e “ui, estou a curtir isto, vou ouvir o álbum”. Os álbuns acho que são bué importantes para aprofundar a relação do público com o artista. Pode-se comparar com uma amizade: primeiro conheces uma pessoa provavelmente através de um amigo e estão juntos. Que é igual a um amigo mostrar-te uma música e estão os dois a ouvir. Mas depois há o momento de tu ires sozinho combinar um café com a pessoa e por aí fora. E depois há o momento em que têm uma conversa bué fixe, um aprofundar. E quando não há o álbum, acho que é isso que falta na relação entre um artista e um fã. É uma conversa deep. E um fã que ouviu o álbum inteiro tem uma relação completamente diferente.

Slow J: Como imagino na minha cabeça, ao longo daqueles seis meses a seguir a ter lançado o álbum, a cena gradualmente foi entrando. E quando cheguei a Setembro ou Outubro já tinha concertos suficientes para viver da música. Claro que também tive sorte com os concertos que consegui, porque tocares no Super Bock Super Rock é uma cena que levanta as antenas aos outros promotores.

Slow J: O TAOSD foi o álbum que mudou a minha vida nesse aspeto, que virou completamente ao contrário toda a cena de “o que é que estás a fazer da vida, já não vais a lado nenhum”, todas estas coisas que acho que quase todos os músicos têm, por estares a seguir uma carreira bué perigosa. 

Slow J: No início é tão abstrato, tu sequer pensares que as pessoas vão parar para ouvir a tua música, quanto mais regularmente. Eu nunca fui o gajo de: fiz um som e vou mandar a todos os meus amigos no Messenger. Parece-me bué intrusivo. Ir daí até ao ponto em que quando lanço um som todos os meus amigos me mandam mensagem, essa sensação de que há uma procura tão grande por aquilo que tu vais viver daquilo…



[A tour depois do álbum]

Com Fred Ferreira e Francis Dale, Slow J começou a actuar em inúmeros festivais e eventos ao longo do Verão e Outono de 2017.

Fred: Posso-me ter disponibilizado para, se fosse preciso alguma coisa nessa parte ao vivo, ajudar no que fosse possível. Provavelmente deixei-o à vontade com isso, que poderia contar comigo, e felizmente confiou em mim e acompanhei-o durante bastante tempo.

Fred: Fizemos um concerto só os dois no Lux — se não me engano — e logo a seguir entra o Francis Dale, que também estava no espaço connosco, e aquilo foi crescendo cada vez mais e acompanhámo-lo sempre até ao final dessa tour.

Fred: Gostei muito de ver o desenvolvimento do próprio concerto, chegou a uma altura em que já estava realmente muito oleado e conseguimos fazer um espetáculo muito consistente. Ver aquele crescimento desde o primeiro concerto até ao fim, em que ele foi tendo um público cada vez maior e o concerto ia ficando cada vez melhor, íamos acrescentando coisas novas, tendo uma dinâmica muito interessante ao vivo, foi um processo fantástico.

Slow J continuou a dar concertos até 2019, tendo depois interrompido para terminar o seu segundo álbum, You Are Forgiven, editado nesse ano. Depois, veio a pandemia. Mas Slow J já se tinha saturado, de alguma forma, de fazer tantos espetáculos.

Slow J: Parei de dar concertos no ano antes da pandemia para terminar o You Are Forgiven. Portanto, por um lado perdi imenso dinheiro [risos]. Por outro, foi um timing fixe porque nos habituámos a viver com menos. Aqui nos nossos gastos estamos bacanos mesmo sem concertos – tivemos de descobrir isso. E foi bom porque quando bateu a pandemia foi só continuar.

