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Publicado a: 01/04/2017

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[TEXTO] Rui Miguel Abreu

É raro, quando se contempla uma pintura exposta num museu, que os nossos olhos se desviem das formas erguidas pelo pincel do artista, das cores e dos jogos de luz, das figuras concretas ou abstractas, e se detenham na moldura. As margens de madeira para os oceanos de imagem e textura que as molduras representam estão ali apenas para conterem a ideia, para a separarem da parede que a sustenta. São o fim ou o princípio do que importa. Não é suposto repararmos nelas. Mas as molduras são muitas vezes o arranque das ideias, o que as define, que as contém e por isso mesmo o que as segura em termos conceptuais.

Pense-se em “Arte” e “Mun’dança” como as canções que servem de moldura ao quadro que Slow J pinta em The Art of Slowing Down. A primeira vive de uma abrasiva tensão eléctrica arrancada à guitarra, com J a expandir a sua voz a uma dinâmica mais rock. Explica ele aí que “queria ser como os grandes cantores”, aqueles “dos palcos gigantes”, dos que cruzam o mundo com a sua arte como bagagem principal. “Diz-me se isso é arte”, questiona-se ele depois. Com tanta verdade dentro, arriscamos mesmo responder “só pode ser”.

 



A outra “tábua” da moldura do álbum de estreia de Slow J é “Mun’dança”. E se na abertura é o rock a inspiração, aqui é a pista de dança olhada a partir da lente do afro-house que impõe a sua cadência. O abandono eléctrico do riff no início e, no final, o abandono rítmico do pulsar 4/4 que pode conseguir erguer-nos uns quantos centímetros acima da pista de dança quando tudo – a luz, a atmosfera, a gestão do DJ, a companhia… – se conjuga. E nesse tema uma frase repetida, com a certeza de que o futuro nos puxa irremediavelmente e que por isso mesmo vale a pena desacelerar, porque se sabe que lá chegaremos, seja como for: “Depois dessa vida vai vir a outra”. Uma promessa ou uma constatação de quem já não tem dúvidas de que é assim. Rock e house. No meio, um oceano ou uma galáxia.

The Free Food Tape, o trabalho inaugural da discografia de Slow J, surgiu vindo do “nada” em 2015. Na verdade, o aparecimento de Slow J foi, naquele momento, o reflexo de uma maturidade clara atingida pelo hip hop nacional, que aí já se afirmava como um prisma capaz de refractar muitas cores, um complexo puzzle de inúmeras peças encaixadas numa estimulante e  diversa paisagem. Hoje, o hip hop nacional tem espaço para as modernas tipologias trap da mesma salutar forma que resguarda terreno para a velha guarda boom bap, é vocal e instrumental, é urbano e suburbano, juvenil e adulto, é do norte, do sul e do centro, é de todas as cores e credos, de ambas as margens dos rios, da superfície e dos subterrâneos, é pop e experimental, vende muito e quase nada. É enorme. Slow J conseguiu, no meio desse mapa tão agitado, conquistar o seu próprio espaço, vincar a sua marca, abrindo uma clareira à sua volta que torna muito visível todo o seu trabalho.

 



Agora, The Art Of Slowing Down confirma o que dele se esperava depois da “amostra” (apenas em escala, não em resultado) de The Free Food Tape: mais do que rapper ou produtor ou cantor ou músico não deveremos temer aplicar a Slow J a palavra “artista” porque tudo o resto parece redutor no sentido de não conseguir abarcar plenamente aquilo que faz e propõe.

O artista aqui oferece muito pouca informação para lá da que a própria música contém. Na capa de The Art Of Slowing Down, Slow J é apontado como o produtor executivo e creditado como autor, produtor e engenheiro de som da (quase) totalidade do álbum, excepção feita ao interlúdio “Último Empregado” que tem co-produção de Fumaxa, ao tema “Biza” em que Taser tem idêntico crédito e a “Vida Boa”, com Intakto a ser igualmente listado como co-produtor. E é isso. Tudo o resto – excluindo, naturalmente, os contributos de Nerve em “Às Vezes” e de Gson e Papillon em “Pagar as Contas” – é da responsabilidade de João Coelho, o homem – o artista… – que o mundo conhece como Slow J.

A arte – que Slow J diz que é de desaceleramento – é o resultado de uma soma bem maior do que as partes: não é apenas uma questão de rimas dispostas em cima de batidas, é algo mais. Há aqui emoções e ideias, sonhos e sugestões. Slow J afirma-se como uma alma sem pátria – estética, talvez até geográfica – o filho de um rio que não pára de fluir e que por isso nunca é o mesmo. E dessa forma apresenta aqui o seu fado, o seu semba – “para quê querer complicar, lá em casa qualquer cor dá, mistura música” – num disco que viaja muito e se detém pouco. Entre o riff e a pista de dança, passando pelos auscultadores e pela calçada das ruas, pelo apartamento e pela escada, passando pelo sofá e pela cama, pela cabeça e pelo coração. esta música vai a muitos lados. É curiosa e sôfrega, como deve ser.

