CD / Digital

Stereossauro

Bairro da Ponte

Valentim de Carvalho / 2019

Texto de Rui Miguel Abreu

Publicado a: 02/02/2019

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Existem, sempre o defendi, dois tipos de álbuns que o tempo gosta de resguardar: os realmente bons e os realmente importantes.

Pensando no vasto universo pop, não é preciso muito para concluir que um disco bom – daqueles em que se harmonizam de forma perfeita composições, arranjos, a qualidade das letras, se as houver, e das interpretações – pode não ser importante, no sentido de nenhum novo terreno inaugurar, de não transportar nenhuma mensagem particularmente disruptiva ou relevante para a História.

Remetendo-nos ao hip hop, e ao hip hop português, para que o exemplo seja ainda mais claro, poderia apontar Rostu Limpu de Sagas (e se alguém desse lado pensou “quem?…” então o meu argumento já está feito) como um disco realmente bom – com óptimos instrumentais, letras cuidadas e interpretações a roçarem a perfeição – mas cuja importância se mede não só pelo reduzido impacto que teve à época (e eu sei do que falo, já que o editei na Loop:Recordings, a editora que criei com D-Mars em 2001) como pela sua incapacidade de se ter agarrado à história pelo lado do culto (o facto de existirem cópias à venda no Discogs por 10 euros diz-me que não é alvo de uma procura propriamente desenfreada, como acontece com discos de Valete, Sam The Kid ou Fuse, por exemplo).

No sentido inverso, pode também argumentar-se que há discos muito importantes que não são realmente bons: a compilação Rapública, para dar mais um exemplo que nos é próximo, foi decisiva por ter inaugurado, e ainda por cima com algum estrondo, uma nova prática musical entre nós, por ter revelado vários e importantes talentos (Boss AC, Melo D, D-Mars…), por ter dado voz a uma série de artistas que eram eles mesmos filhos da história – em 1994, exactamente 20 anos depois do 25 de Abril, esta era a primeira geração afro-descendente já nascida em Portugal e este um dos seus primeiros gestos colectivos, uma verdadeira lança espetada, não em África, mas no coração da antiga capital do Império. Importantíssimo. Mas definido por uma produção deficiente, por uma poética ainda imberbe, por interpretações quase sempre marcadas pela inexperiência e pela falta de rasgo.

De quando em vez lá acontece o mesmo trabalho concentrar esses dois eixos de tracção – o da importância e o da qualidade. Mas é, naturalmente, uma ocasião mais rara, que só sucede quando o talento criativo investido na obra se encontra com uma dobra particular no tempo da história. Bairro da Ponte, o álbum que Stereossauro acaba de lançar –  finalmente! – é um desses registos, incrivelmente bom e decididamente importante.

Do fado, em primeiro lugar. Declarado Património Imaterial da Humanidade em finais de 2011, o fado é um campo artístico vasto, claramente ancorado na história por mérito de um conjunto de notáveis artistas  que assinaram trabalhos de excepção, com Amália Rodrigues justamente à cabeça, ela que criou várias obras tão importantes quanto geniais. Mas o fado foi também campo de um resistente conservadorismo: as inovações de Amália ao lado de Alain Oulman foram várias vezes escarnecidas como “óperas” pelo “establishment” fadista e os pontuais gestos de inovação assinados por quem gostava de correr riscos, como Mísia ou Paulo Bragança, para recordar dois “ovnis” aterrados no fado no arranque dos anos 90, foram severamente castigados por quem se arvorava guardião de uma qualquer ideia de pureza, tanto do lado dos artistas como do da crítica. E apesar da história estar polvilhada, aqui e ali, de aproximações ao fado pelo lado da pop – António Variações, Heróis do Mar, Anabela Duarte, Samuel Úria, Sam The Kid, Boss AC… – a verdade é que essas duas esferas pareciam no essencial não estar interessadas em comunicar, com o fado especialmente a manter-se a si mesmo refém da sua própria ideia de autenticidade.



