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Pedro Mafama

Tanto Sal

Edição Independente / 2018

Texto de Miguel Alexandre

Publicado a: 31/12/2018

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Costuma-se dizer que o assassino volta sempre ao lugar do crime, mas Pedro Mafama nunca saiu dele. As amarguras, as revoltas e todas as angústias vivem com ele em cada canto e em cada rua de Lisboa. Os crimes cometidos revelam-se em cada faixa de Tanto Sal, o novo EP do cantor, e pesam sobre ele a cada momento. Mas Pedro aprendeu a deixar ir, a deixar acontecer: preservar qualquer instante de complacência e altruísmo parecia uma batalha perdida, especialmente quando esta cidade continua a arrancar-lhe cada pedaço do seu coração. Agora, o que lhe falta é sacudir a filha da mãe de uma ressaca emocional que luta para não o abandonar – Tanto Sal foi a sua tentativa.

Pedro camufla-se em vários arquétipos para cada faixa do álbum. Uns são orgânicos, decididos perfeitamente pelo autor como maneira de exprimir um lado seu reprimido, mais pungente e característico; outros são meras facetas, pequenas e inócuas máscaras que escondem o lado melindrado, mas que ao mesmo tempo tem de ter a última palavra. Tanto Sal é precisamente isto: um balanço nada equilibrado entre um hedonismo desacerbado e uma cerrada tristeza que o acompanha no final do dia. É perigoso, mas ele avisa-nos logo na faixa “FAMA”: “Tou com má fama ma’ não fa’ mal/ Tou com má fama ma’ não fa’ mal”: as tímidas guitarras facilmente são substituídas por uma batida de kuduro e trap e também por uma voz pesada e encharcada em auto-tune. A premissa é semelhante nas músicas seguintes, não perdendo qualquer ponto de interesse. A verdade é que a música de Pedro faz parte da longa tradição de compositores portugueses: tal como Sam The Kid ou Mind The Gap, pertence a uma era de rappers-cantautores que escrevem a própria vida por linhas; mas como Conan Osiris, são alunos de uma nova escola que pretende romper com o usual, aliando momentos já conhecidos e familiares a um futurismo sónico.

Toda esta fórmula é fiel ao mote deste disco, já mencionado: a cidade de Lisboa. Aqui Pedro perde-se nas noites ocupadas, arrepende-se em todas as manhãs e repete o mesmo procedimento ao cair de cada tarde. Este ritual deixou-o amargo e o coração amachucado é abordado como uma nova camada de pele, uma armadura. “Sal” é o exemplo perfeito, conjugado por ritmos cálidos e arrojados, conta a história de um eterno apaixonado que se corrompeu pela má vida. Alguém lhe fez mal, mas ele já perdeu toda a vontade de corrigir os erros do passado e só quer mesmo curtir a noite: “Eu tenho sal onde eu já tive o coração/ Miúda não me queiras dar a mão”, canta. A canção transborda-se em lamúrias, tal como uma música do Drake normalmente faz –- se o Drake efectivamente soubesse rappar e escrevesse as próprias músicas.

As mulheres da vida de Pedro são o antídoto e o veneno para o mesmo problema, e ele fala delas todas: das “damas” dos vários países e idades, das que dançam com ele todas as noites e das que “desligam a chamada assim do nada”. Há uma parte que o faz ficar na penumbra deste modo de vida, mas ao mesmo tempo, há uma vontade para mudar. Em Jazigo, o momento mais cristalino e delicado de todo o álbum, é-nos apresentado um lado mais caritativo e pessoal. No entanto, parece que cada passo certo é dado com nervosismo e antecipação: “Eu trouxe um último jantar pa ti/ Eu não sabia que era tarde pa ti/ Já não são horas de cozinhar aqui/ Eu sei que eu já vim tarde demais pa ti”.

A melancólica tragédia do fado é um elemento-chave que deixa a sua marca em cada faixa. Em entrevista ao Rimas e Batidas, em Abril deste ano, o cantor precisamente associou a sua música ao conceito de “novos fados”, que se assemelham aos novos caminhos que tomou na sua vida: “Estou a tentar pegar em tudo aquilo com que cresci e que faz parte da minha cultura para fazer algo novo. Não é nostalgia, é bola para a frente. Precisamos de novos caminhos e é lindo começar a descobri-los pouco a pouco”.

A ligação entre o passado e o presente, entre o pessoal e o distante, é a ponte perfeita para captar a atenção de uma nova audiência. Tanto Sal é um trabalho puramente diarístico que tenta desprender-se dos cânones já replicados do hip pop português, apresentando uma produção tão caótica, engrandecida e igualmente frenética quanto a mente do cantor quando o fez. Cinco canções e parece que ainda falta alguma coisa para dizer, mas há espaço e tempo para tal. Em “Brilho”, tal incerteza é vista e explorada, mas sempre de um modo libertador: “Há coisas que eu não sei e não quero que tu me ensines/ Tou a fugir à lei só pa encontrar o caminho”. Nem tudo é certo e sabido no mundo de Pedro. Este trabalho começou com um coração partido, mas ganhou forma e textura para além de uma simples dor. Afinal, é importante falar sobre os males da vida. E está um final feliz na sua história. Apenas não é para já.


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