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Fotografia: Patrice Almeida
Publicado a: 29/11/2024

Onde e quando chamar jazz é mais.

Zajguar e LANA GASPARØTTI no Novembro Jazz’24: criatividade em ca(u)sa própria

Fotografia: Patrice Almeida
Publicado a: 29/11/2024

Já pouco ou nada falta para entender que o jazz de hoje é uma revolução em curso, sendo o estilo musical onde a criatividade atinge elevada expressão. As referencias vindas de fora do território mais ou menos comensurável prosseguem — seja nas grandes urbes o suporte dessa argumentação, e entenda-se a cena londrina, ou de Chicago a Los Angeles, ou mesmo de locais mais próximos como Lisboa ou Porto como centros nevrálgicos. Acabado de nos embater está o novíssimo disco de YAKUZA, tomando como exemplo a ideia desses centros de produção. Segundo registo da banda lisboeta que os levou à conversa recém-publicada em entrevista para saborear neste mesmo espaço. Contudo, há cada vez mais outros lugares onde a criativa cena jazzistica tem expressão, e há casos cada vez mais flagrantes para apontar noutros sítios, a serem vistos e escutados. Agitam-se as águas nos campos do jazz e pelo meio há os lembretes contidos nas ideias das frases: “Jazz is boring” das estampagens irónicas que um dia a Clean Feed de Pedro Costa, em Lisboa, lançava em edição de manga-curta, de cores chamativas; ou na escolha, também provocativa, do nome “Jazz Is Dead” para a aventura editorial, desde Los Angeles, de Adrian Younge e Ali Shaheed Muhammad. Jazz! — em evolução, onde tudo mais entra que nos livre do aborrecimento ou mesmo do indesejado fim de vida, no que se designou um dia chamar à música feita de ritmos fortes onde com frequência se toca com improvisação, ou com ritmo no qual as notas fortes surgem habitualmente antes da batida que marca o tempo. Transpostas as definições dos dicionários, de Oxford a Cambridge, consensual é o começo na história, que aponta a raiz nos músicos afro-americanos no inicio do século passado, mas no futuro contar-se-á o testemunho deste presente. Deixemos mais pistas concretas para tal. 

Atente-se ao que o programa do Novembro Jazz tem trazido em anteriores edições, nomes que o presente vai apontar noutros cartazes do amanhã. O passado bem recente tem validado essa ousadia deste festival. Um dos primeiros palcos em Portugal do piano de Amaro Freitas foi o da Casa da Criatividade, corria o ano de 2022, meses após a passagem pelo Auditório de Espinho. Este palco que tem sido incentivo para jovens músicos locais. Caso evidente do saxofonista João Tavares, que no ano transacto se apresentou a mostrar a beleza da sua voz no alto, e este ano se volta a mostrar em trio no palco Trindajazz — abrigo feito para emergentes talentos no foyer da Casa. 

Com uma trajectória tornada exemplo estão Zajguar, como trio que leva dois anos de actividade e logo no início mereceu destaque na programação paralela do festival. Em 2022 estiveram nas jam sessions, para depois em 2023 tocarem no foyer da Casa, antes do concerto da noite por Margarida Campelo. Terceiro degrau da escada, em outros tantos anos de participação, com o trio a ser programado na presente edição para o primeiro dos dois concertos da noite de sábado passado, penúltimo dia (23) do Novembro Jazz de 2024. 

Quando começam a prestação por tocar um tema que apresentam como nada que ver com jazz está dado mote que justifica a sua existência, é esse o ponto que mais interessa — quando o jazz deste presente é mostrado, por sincera modéstia, por quem o pratica como demonstrado em “Joshua’s Augmentation”, num desmedido cruzamento de influencias tornadas possíveis. Na abertura revelavam esse tema dedicado a Josh Homme, multifacetado instrumentista dos Queens of The Stone Age e dos Eagles of Death Metal. Zajguar que desafiam logo no nome o estilo, dando-lhe uma volta à leitura na palavra e adicionando um lado indomável, assim lemos que haja um felino à baila nesta palavra que troca o sentido ao jazz. Zajguar formado por Amun Zalo nos teclados, Filipe Neves no baixo eléctrico e Alex Bastos na bateria acústica e electrónica. Têm como amostra na sua página de Bandcamp o seu primeiro EP — Half Empty, com quatro faixas disponíveis. Uma visão de um copo meio cheio, meio vazio, como Zalo apresentou o tema “Glass Half-Full” em palco, em muito discorrido ao piano acústico. Justamente essa instrumentação como uma novidade na música da formação sanjoanina, que prontamente passou a quarteto em palco, noutra das surpresas preparadas para a noite de primeira consagração junto do público familiar — Zajguar tocam em casa, no seu habitat, onde a sintonia plena de intervenções em formato aplausos foi frequente. 

