Jazz que também pode ser rock não é novidade. Jazz que se aproxima, a diferentes velocidades, de África, que olha para trás e para a frente ao mesmo tempo, que pisca o olho ao Brasil, que gosta de ser escutado por gente de pé em clubes onde se dança também não é novidade. Jazz que vive do momento em que é registado, mas que depois se transforma dentro da mesa de mistura num processo escultórico sonoro que pode ser demorado também já não é novidade. Mas, se calhar, tudo isso ao mesmo tempo é novidade. Os YAKUZA fazem tudo isso porque não querem abdicar de nenhuma das possibilidades que a liberdade criativa lhes oferece. E neste segundo álbum, que para descomplicar tem por título 2, ousam ir a todo o lado de uma só vez. O resultado de tal ousadia? Um disco de elevada força criativa, que desbrava novas fronteiras, que se posiciona naquele cruzamento onde o futuro se atravessa no caminho do presente: Pedro Ferreira, Afonso Serro e AFTA3000 continuam a fazer aquilo que querem do tempo rítmico, do groove e do espaço cósmico com baterias e baixos, sintetizadores e algo mais. Ora ouçam — e vejam, se puderem, dia 30 de Novembro na Galeria Zé dos Bois, em Lisboa.
Comecem por me explicar o que é que cada um fez e tocou no disco.
[Afonso Serro] Todos compusemos, o que foi inédito para nós. A produção foi do Pedro Ferreira — nós chamamos-lhe Ferreiras. Eu e o AFTA também demos uma mãozinha na produção, e até o baterista que gravou também ajudou. O AFTA é o baixista, eu sou o teclista. Por acaso, nos próximos concertos, o AFTA também vai ser teclista. Na verdade, agora somos todos teclistas [risos]. O Pedro Ferreira também é teclista. É preciso reforçar que ele não é só guitarrista, é também teclista e tem uma função muito específica — com aqueles sintetizadores de electrónica. E temos dois bateristas. O que tocou no disco foi o Pedro Nobre. O Pedro Nobre é sempre a nossa primeira escolha, mas ele quase nunca pode, porque está no estrangeiro. Os outros bateristas de quem gostamos também estão todos no estrangeiro, então é sempre uma correria. Se pudéssemos, tínhamos um baterista fixo, mas enfim. É o que é.
E ainda há os sopros nos arranjos.
[A.S.] Há sim. Tens toda a razão. Nós decidimos fazer uma música colaborativa, com convidados. É uma música que acabámos por dividir em duas — uma ficou o intro, a outra ficou um tema completo, por assim dizer, um jazz mais tradicional. Tem trompete e saxofone a fazer aquela sonoridade tipo quinteto antigo, parece que ouço ali Oliver Nelson, nessa onda. No saxofone ficámos com o João Mortágua, que é um saxofonista incrível, e no trompete ficou o Diogo Duque, um trompetista também altamente competente. Eles os dois fizeram uma dupla incrível. Depois temos um outro saxofonista noutros temas, que vai tocando em bocadinhos de temas — toca na “KPM” e na “Manilha”. Ele é um rapaz novo, um português que também está a estudar na Holanda e é colega do Nobre. É muito mais novo que nós e toca incrivelmente bem. Tem uma linguagem super-moderna, técnica de topo… Chama-se Miguel Valente.
Vocês gravaram onde?
[A.S.] Gravámos no sítio do costume, no HAUS, em Santa Apolónia.
E os arranjos são do próprio colectivo?
[A.S.] São nossos. Hoje em dia, a produção do disco já implica arranjos, é um bocado ela por ela. Portanto, os arranjos são mais meus e do Ferreiras.
[AFTA3000] Este disco tem uma particularidade engraçada. Todas as músicas têm bastantes arranjos, mas existe um número considerável de músicas no disco que vêm de momentos que nos surgiram na altura em que estávamos a gravar. Há outras que demoraram anos — sei lá, dois anos —, maturaram durante muito tempo enquanto andámos a tocar ao vivo. E nós também conseguimos criar uma história na sequência das músicas todas, acho que isso foi fixe, independentemente de terem tido origens muito diferentes.
O disco foi gravado num período delimitado de tempo ou foi tendo várias sessões ao longo de vários meses?