O hip hop português, no seu longo processo de construção de uma identidade própria, não demorou a perceber que não seria apenas pela língua que poderia reclamar essa autonomia do modelo original americano, mas que também no lado instrumental haveria espaço para, por via do sampling, investigar a nossa própria natureza mais funda, afastando-se da matriz importada dos samples de soul ou funk ou jazz. Os Líderes da Nova Mensagem partiram de uma guitarra num disco de Carlos do Carmo e acabaram por usar o trinado metálico do fado em diferentes momentos do seu álbum de 1997; um par de anos mais tarde, Sam The Kid, logo no momento inaugural do seu percurso discográfico, assinou a belíssima “Que Estranha Forma de Vida”, mais um notável passo na apropriação do fado como marca de identidade local. Houve outros gestos sampladélicos importantes, como “Viva!”, a contribuição de Sam The Kid para uma homenagem a Carlos Paredes, Movimentos Perpétuos, que contém um incrível sample de Carlos do Carmo ou a recriação de “Verdes Anos”, também do mestre da guitarra portuguesa, por Stereossauro, primeiro, e os seus Beatbombers, logo depois.

Mas foi preciso esperar 10 anos para que Boss AC, do alto do sucesso obtido algum tempo antes com “Hip Hop (Sou Eu e És Tu)”, pudesse convocar Mariza para ao seu lado criar “Alguém Me Ouviu (Mantém-te Firme)”. Já não um sample, mas uma colaboração real entre dois estetas de campos até aí afastados. E uma década mais tarde, depois da UNESCO e depois da imposição internacional de figuras como Ana Moura ou Carminho, depois do crescimento exponencial do hip hop nos tops de streaming e nos cartazes de festivais, eis que é finalmente possível passar a habitar um local como Bairro da Ponte.

Da sua importância, antes de mais. Vão longe, muito longe, os dias em que Sam The Kid se viu atacado em tribunal por um Vítor Espadinha do lado errado da história que não percebeu que era vénia o facto de ter a sua voz, resgatada a uma entrevista, usada em Beats Vol. 1 – Amor. Para fazer Bairro da Ponte, Stereossauro recebeu as chaves do arquivo da Valentim de Carvalho, o que significa que teve não apenas acesso aos masters das obras de Amália Rodrigues, Carlos Paredes ou Alfredo Marceneiro – como qualquer outro produtor que pudesse comprar um CD numa loja ou descobrir um vinil numa qualquer feira de velharias – mas também aos preciosos multipistas que resguardam marcas do tempo que não são do conhecimento geral: ou porque contêm momentos que não chegaram a ser acoplados às obras editadas, como quando um artista se dirige ao engenheiro de som ou aos seus músicos, antes ou depois de concluído o take, ou porque permitem ouvir os elementos separados de cada canção – a pista das vozes, a da viola, a das guitarras, isoladas e por isso mesmo perfeitas para samplar e manipular. Semelhante e com este fôlego, só recordo o caso de Shades of Blue, quando Madlib foi autorizado a escutar multipistas de sessões históricas da Blue Note, podendo samplar solos de Donald Byrd que o mundo nunca tinha ouvido, precisamente porque acabaram por não ser usados nas misturas finais editadas.

Como terei oportunidade de explicar noutro texto, este novo conjunto de possibilidades artísticas – o tal acesso a multipistas que não são do domínio público, naturalmente – implica também uma até aqui inédita complexidade processual ao nível da angariação de autorizações de autores das obras sampladas. Para que Stereossauro possa servir Ace com um beat construído em cima de um sample de “A Viela” na interpretação de Alfredo Marceneiro, por exemplo, foi necessário que os herdeiros dos autores Guilherme Pereira da Rosa e do próprio Alfredo Rodrigo Duarte sancionassem o uso da voz e das guitarras resgatadas às sessões de 1960 que deram origem ao mega-clássico The Fabulous Marceneiro (registadas, como tive o privilégio de ouvir pela voz do histórico engenheiro de som Hugo Ribeiro – uma presença espectral em todo este disco –, no Teatro Taborda, na Graça, com o mítico fadista a cantar de olhos vendados pelo habitual lenço que usava ao pescoço para assim poder imaginar que ainda era noite e não já dia no momento em que gravava, após mais uma madrugada nas casas de fados).

A importância de Bairro da Ponte assenta também nesse importante facto de inaugurar um novo tipo de relação com o passado, de estabelecer uma norma para o acesso deste género a arquivos sonoros. Mas não se queda aí. É importante também porque prova definitivamente que há afinidades entre o fado e o hip hop que podem justificar mais do que um momento isolado num álbum. Já não apenas uma casa ou um quarto numa casa, mas um bairro inteiro.