Esse aparecimento do quarto elemento deu-se com o saxofone tenor de Sam Silva e trouxe invariavelmente uma faceta mais dócil e domada, por assim escrever, contraposta ao lado mais feroz e imprevisível. Contrapondo ao que designaram serem praticantes de um jazz contemporâneo, isso na conversa de antevisão com Rui Miguel Abreu e Gisela Borges. Houve virtuosismos a solo do baixo de Neves e da bateria desprendida soltou-se Alex, tal como pedido por Zalo, como assim assumido em público. Mas houve um convidado permanente que arrastou a música do trio para um quarteto num mar de possibilidades sem tantas ondas para apanhar. Agora em palco que lhes possibilitava terem mais para além dos temas que lhe conhecíamos, como “Toroidal Emotions” e “Entering”, vindos do mencionado EP e tocados em concerto que se fez em todo mais de novidades. Mas perguntamos onde ficou o afrontamento que exibiram em “Communication” ou o fio da navalha revelado com “Movement”, temas inscritos na memória recente do seu trabalho de estreia e que ficaram fora do alinhamento. Estamos na perspectiva de voltar a um concerto de Zajguar onde haja um Rhodes por perto na vez de um piano de cauda primorosamente cristalino. Casos há em que a rugosidade pode bem ser esse brilho cintilante, como nos mostra o desfecho de Half Empty e nos voltaram a recordar com “Atraction & Repulsion” tema com que findaram uma das noites onde, ainda que na sua recente vida, a banda encontrou um primeiro amor supremo, entre palco e plateia. Haverá muitos mais no futuro próximo.



Agitar bem durante o (abrir) tocar, podem bem ser as instruções lidas pela mente de LANA GASPARØTTI e companhia, que tomaram o palco na derradeira prestação da penúltima noite do Novembro Jazz’24. Lana que trouxe a palco os seus multiversos teclados e um baixo eléctrico estelar nas mãos de Pedro Barroso, que sabemos dos Plasticine, e Sebastião Bergmann, que ouvimos no fulgurante DOBRA, dos GUME, também aí em imbatível bateria. Um trio inigualável na destreza e dimensão sonora, capaz de transpor e elevar em palco o que se revela como marca distintiva nos campos da criação mais inventiva com Dimensions, álbum de estreia desta compositora e teclista. Dimensões que o nome denota tão apropriadas ao que o disco já havia trazido. Em palco vão espelhando tons, que a cenografia desenhada por Israel Pimenta, partindo de materiais em desperdícios da Cartonagem Trindade, aguardava na melhor das combinações de som e imagem. Dimensions que depois da edição digital em 2024 terá, a breve trecho, uma edição em formato físico pela Now Jazz Agora, onde Mazarin abriram o recente catálogo com um longa-duração produzido por Rafael Correia (Sickonce), que também assina a produção do Dimensions de Lana. GASPARØTTI vinda de Lagos, um desses outros territórios onde partem pulsações do novo jazz, num mar de possibilidades. É o final da viagem para quem se aventure nas demoradas distâncias sobre carris, mas também é o inicio da rota para quem queira seguir partindo daí, e GASPARØTTI é disso exemplo. A sua criatividade autoral inscreve-a no campo das mentes luminosas, de recursos inesperados, cruzando sem regras, saltando os dogmas das linguagens, indo directa à emoção e intensidade. Jazz é o que ganha esta música, se assumida for a zona fronteira como dinâmica e de múltipla confluência. A nota forte antes da batida? Presente. Música plena de ritmos fortes? Presente. Logo o que lhe chamar? Mas nada se escutou antes assim. Isso faz disto o lugar do novo, e assim sendo novo jazz, ponto. Mas não se parece com jazz, isso é porque o jazz até aqui desconhecia este lugar. Porque ele também não existia, ouvimos a criatividade. 

O concerto parece ter sido fugaz, sorvido num tempo demasiado rápido. Lana admite, entre um par de músicas, a intensidade do vivido. Sete temas, um alinhamento feito de um disco. Três músicos em palco comprometidos com a música, no rigor do propósito e com a diversão que a isso conduz. Lana entusiasma-se amiúde na sua música e resulta em pleno, soa esplendorosa, brilha por entre os poros do espaço. Música feita de reflexos, difração, vibrações dimensionais, propagação da matéria do som como luz. Dá que pensar: quem viaja mais rápido afinal? Poem-se em perspectiva os fundamentos elementares da física. Assumem-se as construções como recurso a desvios feitos padrão em “Missing Files”, desde um mirabolante encadeamento partindo de sonoridades de um jogo de flippers. O sentido com que é disparado um sample escutando-se “System: error!”, a meio do tema “Something in my way”, traz toda uma conotação ao efeito da música. Um mundo interior revelado, feito de arquivos sonoros pessoais e que afirmam uma nova dimensão. Entre “Feel” e “Dimensions” há uma caleidoscópica visão dos ritmos nos estilos da música, que pelo andamento da cadencia da bateria se passa de um acid-jazz ao hip hop e até ao drum’n’bass em danças contínuas, primorosamente orquestradas pela tripla GASPARØTTI-Bergmann-Barroso. Texturas sonhadoras e jograis nos teclados e sintetizadores, delírios a esvoaçar nas linha de baixo, e comprometimento inabalável nos ritmos da bateria. Esse “Mar” com que dão por finda a prestação em palco devolveu um amplo horizonte, campo aberto mar adentro, feito de liberdade sonhadora. 

Haveria uma causa quando Rui Miguel Abreu terminava o seu alinhamento de discos de 7″ postos a tocar no final da tarde, na Casa da Criatividade, com o atiçador tema de Gil Scott-Heron de 1970, guiado pelo baixo pulsante de Ron Carter — “The Revolution Will Not Be Televised”. Na música jazz há uma revolução em curso, onde e quando o estilo acarreia, em novo tema e formação criativa, uma centelha mais. Com efeito, a efectiva mudança não chegará através das corporações instaladas, antes através da mudança na mentalidade e atitude na vivência de cada um(a) — como nos termina relembrando Scott-Heron cada vez que o tema roda.


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