[A.S.] As captações acústicas foram um processo de 4 ou 5 dias, ou lá o que foi. O processo de produção em si… Eu diria até que demorou um ano, ou mais. Esporadicamente, fomos tendo pequenas sessões de produção, aí já nos nossos estúdios caseiros, não no HAUS. E ficámos satisfeitos. Eu estou radiante com o resultado. Modéstia à parte, acho que este é o melhor disco que já produzimos.
Eu estava a ouvir a vossa música e lembrei-me de que me interessa muito a música não dogmática, no sentido em que cada tema tem muitas músicas — muitas ideias — dentro, que não se deixam prender por noções de encaixe num determinado estilo, num determinado momento ou numa determinada escola. E achei curioso que, no vosso press release, seja usada a expressão “jazz sem fronteiras”, porque eu acho que descreve bem isto que eu estou a tentar dizer. A pergunta que vos faço é: que músicas são estas que a vossa música tem dentro? Façam-me um mapa que me oriente por este labirinto.
[A.S.] A forma da nossa música é muito tipo mosaico. Parece Stravinsky, duas músicas numa. “Pague um, leve três”, estás a ver? Não sei… Isso é uma coisa que eu e o AFTA fazemos quando estruturamos as músicas.
[AFTA3000] É aquela máxima de ser um cocktail de referências de uma data de sítios, todos muito diferentes. Todos nós somos muito diferentes e ouvimos música muito diferente. Quando nos juntamos para trabalhar, até somos relativamente democráticos nas ideias que cada um traz, para depois incluirmos as ideias de todos enquanto nos estiver a soar bem. Existem, claramente, músicas que são fruto de um certo groove que surgiu enquanto estávamos a ensaiar, e existem outras que estavam na nossa cabeça há muito tempo e que nós partilhámos com os outros. O Afonso até faz mais isso do que eu ou o Pedro. Ele traz composições já com princípio, meio e fim, coisas que ele tem na cabeça. Por exemplo, a música com o Joao Mortágua e com o Diogo Duque, era uma música que ele já tinha com princípio, meio e fim.
Qual o título, relembrem-me?
[AFTA3000] “Aida”. Aida é o nome de um cruzeiro que costuma estar abarcado ali ao pé de Santa Apolónia. Da porta do estúdio HAUS era bem visível e essas letras estavam a aparecer muito à nossa frente.
Quando vos perguntei sobre que músicas é que a vossa música tem dentro, estava à espera que me nomeassem géneros e influências — não de bandas, mas de estilos. Uma das vossas faixas chama-se, por exemplo, “KPM”, que é uma das minhas editoras de library music favoritas. Também fazem referências a um género de samba, que é o “Partido Alto”, mas não é propriamente um samba. Há um título em crioulo que nos pode remeter para Cabo Verde. Têm uma série de referências no alinhamento que desvendam um bocadinho do vosso universo. Querem ir um pouco mais fundo e explicar então quais as músicas que fazem esta vossa tapeçaria?
[A.S.] Eu acho que não é só uma questão musical. Falaste no título em crioulo, mas nós não pensámos necessariamente em funaná, numa morna ou mesmo em Cabo Verde. Essa música parte muito de experiências pessoais — neste caso, colectivas, de nós enquanto banda — ou outras coisas que são extra-musicais. A “KPM” obviamente faz referência a um estilo de música muito antigo, instrumental, com que nos identificamos muito. Mas, por exemplo, para mim, e sei que para o Ferreiras também, sempre foi uma espécie de referência máxima desde o início das nossas carreiras. A “Partido Alto” tem várias referências e é uma faixa ainda do tempo do Alex, curiosamente. O Alex já não está tão activo na banda, mas ainda está no grupo de WhatsApp, vai participando e às vezes até vai compondo bocadinhos connosco. O Alex é o nosso antigo baterista, que é um membro fundador de YAKUZA. A “Partido Alto” é uma ideia antiga. E porquê? Se calhar, naquele Verão de, sei lá, 2022 ou o que for, nós estávamos constantemente a ouvir samba.
[AFTA3000] E essa música ao vivo tem um toque diferente. Nós acabámos por lhe dar esse nome precisamente pela forma como a tocamos ao vivo. É uma música que se foi compondo. É um bom exemplo daquilo que eu estava a falar há bocado, das músicas que se foram compondo ao longo do tempo. No disco tentámos fazer uma versão que fosse adequada para se escutar em disco. Ao vivo, a “Partido Alto” é reconhecível, mas é diferente.
