LP / CD / Digital

Lina_ Raül Refree

Lina_ Raül Refree

Glitterbeat Records / 2020

Texto de Rui Miguel Abreu

Publicado a: 17/01/2020

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No próximo dia 23 de Julho vai assinalar-se o centenário do nascimento de Amália Rodrigues, data redonda e simbólica que há-de, certamente, inspirar inúmeras homenagens. E será fácil prever que o peso da efeméride vai funcionar como um vórtice que arrastará tudo e todos para esse passado glorioso que a nossa maior Diva representa. Mas Amália foi sempre futuro, foi sempre uma força de renovação, uma artista total que se sentia incompleta na tradição e que nunca se esquivou à novidade, à invenção pura, ao risco. Em 2020, celebrar Amália olhando apenas para o passado será não a compreender em todas as suas múltiplas dimensões. Aplauda-se, portanto, Lina_ Raül Refree, álbum que hoje mesmo se desvenda ao mundo e que comprova que é de facto a olhar em frente que se presta a melhor das vénias.

Ainda sobre Amália: é claro que uma artista da sua dimensão já fez correr, literalmente, muitos litros de tinta e há abundante material escrito sobre a sua vida, sobre a sua relação com os poetas e a poesia, mas, e correndo o risco de incorrer em erro por desconhecimento, faltarão ainda análises com densidade ensaística à sua relação com o estúdio e, muito particularmente, com o microfone. Escutando as principais obras da sua vasta discografia, sobretudo as que gravou na década de 60 e à entrada dos anos 70 ao lado do técnico Hugo Ribeiro, percebe-se que Amália, que cantou na rua e na casa de fados, no plateau de cinema, na rádio e na televisão e em palcos de todos os tamanhos espalhados por esse mundo, encontrou no estúdio de Paço de Arcos da Valentim de Carvalho o seu perfeito laboratório, o espaço em que logrou desenhar um novo tipo de contexto para a sua voz, controlando, com força quase sobrenatural, as leis da física que no seu caso não pareciam suficientes para explicar como a vibração das suas cordas vocais afectava o ar que fazia tremer a membrana do Neumann U47 que depois carregava até à fita um impulso eléctrico de pleno assombro. Em discos como Fado Português (1965), à perfeição absoluta da escolha de reportório, com o papel de Alain Oulman a revelar-se decisivo, e das interpretações, da fadista e dos seus músicos, há que adicionar também o trabalho de excelência de Hugo Ribeiro que sabia transpor para a fita essa mágica relação que Amália tinha com o microfone, que se sente até nos seus silêncios entre versos, na forma como declama cada palavra, na alma, enfim, com que envolve cada respiração.

Nos vinte anos que decorreram após a morte da Diva, o fado encheu-se de “novas Amálias”, pretendentes a um trono que é compreensível que precise de ser ocupado e a verdade é que várias artistas conseguiram em diferentes momentos preencher esse espaço deixado vazio a 6 de Outubro de 1999. O fado viu-se reconhecido como património universal pela Unesco, os mais prestigiados palcos internacionais aplaudiram novas vozes que souberam, como Amália antes delas, ir ao encontro de novos poetas e esta nossa canção voltou a ser aplaudida com o mesmo fervor dos seus mais dourados períodos. Mas neste presente de novos assombros tecnológicos, com estúdios equipados com as mais cobiçadas ferramentas, impôs-se uma espécie de normalização ou padronização da voz e os tais silêncios que Amália preenchia de forma espectral com a sua respiração e presença parecem ter desaparecido, como se os modernos técnicos quase tudo fizessem para eliminarem da equação que traduz cada álbum o momento e o espaço em que a gravação acontece. Mas ouvindo Lina_ Raül Refree parece que essa dimensão de maravilhamento acústico volta a ser considerada como essencial na arquitectura de um trabalho que parte do fado e que se atira ao futuro.



Em entrevista ao Rimas e Batidas, o produtor e músico catalão Raül Refree explicou os cuidados que teve com a voz de Lina: “Tive sempre uma fraqueza pessoal pela voz. Creio que apesar de existirem muitos músicos e instrumentistas que se queixam da importância que se dá à voz na música, é uma realidade que não podes negar. A voz é algo que todos temos, quase toda a gente se atreve a cantar, mesmo que não cante bem, e eu acho que o timbre é o que mais nos emociona internamente. Isto foi uma coisa que sempre tive clara desde que me dedico à música e que é: se há voz, é importante tratá-la e encontrar a melhor maneira de emocionar o máximo possível, porque esse será o veículo para fazê-lo. Não sei explicar, e perguntam-me muitas vezes nas entrevistas, quais são os mecanismos com que trabalho a voz. Há alguns que obviamente posso contar, como a eleição do microfone ou o espaço onde gravo as vozes. Depois há outras que são mais difíceis de explicar, que surgem no momento em que estou sentado no estúdio e tenho a Lina a cantar o fado. É difícil explicar porque é uma reacção muito epidérmica que tenho. Não se explica”. Neste “não se explica”, o espanhol revela, afinal de contas, a procura de uma dimensão que ultrapassa as normas técnicas, que extravasa aquilo até que as máquinas são capazes de garantir. E isso sente-se logo nos primeiros segundos de “Medo” (tema que Amália gravou originalmente em 1966), quando Lina começa, sozinha, por cantar “quem dorme à noite comigo” antes de uma camada de tremores analógicos a envolver, como uma densa névoa, deixando imediatamente claro que este vai ser um disco diferente. E em que a voz surge ao centro, em toda a sua nobre e dramática dimensão, como a figura que no teatro se posiciona no palco, ladeada por espartano cenário, recortada apenas pela luz para nos declamar a sua verdade.