Slow J: Mas houve uma fase em que senti que estava a dar concertos demais, para o meu enjoyment. A partir daí comecei a controlar mais e a reduzir o número de concertos que aceitava e que queria. É uma decisão bué complicada, porque quando dou muitos concertos, toda a gente fica feliz menos eu. Os fãs curtem bué que eu dê concertos, a minha equipa ganha dinheiro, eu ganho dinheiro. É bué estranho como artista recusar ou querer fazer menos concertos. Porque estás a dizer que não a dinheiro e os teus fãs iam ficar contentes. Ainda estou a tentar compreender como vai ser o futuro. Porque claramente há concertos que adorei dar e que vou querer voltar a fazer, mas é importante ser honesto comigo próprio, enquanto pessoa. Se estás num trabalho de que não gostas, é importante que, a um certo ponto, arranjes maneira de transformar esse trabalho, porque não te está a fazer bem. E como artista as pessoas assumem que é isto o que tu fazes [risos]. É um bocado um molde que estou a tentar quebrar de alguma forma. Não é cortando com os concertos, mas é tentar não depender disso financeiramente e pôr o foco para que, o que fizer, seja bem feito. Que seja uma coisa de que todos gostem, incluindo eu. Nesse sentido acho que pode ser positivo, em vez de ser um rol negativo em que estou exausto emocionalmente, não tenho inspiração para fazer música e por aí fora. 



[Olhar para o álbum em retrospectiva]

Slow J: Não é um álbum em que mudasse alguma coisa. E dou-lhe bué valor hoje em dia. Tenho até a sensação de “quem me dera ter um álbum assim para lançar agora”. Claro que nunca poderia ser a mesma cena. O You Are Forgiven é quase uma antítese do TAOSD. Aquilo que o faz funcionar não tem nada a ver. E acho que o TAOSD funciona mais pelas suas imperfeições, pelo seu [registo de] inacabado, e por ser a mistura de tudo, o não haver um grande limite.

Slow J explica como o sucesso de “Cristalina”, tema de The Free Food Tape, foi essencial para perder inseguranças e para poder arriscar mais em TAOSD.

Slow J: Na tape tinha uma vontade de que todas as músicas soassem muito distintas umas das outras. Mas de facto estão mais presas ao mesmo género e depois tens a “Cristalina”. E obviamente, o facto de a “Cristalina” ter resultado tão bem deu-me um ponto de vista… Aquilo era uma música que eu tinha medo de lançar. Mexia com as minhas inseguranças. E depois de lançar e ter uma reação tão boa, abriu-me muito o espectro: “ok, há bué mais coisas que posso fazer”. E foi o que acabou por empurrar o TAOSD para esse tipo de coisas… São bué diferentes, mas se calhar sem o “Cristalina” a introdução do Arte não ia ser assim, com aquele flow bué cantado. 

Slow J: No início vais um bocado a medo, mas vais percebendo que há mais espaço, então podes arriscar mais. E há este exercício que vai acontecendo, que te vai permitindo seres mais tu próprio, exprimires mais coisas que sentes dentro de ti e isso também vai aproximar mais tipos de pessoas que sentem sentimentos diferentes.

Tomás Martins: O que acho que aconteceu é que quando conseguimos fazer uma retrospectiva da The Free Food Tape e percebemos que a música que foi menos mastigada — pelo artista –, que foi menos levada à sério, que foi mais uma decisão emocional de impulso – que até foi o Tiago, o irmão dele, que lhe disse “E aquela música, a ‘Cristalina’, porque é que não está lá?” Acho que a “Cristalina” acabou por se tornar um ponto de viragem. Não só foi a primeira vez que o João explorou mais a voz dele como cantor, teve um impacto positivo na confiança dele, e acho que era uma coisa que ele já estava a tentar fazer. O “Cristalina” tornou-se, primeiro, o ponto onde se sentiu confortável o suficiente para expressar-se numa outra energia que não rap. 

Tomás Martins: Depois, ao ser esse o maior chamariz para outras pessoas na vida profissional do João — como o Fred –, como se tornou uma espécie de música de culto, acabou por tornar as panóplias de possibilidades para Slow J muito mais abertas do que só o rap. Porque o rap se tornava algo mais confortável. Claro que ainda tens o “Comida” e o “Fome” sai a seguir, o J vai ter sempre essa componente, mas foi um espaço de “isto também é Slow J, e se calhar aqui está uma parte de Slow J que não encontramos facilmente noutro rapper”. 

Tomás Martins: Foi uma cena que depois possibilitou a “Serenata”. O “Beijos”, o “Último Empregado” têm a energia de rap mas também uma vibe meio experimental. Esse espaço da The Free Food Tape abriu muito a confiança para o João se explorar de forma mais livre e menos previsível.


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