[A.S.] Deixa-me dar uma outra referência musical que eu acho importante — se calhar a mais importante de todo o disco. Nós somos uma banda de um novo jazz, de jazz fusão, de música para dançar, de samba, de música tipo KPM, seja lá o que isso significar. Mas, sobretudo, eu acho que também somos uma banda de um outro estilo que é mais rock. E digo isto porquê? Porque nós vamos tocar em todos os concertos de rock. Nós podemos tocar para abrir, sei lá, os 800 Gondomar ou os Sunflowers. Esse é o nosso percurso. Nós não vamos tocar ao festival de jazz da Gulbenkian ou ao… Eu já nem sei o que se anda a passar mais por aí. Já estamos tão fora desse circuito. O nosso circuito tem sido o das bandas de rock. Nós somos isso. Nós também nos tornámos músicos de rock. E isso está muito presente na produção.
É curioso estares a dizer isso, porque a pergunta que eu vos ia colocar a seguir está relacionada. Vocês são músicos, tal como há outras pessoas que são desportistas. Mas depois os desportistas encaixam-se numa modalidade específica — uns são corredores, outros saltam à vara, outros lançam o peso ou nadam… Eu ia perguntar-vos: em que campeonato é que vocês se inserem? Porque o vosso nome tanto aparece no cartaz do Iminente, que é um festival muito voltado para ondas emergentes, como também tocam na ZDB, que é tipo o templo da música alternativa, seja lá o que isso for. Dá-me a ideia de que vocês, mais do que se inserirem num campeonato, jogam em vários campeonatos ao mesmo tempo.
[A.S.] Sem dúvida. Tens toda a razão. E essa cena que digo do rock é um campeonato em que nós estamos, como também estamos no da música experimental/artística — agora, mais recentemente, porque nem sempre estivemos. Há várias músicas no disco que espelham isso.
As pessoas, às vezes, pensam em questões muito formais para apontar as diferenças entre o rock e o jazz. Uma das questões que eu vejo que mais os distingue é o espírito que une ou separa as pessoas. Ou seja: há bocado mencionavam o João Mortágua, que é uma pessoa que tem uns 10 projectos dele, toca em mais 50 e, se for preciso, se amanhã receber um telefonema para uma outra coisa completamente inusitada, ele também vai lá e também faz o que achar que deve fazer. Ele toca free, toca uma cena de câmara quase clássica, toca groove — o que for preciso. Eu vejo o jazz como algo com uma ética muito desprendida, não há tanto aquela ideia de uma banda que faz um percurso. É mais: “Hoje estamos aqui, somos estas 3/5/10 pessoas, e vamos fazer isto. Mas amanhã logo se vê.” A minha pergunta é: vocês sentem-se como uma banda coesa? Há esse espírito de banda?
[AFTA3000] O core da banda é um trio esquisito. Sou eu, o Afonso e o Pedro Ferreira, neste momento. Nós não temos um baterista residente. A dinâmica da banda já foi diferente. Mas esse espírito de banda existe. Nós divertimo-nos muito quando vamos tocar e tudo o que isso envolve — a viagem, o irmos aos sítios, passar tempo juntos. Vamos precisando de encontrar formas novas de passar as ideias uns para os outros, no sentido em que, antigamente, com um baterista ao lado, era mais fácil de pôr as coisas a andar. Esse espírito existe, mas do ponto-de-vista da produção, estamos a redescobrir-nos recorrentemente.
Eu trabalhei muito de perto com uma banda, os Cool Hipnoise, que só na fase final é que tiveram um baterista regular. Eles também tinham um trio core, mas depois os bateristas iam rodando. Ou seja: não é necessário vocês terem um baterista regular para poderem sentir esse espírito de banda.
[AFTA3000] Sim. No fundo, o que eu queria dizer é que ao ter um baterista também no core da banda é mais fácil de transportar aqueles momentos em que estamos a tocar ao vivo para a sala de ensaio. Podemos ter as coisas compostas, vê-las nascer e acontecer, ao invés de estarmos a registar ideias para depois as passarmos a alguém para pôr a coisa a andar. Era mais nesse sentido.
Sentem-se uma banda já bem rodada ou, tendo em conta o que foi o vosso primeiro álbum, sentem que poderiam ter tocado mais?
[A.S.] Eu acho que rodámos bastante. Rodámos, pelo menos, o suficiente para ver outras bandas bem mais recentes a emergir que na altura não existiam. Já me sinto uma espécie de veterano após quatro anos [risos].