E em cima de tudo isto, desta notável e inegável importância, há a qualidade do resultado final deste trabalho profundo de Stereossauro. Em boa verdade, e é o próprio produtor das Caldas da Rainha que o reclama, na entrevista que concedeu ao Rimas e Batidas, há anos que ele vinha a preparar o caminho para este ambicioso trabalho. Quem lhe conheça as mixtapes, as rotinas de combate em campeonatos de scratch, os sets que foi oferecendo em clubes e festivais de norte a sul do país (e mais além…) ou até a pequena série de vídeos Mãos Na Massa que acolhemos aqui mesmo no ReB, sabe bem que Stereossauro sempre fez da manipulação do nosso produto interno refinado – dos Clã a Sérgio Godinho, de Pedro Abrunhosa aos Mão Morta ou, pois claro, de Amália Rodrigues a Carlos Paredes – uma das mais vincadas marcas da sua própria identidade artística. Stereo sempre se assumiu como uma espécie muito particular de curador da nossa memória musical, mesmo quando mais ninguém parecia querer banhar-se nesse oceano de possibilidades infinitas. Este Bairro da Ponte não é pré-fabricado, faz-se antes de casas erguidas há muito por este autor.

Claro que a quantidade e diversidade de artistas convocados por Stereossauro para colaborarem nesta criação é outro factor diferenciador, outra marca indelével da sua importância e outro pilar sólido da sua qualidade: Camané, NBC, Slow J, Papillon, Plutonio, Ana Moura, Capicua, Gisela João, Ace, Dino D’Santiago, Carlos do Carmo, Rui Reininho, NERVE, Paulo de Carvalho e Sr Preto ao microfone ou Ricardo Gordo, DJ Ride, The Legendary Tigerman, Razat e Holly em guitarras e demais máquinas, compõem uma lista nunca antes vista na capa de um álbum português. E não é demais salientar a diversidade que tal lista acomoda: homens e mulheres, vocalistas e instrumentistas, veteranos e jovens, nomes do fado, do rock e do hip hop, brancos e negros e até gente viva, e infelizmente, num caso, já desaparecida: ver o nome do malogrado Razat impresso ao lado do de Paulo de Carvalho é talvez a mais sentida homenagem que alguém lhe poderia prestar…

Mas, enfim, nada disto, nem a vontade de cruzar universos distintos, nem a possibilidade de ter acesso a samples históricos, nem a riqueza da lista de convidados, seria por si só garante de qualidade. A matéria prima é de qualidade, claro, o projecto do bairro, para manter a metáfora arquitectónica, é arrojado, mas de pouco importaria se ao entrarmos em cada uma das “casas” não sentíssemos a qualidade da construção, o refinamento dos acabamentos, a sua real capacidade de ter vida dentro. E isso é o que mais existe em cada um dos 19 momentos de que se faz o alinhamento de Bairro da Ponte, faixas-bónus incluídas.

O álbum arranca com esse prodigioso (e já conhecido há alguns meses) tema que é “Flor de Maracujá”, uma espécie de molde para o espírito que atravessa todo o alinhamento: a voz de Amália a cantar palavras de Ary dos Santos (do fado “É da Torre Mais Alta”) dá o mote para uma “estranha e bela” interpretação de Camané de um poema assinado por Capicua. E tudo combina, tudo se encaixa: a base percussiva e os rendilhados harmónicos sequenciados por Stereossauro; as palavras de duas gerações diferentes de poetas que reclamaram, cada um à sua maneira, o seu tempo e o pensaram com mensagens com lastro real; o arrebatamento sincero de Camané, voz maior da nossa cultura que, mais uma vez, sai para fora do seu “habitat natural” para nos surpreender (já o tinha feito, por exemplo, a convite dos Dead Combo…).



Ao longo do álbum, Stereossauro revela um bom gosto inexcedível no tratamento da matéria prima que resgatou às fitas de quarto de polegada depositadas no cofre da Valentim de Carvalho que mesmo quando não são usadas, servem de inspiração a matéria original gravada por Ricardo Gordo ou até pelo próprio Stereossauro, como acontece, por exemplo, no extraordinário “Nunca Pares”, tema em que se cruzam Slow J, Papillon e Plutonio. Tivesse a nossa selecção tido este hino não cumprido nos ouvidos e se calhar o nosso desempenho no Mundial de 2018 teria sido diferente (quem raio escolhe a playlist que se escuta no balneário antes dos jogos da selecção?…).