Lina chega aqui vinda do Clube de Fado, em Alfama, habituada a fazer-se ouvir num espaço de solenes rituais, sem microfones, mas sempre com o peso da história a sentir-se à volta, como bem sabe quem já por lá possa ter-se maravilhado nalgumas noites. E Raül Refree é produtor de créditos firmados, com um currículo vasto e variado que se estende de Lee Ranaldo (com quem se prepara, aliás, para editar o novíssimo Names of North End Women) a Rosalìa (assinou a produção de Los Ángeles, álbum de estreia da agora superestrela latina, lançado em 2017). Juntos, Raül e Lina assinam aqui um prodígio, um álbum em que o fado amaliano é ponto de partida para um estudo fundo sobre a emoção e o poder da voz, sem que se sinta qualquer tentação de mimetismo ou submissão à tradição. E, portanto, como tantas vezes acontece com grandes discos, este Lina_ Raül Refree, é também um paradoxo, porque ao abraçar um reportório com peso histórico não deixa de o entender como ponto de partida e não de chegada, como sugestão e não como dogma, como matéria para construção e não como monumento intocável.

Explica-nos a ficha técnica que a Lina coube, além da interpretação vocal, a escolha de reportório. E percebe-se que houve aqui cuidados especiais: há standards gigantes como o já referido “Medo” ou “Cuidei Que Tinha Morrido”, “Gaivota”, “Maldição”, ”Foi Deus” e “Barco Negro”, mas o alinhamento está longe de ser um mero “greatest hits” quando deixa de fora material como “Ai Mouraria”, “Vou Dar de Beber à Dor”, “Povo Que Lavas no Rio” “Estranha Forma de Vida”, “Nem Às Paredes Confesso” ou, para citar apenas mais um clássico, “Nome de Rua”, qualquer um deles pilar no cancioneiro amaliano. Ao invés, Lina arrisca em momentos menos celebrados de Amália, como acontece com “A Mulher Que Já Foi Tua”, “Quando Eu Era Pequenina”, “Os Meus Olhos São Dois Círios” ou “Ave Maria Fadista”, deixando claro que esta é uma visão pessoal da obra da Diva, não uma busca de um qualquer consenso mais amplo.

Já Refree é creditado como produtor, arranjador e músico, listando-se piano, Harmonium, Rhodes, Minimoog, Novation Peak, Roland Jupiter 8, Sequential Circuits Pro One, Hohner Clavinet e guitarra como os instrumentos de serviço nestes arranjos. E que arranjos. “Cuidei Que Tinha Morrido” começa com o Clavinet antes de admitir entrada a outros sons sintetizados que rodeiam a voz de Lina como os bailarinos que se posicionam em torno da solista num bailado de beleza intensa. E há espaço para silêncio instrumental que nos deixa o “cuidei que tinha morrido” exposto na garganta de Lina com uma profundidade que arrepia. A guitarra eléctrica em andamento stacatto chega para carregar “A Mulher Que Já foi Tua”, retrato de mágoas românticas que Lina pinta com leveza absoluta antes do mergulho no poço negro que é “Destino” (poema de Amélia Muge sobre fado de Alfredo Marceneiro), um dos mais radicais arranjos de Refree, que ergue em torno da voz envolta em reverb uma parede de drones graves que funcionam como contraste para as económicas notas de piano que surgem como intermitentes assomos de luz que só tornam a escuridão ainda mais negra. Beleza absoluta. E assim continua: “Gaivota” é um sussurro dorido narrado sobre piano; “Quando Eu Era Pequenina” é toda drama e nervo e pranto e até alguma raiva, com piano e seda electrónica; “Maldição” é fado puro na voz, derrapagem de volts em câmara lenta na base instrumental; e “Foi Deus”, nesse tom magoado, nesse tormento que carrega, parece elevar-nos a todos aos céus, com o Harmonium a ter algo do sopro divino que parece emanar dos órgãos de igreja… “Barco Negro” é travestido de tom gospel, em mais uma interpretação arrepiante de Lina acompanhada apenas ao piano; e “Os Meus Olhos São Dois Círios” parece cantada por um fantasma, como se a voz chegasse até nós vinda de uma dimensão paralela, sobrenatural, ideia sublinhada pelo acompanhamento espectral feito com a reverberação da guitarra eléctrica de Raül. Resta, antes da última surpresa, a “Avé Maria Fadista”, aqui solene oração quase a capella, não fossem as parcas notas de um piano distante a quebrar a solidão quase monástica da voz, aproximando-se crescentemente de Lina à medida que a sua voz se acerca do que só pode ser o céu. E que surpresa coloca o ponto final nesta viagem de beleza arrebatadora? Uma breve versão de “Voz Amália de Nós”, a tremenda carta de amor que um dia António Variações endereçou à sua maior referência, que Lina nos entrega de forma transparente, com a guitarra acústica de Refree a mostrar algo de flamenco nos seus subtis arremedos.

E é isso. Simplicidade, ausência de temor, emoção real, honestidade e entrega sem reservas a uma ideia. Não é preciso muito para fazer um grande disco. Neste caso bastou a paixão, a inteligência, o bom gosto e a coragem para fugir ao óbvio e experimentar coisas novas. Como Amália sabia.


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