[AFTA3000] Sim. Nós começámos a tocar ao vivo mesmo depois dos primeiros concertos após a pandemia terem começado a acontecer. Desde então não temos parado.
Um dos primeiros que vocês fizeram há-de ter sido aquele no Lux da série Noites Azuis, não é?
[AFTA3000] Isso. Foi por essa altura.
Sentiram alguma coisa mudar na vossa música, nomeadamente no plano rítmico, com essa rodagem de palco?
[AFTA3000] Claro que sim. E isso é fixe. Todos os concertos são diferentes. Pode ser meio paradoxal, mas as músicas de YAKUZA vivem muito da bateria e do que é que o baterista decide fazer. O baterista é o maestro quando tocamos ao vivo — decide a dinâmica, decide se vamos mudar de parte, se vamos manter — tudo. E no entanto é uma pessoa que não costuma estar connosco nem costuma fazer parte do processo de composição. Isso muda sempre. Não são sempre bateristas diferentes. Temos três ou quatro bateristas com quem costumamos tocar e vamos fazendo um interregno de tempo entre cada um deles. Tem sido fixe.
Eu vejo muitos músicos brasileiros — como o Thiago França, por exemplo — a referirem-se àquilo que fazem não como jazz brasileiro, mas como música instrumental brasileira. E lembro-me que, antigamente, nenhuma editora em Portugal estava interessada em lançar um álbum de uma banda que não tivesse um vocalista. Vocês sentem que, nestes últimos anos, passou a haver muito mais espaço para bandas que preferem essa via instrumental e que estas conseguem ter muito mais impacto junto do público?
[A.S.] Algum tipo de impacto, sim. Mas não tanto impacto como uma banda com alguém a cantar, com letras. A música instrumental ainda está num segundo plano, na minha opinião. Mas há uma nota positiva: esse espaço tem, de facto, vindo a aumentar e tem existido maior reconhecimento, não só a nível nacional, mas também internacional — aliás, especialmente internacional. Mas nunca considerámos que isso fosse um problema. Nunca equacionámos sequer ter alguém a cantar. Ou se calhar já, mas por outros motivos quaisquer, não para termos mais reconhecimento ou mais facilitismos comerciais ou o que seja. Esse ponto nunca foi uma preocupação para nós. Mas, pessoalmente, acho que é um bocado ingrato fazer música instrumental. O trabalho é o mesmo e o reconhecimento é muito menor do que se tivéssemos alguém a cantar [risos].
Por outro lado, coloca-vos num outro plano, teoricamente, muito maior. Se a língua pode funcionar — já funcionou mais, hoje funciona menos — como um obstáculo para a música que se faz em Portugal se impor, sei lá, no Japão ou outro sítio qualquer, a música instrumental acaba por não ter à partida esse handicap, não é?
[A.S.] Claro. A partir do momento em que não tens uma letra, a música instrumental torna-se abstracta.
Qual foi o país mais estranho para onde venderam discos a partir do Bandcamp? Têm noção disso?
[A.S.] Para fora da Europa acho que nunca vendemos. E não fomos nós que processámos as vendas dos discos, mas sim a editora. É uma editora recente e fomos a primeira edição deles. E é uma editora de música electrónica, que ainda assim quis estrear o catálogo connosco [risos]. Nós vendemos vários discos para outros países da Europa. Nenhum deles era um país assim, estranho, acho eu.
E vai ser o mesmo selo a lançar este segundo álbum?
[A.S.] Vai.
Tocaram recentemente no Maus Hábitos e dia 30 têm data na ZDB. Além desse trio core, quem mais vos acompanha agora?
[AFTA3000] Nestes próximos concertos vai ser o Luís Possolo na bateria, um rapaz que já tocou uma vez connosco, em Maio. Vai ser bom. Ele toca com força [risos].
Vão ter sopros nesses concertos?
[AFTA3000] Não. Vai ser quarteto.
[A.S.] No entanto é com uma instrumentação um bocadinho diferente. Temos mais teclados desta vez, para adaptarmos às músicas que nunca tocámos ao vivo. Neste preciso momento está a ser um desafio, porque a produção daquilo não é muito fácil de se reproduzir ao vivo, mas nós estamos a trabalhar para isso. E está a ser um trabalho novo para nós, porque nós gostamos é de improvisar. Desta vez estamos a fazer algo mais estruturado.