Stereossauro não enjeita ambição neste álbum. E assume-se como verdadeiro produtor, muito, mas muito mais do que simples beatmaker: não é só saber a dose certa de bounce a colocar em cada bombo, não é só saber programar as tarolas, combinar os samples, arranjar e estruturar as composições, é também dirigir as vozes em estúdio, extrair delas as interpretações ideais para cada base instrumental e, nalguns casos até, assinar as palavras que se entregam aquelas gargantas: são de Tiago Norte as letras que cantam Ana Moura (“Depressa Demais”), Gisela João (“Vento”) ou Paulo de Carvalho (“Novo Sal”) e quem escreve frases como “os teus olhos não viram o fruto de mim, mas tem o teu nome e sabe de ti” (palavras para Razat?) ou “o vento soprou por nós, levou-nos a todo o lado, soltei as velas, esqueci todo o meu fado” (palavras para si mesmo?) poderá em breve estar a assinar mais textos para mais vozes desse fado sempre em busca de novas palavras.

E não são só as vozes do fado que arrepiam neste álbum – e para lá das já citadas de Ana Moura, Gisela João ou Camané, que incrível que é ouvir também Carlos do Carmo a assumir a orquestração cinemática em que Stereossauro, com ajuda de Tigerman e Ricardo Gordo, o envolve. Se Slow J, Papillon e Plutónio empolgam, em “Código da Rua”, por exemplo, Ace parece, sozinho, resgatar o velho espírito que ainda nos 90 fez dos Mind da Gap um dos pináculos da nossa cultura de rua; e “Ingrato” reafirma NERVE como uma das mais estonteantes personalidades da nossa música contemporânea, habitante das trevas que pinta com as suas palavras e histórias uma outra versão de um opressivo presente em que todos nos encontramos, mesmo que não se consigam vislumbrar essas sombras tal a multidão de turistas que nos rodeia a todos nesta cidade, neste bairro. E Sr. Preto, aka Chullage, que usa o mote de “Tudo Isto é Fado” para arrasar em “FFFFF”, um exercício de modernidade extrema em que o veterano combatente da rima deixa claro que não se pode pensar o futuro desta cultura sem a sua presença.

Pode ainda referir-se o homem que sinalizou a nossa revolução, aquela que nos trouxe até aqui, aquela que nos deu a mesma liberdade com que Stereossauro projectou este seu velho bairro novo: o Paulo de Carvalho, de “E Depois do Adeus”, canta agora à nova madrugada e confessa ter saudades do futuro. Temos todos. É um “mal” que nos enforma a todos. Canta Paulo de Carvalho, enganando-nos, obviamente, que do fado não sabe nada. Razat tão pouco saberia, mas os graves convocados neste arranjo dão o impulso certo à nobreza da voz do veterano cantor. Tudo certo aqui.

E tudo certo com NBC, com Capicua e Dino D’Santiago, com Holly e Ride e até com Rui Reininho, outro homem que em tempos assomou as margens do fado (lembram-se de “Sete Naves”?…) e que aqui veste o seu melhor fato de crooner, lantejoulas e tudo, para nos fazer lembrar que sempre foi dos melhores a manipular as palavras – “por causa de ti choram os meus toiros” – o que obriga a pensar como teria sido se Amália tivesse chegado a cantar palavras suas, como a dada altura se chegou a ponderar nos corredores da Valentim de Carvalho em que ambos se cruzavam.

Stereossauro assina aqui o melhor momento da sua já considerável carreira. Mas assina aqui, sobretudo, um disco para o futuro, uma obra que vai estabelecer uma fasquia para este tipo de exercício de colisão entre universos distintos. É um disco importante, sem a menor sombra de dúvida, e é um também um disco de extraordinária criatividade, sem mácula, carregado de ideias, de possibilidades, de luz e de alguma sombra. Tem espíritos dentro e pessoas vivas que cantam os nossos tempos. Como nos bairros a sério. Se soubéssemos, nós, os portugueses, onde andam os masters de Zeca Afonso, talvez Stereossauro lhes pudesse também imprimir nova vida. Vivemos tempos agitados que precisam de palavras de combate e também aí o hip hop tem uma missão a cumprir. Se depender de Stereossauro, tenho a certeza, nada ficará por dizer.


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