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Fotografia: Patrice Almeida / Novembro Jazz
Publicado a: 14/11/2023

Os diferentes mundos que o jazz tem dentro continuam a ser descodificados no festival de São João da Madeira.

Margarida Campelo, Azar Azar e Quang Ny Lys no Novembro Jazz’23: três visões musicais distintas, três triunfos artísticos

Fotografia: Patrice Almeida / Novembro Jazz
Publicado a: 14/11/2023

A segunda etapa do Novembro Jazz, festival actualmente em curso na Casa da Criatividade, em São João da Madeira, foi dupla em termos de datas, mas tripla no que concerne a apresentações: Margarida Campelo subiu ao palco na passada sexta-feira, dia 10, e Azar Azar e Quang Ny Lys foram as contrastantes propostas do cartaz de sábado, dia 11.

Entende-se já que este festival não começa e termina no palco da belíssima Casa da Criatividade: antes mesmo da abertura do programa oficial, no passado dia 4, com actuação de Raquel Martins, houve a meio de Outubro no Centro Comercial são-joanense 8ª Avenida a inauguração da exposição Os Rostos do Novembro Jazz, com trabalhos que resultaram de uma residência de Carlos Quitério na fábrica de lápis Viarco, local onde o artista plástico pôde experimentar com diferentes técnicas, materiais e ferramentas que existem na fábrica que regularmente desafia artistas a por ali passarem temporadas. Essa exposição transitou, entretanto, para a Casa da Criatividade, animando o foyer onde muito mais tem acontecido: para lá da apresentação em modo showcase de projectos não contemplados no programa oficial — Zajguar na noite de sexta, promissor trio que se socorre de teclados, baixo e bateria para praticar um jazz escorreito e elegante assente em grooves funk; e ainda, no sábado, uma dupla de alunos de uma escola local, o saxofonista João Tavares e o teclista Tomás Toscano —, houve ainda uma feira em que estiveram presentes o artista plástico Carlos Quitério — que aí teve oportunidade de mostrar outros retratos no seu vincado estilo pessoal de grandes nomes do jazz, de John Coltrane a Nina Simone — e onde era possível ver e adquirir discos de várias lojas e etiquetas, da lisboeta Jazz Messengers às portistas Circus/Jazzego e Monster Jinx, passando pela conimbricense Lucky Lux. Numa cidade onde não existe uma única loja de discos, esta oferta por parte do Novembro Jazz não é de somenos (e a feira repete já no próximo dia 18).

Finalmente, e ainda mencionando o que acontece para lá dos espectáculos, o Novembro Jazz tem apresentado curtas e descomprometidas conversas com todos os artistas, sempre guiadas por Rui Miguel Abreu, o director do Rimas e Batidas que é igualmente co-programador do evento juntamente com Gisela Borges, a directora artística da Casa da Criatividade. Oportunidade de ouro para o público contactar de forma mais próxima com os artistas e para os escutar a falarem da sua música. Pena que o público não tenha, para já, acorrido em maior número para esta quase secreta parte do programa (as conversas acontecem sempre às 19 horas e, em boa verdade, a chuva intensa não tem ajudado).

Ponto alto destes últimos dois dias de programa variado no Novembro Jazz foram, pois claro, as actuações de Margarida Campelo, Azar Azar e Quang Ny Lys.

Margarida Campelo lançou este ano o fantástico Supermarket Joy, trabalho onde revela uma visão diferente da pop, bebendo em igual medida no r&b e no jazz de fusão de uma era habitualmente descurada por parte de quem mais enaltece esses dois géneros musicais afro-americanos: os anos 80. Mas com essa matéria, Margarida cria canções com forte componente lúdica, de açucaradas fantasias movidas a uma variada paleta cromática que arranca aos seus imaginativos sintetizadores. Em palco, Margarida Campelo faz-se acompanhar por Raquel Pimpão, aka Femme Falafel, num Nord Lead de onde extrai pianos eléctricos e mais synths, António Quintino no baixo e João Correia na bateria. São todos músicos sólidos e experientes, facto que ajuda a que a redução dos arranjos densos que o disco ostenta para um mais económico som de palco resulte e mantenha intactas as identidades das canções.