 



Curiosamente, para um artista que o hip hop reclamou como um dos seus futuros, é necessário esperar pelo tema número 5 do alinhamento, “Sonhei Para Dentro” – um retrato das intenções, da força, da determinação de Slow J como artista “24/7…” por oposição a quem o quer ver “empregado desde a creche” -, para se sentir o rapper que também há em Slow. Já se conhecem as declarações de Slow J sobre este assunto: ele afirmou que poderia ver The Art Of Slowing Down “arrumado” na secção de música portuguesa em vez de “encaixado” (as aspas são minhas…) na de hip hop. Isto é uma maneira de reclamar uma expansividade que o hip hop pode por vezes não atingir, uma forma de querer libertar-se de regras, de gritar liberdade: “Se não és rico nem pobre / nem preto nem branco / qual a camisola, bróda? / tão-me a meter etiquetas / gavetas, só tretas / para ver se a minha sola cola”, declara ele em “Comida” antes de deixar claro que para si “isto é de sol a sol / o meu caminho a mim pertence” . E daí a moldura ser aquela que já se descreveu – ampla.

Mas claro que há muito hip hop dentro de The Art of Slowing Down: o extraordinário momento de encontro com Nerve em “Às Vezes”, minimal porque importa que nada nos distraia das palavras; “Comida” é um tour de force de flow alimentado a palavras feitas de verdade e apoiadas numa cadência quase marcial; “Biza”, o retrato da árvore genealógica de Slow J, tem boom bap e jazz e rimas pensadas como “cor divina e plasticina”, ou seja como matéria para pintar quadros e moldar formas; há ainda o incrível “Pagar as Contas”, pedaço difuso de trap e songwriting, em que Slow canta e rima, suspira e desespera num tema em que reflecte sobre o que é necessário fazer para “foder as contas” e onde surge, como um benigno furacão de energia pura, Gson dos Wet Bed Gang que aí declara querer “trazer o 2Pac à década do rap trap”, e ainda Papillon, homem da GROGNation, outro talento desmedido que aqui parece rimar no fundo de um beco, atirando palavras como quem desfere golpes “em modo Kill Bill”; “Vida Boa”, toada híbrida de R&B tingido de outra coisa qualquer que é uma espécie de catálogo de flows e ideias de colocação de voz que poderia servir várias canções; e “Sado”, outro incrível depósito de ideias em que Slow entra e sai de um modo trap na cadência das palavras, para também oferecer a soul que existe na sua voz e até aquilo que a estes ouvidos soa como um subtil estilismo fadista.

 



O hip hop, na verdade, atravessa todo o álbum, umas vezes impondo-se na arquitectura dos arranjos, nas cadências das baterias que Slow J programa sempre de forma imaginativa, outras vezes oferecendo apenas a lente para observar um mais vasto universo musical, na forma como se organizam em loops significantes as ideias melódicas que podem sustentar toadas mais cantadas. “Beijos (Interlude)”, “Serenata” ou “P’ra Ti” são momentos de diálogo entre guitarra e voz, que servem para Slow J exorcizar os Maneis Cruzes ou Ruis Velosos que também podem existir na sua garganta, mas até aí o MC que Slow não consegue nunca deixar de ser espreita nalguns versos, obrigando as palavras a impor o ritmo, mesmo quando não se vislumbra um bombo ou tarola nas imediações melódicas da canção.

The Art of Slowing Down é um registo carregado de méritos: começa por ser o trabalho que oferece à música portuguesa mais um grande compositor, mais uma grande voz que pode e deve ser considerada ao lado da de Samuel Úria ou Márcia como outra fonte de canções que podem ser reclamadas como marcas de identidade por esta geração; é também o claro afirmar de um produtor que, como Branko ou DJ Ride, tem o condão de traduzir um sentir distintamente português para dentro das páginas que escreve com as suas máquinas.

Na verdade, a única coisa que falta a The Art Of Slowing Down é tempo, perspectiva, futuro. Mas aí, nada a fazer, só se pode mesmo esperar que o novelo da vida se desenrole conferindo assim mais grandeza ou retirando enfim algum brilho a este conjunto de ideias emolduradas na certeza de que o caminho é longo e só abrandando se chegará lá mais depressa. Para já vale muito. E palpita-me que ainda irá crescer. Voltaremos, certamente, a encontrar-nos no final do ano, quando tivermos não que pagar, mas que fazer as contas aos 12 meses entretanto volvidos.

 


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