Nós continuamos fascinados com aquilo que nos tem vindo a chegar de fora. Londres continua a bombar, Melbourne tem estado a bombar, há uma série de coisas a acontecer entre Chicago e Los Angeles… Mas, de repente, diria talvez nos últimos 5 anos, a palavra jazz deixou de ser uma palavra feia e passou a ser outra vez uma palavra cool. Voltou a tornar-se num género que as pessoas deixaram de ter vergonha de dizer que ouvem em voz alta. Apesar do Afonso ter tido o cuidado de mencionar também uma ligação a um certo espírito rock, o que é que sentem que pode ou não estar a mudar no jazz em Portugal?
[AFTA3000] O que eu sinto é um fascínio por esta geração mais nova que está agora a começar a aparecer a tocar, malta nos seus 20s ou 30s que vem com uma abertura gigantesca para o que for. Uma pessoa que toca no jazz facilmente se dispõe a ir para uma banda de rock substituir alguém. Sinto essa versatilidade nos músicos novos, comparando com os músicos de jazz portugueses mais velhos, que eram mais conservadores. Hoje em dia parece que funciona como uma espécie de trabalho de conservação, de estima de uma determinada linguagem que não merecia toques de outros géneros e ideias. Eu acho que isso se está a dissipar e não é só em Portugal. Está a acontecer em todo o lado. As influências agora vêm muito rapidamente de qualquer lado.
Uma das coisas que eu acho extraordinárias é que já não precisamos de estar sentados para ouvir este novo jazz. Ele faz sentido num ambiente de clube, as pessoas podem estar de pé e a música não deixa de ser o que é por causa disso, não é?
[AFTA3000] Certo. E não é só isso. Este novo jazz também invade outras coisas. Isso que estavas a dizer, das pessoas já não terem medo de dizer que ouvem jazz, é porque, se calhar, até ouvem com temperos de outras coisas de que gostam.
Um amigo dizia-me há dias que acha estranho que a “polícia” do jazz desmereça alguns tipos de jazz contemporâneo por terem muitas misturas, quando o jazz foi, desde a sua génese, uma música de misturas. Tiveste o percussionista cubano Chano Pozo a tocar com o Charlie Parker no final dos anos 40. O jazz sempre dialogou com Cuba, com África, com o Brasil — através do Stan Getz e toda aquela gente —, com o hip hop — através do Herbie Hancock —, com o funk, com a música indiana… Enfim. Se gente como o Charlie Parker ou o Herbie Hancock não se importou, não se fechou e sempre se abriu a esses diálogos, acho um bocado estranho que existam pessoas no presente a criar essas fronteiras. E voltamos ao início da nossa conversa, em que falámos sobre vocês verem o vosso jazz como jazz sem fronteiras. O jazz faz-se desses diálogos, portanto não deixa de ser uma conversa só porque envolve mais elementos, não é?
[A.S.] Claro. Mas eu sou solidário com quem — pessoas como tu, que escrevem sobre o que ouvem — se tem de se submeter a nomear géneros e todas as estéticas na música. A estética é uma coisa tramada de se discutir. É entrarmos num campo mais de filosofia. Eu não quero ter de dizer o que é que é jazz, honestamente. Eu sou músico, mas não sou musicólogo para estar a dizer o que é o jazz. E também é importante perceber que nós não tentamos fazer jazz activamente. Eu não penso: “Hoje vou-me sentar a vou fazer jazz.” Nunca aconteceu, na verdade. Nós é que decidimos, ou achámos, que a música que já temos feita é jazz. Nós somos músicos de jazz porque não somos disto nem daquilo. Mas sou solidário com quem tem de lidar com essas questões de descrever o que é o género, o estilo… É tramado. Não há uma resposta concreta.
Claro que não. O que eu vejo é que há uma espécie de mentalidade de clube, em que parece que tens de ter um cartão e pagar as quotas para poder entrar dentro desse clube. E agora há simplesmente pessoas que, como tu, dizem: “Não. Isto é um estado de espírito. Eu sinto que estou próximo deste universo, portanto não tenho problema algum em declarar a minha proximidade para com esse universo. Não tenho de ter um cartão e quotas em dia para poder dizer que posso entrar neste clube.”
[AFTA3000] Eu acho que isso também pode ter a ver com a educação. Porque há um livro, que é o Real Book, com todos os standards de jazz para tu estudares, e se tu não sabes tocar alguma daquelas músicas não fazes parte desse tal clube que pode ir tocar às jam sessions, porque não sabes comunicar com os outros. A educação teve um papel nisso também, porque criou essas fronteiras.