O concerto viaja pelo alinhamento do álbum sem se desviar, apresentando as suas canções mais orelhudas — como os singles “Faz Faísca e Chavascal” ou “Mapa Astral” ou “Aura de Panda” — mas também o material menos óbvio como o instrumental “Maggie”, “auto-retrato” de Margarida desprovido de palavras, ou as baladas “Love Will Never Be Enough”, com letra de Francisca “Minta” Cortesão, e “Love Ballad”, original dos L.T.D.. E em todos os momentos é possível ver Margarida brilhar: literalmente, porque o vestido de lantejoulas ajuda-a a vestir a pele de uma diva de recorte soul, e figurativamente, porque canta sem mácula enquanto vai tocando ao mesmo tempo e, pontualmente, solando com uma ferocidade que não se adivinharia imediatamente escutando apenas o disco. Margarida é uma artista de corpo inteiro, sabedora, capaz de improvisar ou de seguir o guião consoante o que a actuação pede. Os efusivos aplausos no final e a fila considerável para a banca de CDs que, com bastante humor, a artista anunciou num par de interacções com o público durante o concerto, dizem-nos que a sua missão foi bem-sucedida.



A Sérgio Alves, aka Azar Azar, coube a primeira apresentação do passado sábado: ladeado pelo percussionista Manu Idhra, pelo saxofonista tenor e flautista João Samuel, pelo baixista Pedro Ferreira e pelo baterista Ricardo Danin, o líder apresentou em palco o álbum Cosmic Drops que este ano lançou na editora Jazzego. Com solos elaborados, Sérgio Alves deixou claro que esta música assente numa espessa camada rítmica de recorte funk bastante dançável tem, ainda assim, espaço para invenção livre, característica que permite aos diferentes solistas — e João Samuel também correspondeu — explorarem zonas não necessariamente cartografadas em disco.

Este ultra-competente quinteto estudou, obviamente, a matéria que gente como Donald Byrd ou Herbie Hancock espalhou em férteis discografias nos anos 70 e arranque dos anos 80 do século passado, mas declina toda essa aprendizagem numa música que aceita as influências que outros presentes — do hip hop ou das diferentes electrónicas — contemplam. É música de agora, tem jazz dentro, mas também algo mais. E tem futuro, a julgar pela presença na plateia de um público mais jovem que, já depois do concerto, fez questão de se passear no foyer com exemplares já autografados de Cosmic Drops debaixo dos braços.

Durante a tarde, na conversa com os artistas, fez-se referência ao contraste que é possível ler nas diferenciadas propostas musicais avançadas por Azar Azar e pelo trio de João Mortágua, Rita Maria e Mané Fernandes, o projecto Quang Ny Lys. Na verdade, há pontos de contacto, e Mortágua e Sérgio Alves até referiram que tocam juntos num novo projecto da Jazzego acabado de lançar, Nelembe. Mas onde Azar Azar busca o pulso constante do goove, olhando para o cosmos, o trio do guitarrista Mané Fernandes, da vocalista Rita Maria e do saxofonista João Mortágua procura a abstracção não idiomática, apresentando uma música livre, mas ultra-vívida, como se nos quisessem contar uma história sem usarem palavras.

Com recurso a processamento electrónico, os três músicos procuram expandir as possibilidades cromáticas dos respectivos instrumentos e vão pacientemente construindo uma densa teia harmónica em que nos vamos enredando. Esta é música de preciosos detalhes, que exige atenção e um outro tipo de engajamento, talvez menos físico e mais emocional. Mas, uma vez mais, o público correspondeu, deixando-se levar na estranha e exótica viagem que esta música propõe. Sucesso, portanto.

Esta semana, o Novembro Jazz prossegue com mais uma dupla jornada com três apresentações: o trio do pianista João Pedro Coelho sobe ao palco na próxima sexta-feira, dia 17, e o quinteto Mazarin divide o palco com a cantora Amaura no dia seguinte, sábado 18. Para continuar a descodificar os mundos que o jazz tem dentro durante este mês de Novembro.


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