LP / CD / Digital

GUME

DOBRA

Facada Records / 2022

Texto de Rui Miguel Abreu

Publicado a: 28/12/2022

pub

É verdade que as tags no Bandcamp funcionam sobretudo como ferramentas de “localização” que ajudam quem possa de repente cruzar-se com uma edição de um artista que não conheça previamente a saber onde, afinal de contas, se “encontra”. Mas, mesmo que se concorde que boa parte dos classificativos limitam mais do que esclarecem, é, ainda assim, possível ler algo nas escolhas de quem, no momento de carregar um novo trabalho para a mencionada plataforma, aponta coordenadas como “afrobeat”, “experimental”, “jazz”, “jazz fusion”, “latin”, “spoken word”, “afrofuturism”, “folk jazz”, “psychedelic”, “slam poetry” e “Lisbon”.

Em boa verdade, na entrevista que nos concedeu a propósito da recente edição de DOBRA, segundo álbum dos GUME depois de Pedra Papel que já data de 2017, o trompetista, compositor e líder Yaw Tembe é o primeiro a manifestar-se criticamente sobre os tais classificativos escolhidos: “Há duas palavras problemáticas que surgem nas nossas tags [risos]. Uma delas é ‘afrofuturismo’, a outra o ‘afrobeat’, embora considere esta menos problemática”, admitiu Tembe que, no entanto, e talvez até paradoxalmente, não manifestou as mesmas reservas em relação à que será, eventualmente, a mais problemática das palavras usadas na secção de tags que ajudam a encontrar DOBRA – “jazz”, um termo que vários dos mais reconhecidos protagonistas contemporâneos do género refutam com alguma veemência…

Mas, obviamente bem mais importante do que declarar que música é esta, afinal de contas, é escutá-la com atenção crítica, dançá-la com intensidade libertária e celebrá-la como sinal de maturidade da nossa mais plural cena musical. Terá sido, ainda assim, essa escuta crítica, que inspirou uma outra tentativa de classificar ou descrever a música contida em DOBRA: na já mencionada entrevista, propôs-se a ideia de “afrobeat de câmara”, uma espécie de oxímoro de múltiplas camadas que no momento, admita-se, não colheu grande entusiasmo por parte dos representantes dos GUME, mas a que vale a pena voltar após escutas sucessivas deste álbum (disponível em formatos digitais, mas também em CD e LP).

O afrobeat foi uma invenção/criação de Fela Kuti que pegou na tradição highlife oriunda do Gana, acrescentou-lhe uma particular declinação rítmica nigeriana – fruto da criatividade metronómica de Tony Allen — e cruzou esse impulso inicial com os resultados de uma disruptiva experiência americana: Fela e os seus músicos estiveram nos Estados Unidos em 1969 e viram em primeira mão James Brown a revolucionar ritmicamente a música negra, entendendo que essa revolução poderia igualmente ser aplicada no particular contexto de Lagos à entrada dos anos 70. Ao contrário da música de câmara de longa tradição europeia, o afrobeat tendia a ser tocado por ensembles de dimensões mais generosas, mas, tal como a música criada e refinada por mestres como Bach, Haydn ou Mozart para ser tocada nos mais selectos salões da nobreza europeia por ensembles de dimensão mais reduzida, também o afrobeat retinha uma fundamental ideia de “conversação” entre os músicos, com a dimensão intimista dessas conversas no contexto clássico europeu a ser expandida para a mais efusiva estrutura de “chamada” e “resposta” tão própria das tradições musicais africanas informadas pelas dinâmicas próprias da oralidade.

Como mencionado, este oxímoro classificativo tem diferentes nuances opondo não apenas as noções de dimensão mais ampla dos tradicionais ensembles de afrobeat – e a lista de intervenientes em DOBRA estende-se até aos 14 nomes – às de maior contenção normalmente associadas à música de câmara clássica – tão fundamentalmente expressa nos trios e quartetos de Mozart, por exemplo -, mas também ideias de classe social, de ambiente cultural e até de contexto arquitectónico: nem as multidões que vibravam com as longas sessões nocturnas no The Shrine, nem o clube que foi foco de resistência à ditadura militar nigeriana e que passou por diferentes localizações até se estabelecer em Pepple Street, Ikeja, seriam obviamente comparáveis às “elites” que se passeavam pelos barrocos salões de baile da aristocracia europeia do século XVIII – até porque muitos antepassados das primeiras foram escravizados por boa parte dos segundos.

E ainda assim, escutando, por exemplo, “Vértice”, segunda peça do alinhamento de DOBRA, essa ideia parece fazer pleno sentido: por cima da síncope polirrítmica inicialmente exposta pela bateria e percussões, escutam-se depois, quase em simultâneo, uma guitarra eléctrica staccato e uma secção de cordas que inicialmente parece estar em atonal momento de afinação, antes do seu fluxo se organizar deixando espaço harmónico para o trompete se alongar num belíssimo solo. E, logo aí, temos múltiplas dimensões cruzadas: a do jazz, claro, que atravessa o discurso livremente expresso no trompete de Yaw Tembe, a da música africana que lhe inspira o pulso, a da clássica europeia que parece sustentar as cordas.



Ao lado de Yaw Tembe – que além de trompete também “toca” cordas vocais, declamando –, temos Sebastião Bergmann na bateria, André David na guitarra, Pedro Monteiro no baixo, David Menezes na percussão e ainda há nos arranjos espaço para as vozes de Raquel Lima, Nádia Yracema e Leonor Arnaut, para mais percussão de Nataniel Melo, cordas de Maria do Mar, Gil Dionísio e Joana Guerra, saxofone barítono e flauta de Francisco Menezes e saxofone tenor de André Murraças. O álbum foi registado em sessões no HAUS, em Lisboa, mas também no âmbito de um concerto na programação do Jazz no Parque, na Fundação de Serralves, Porto, combinando, portanto, não apenas as dimensões de sessão de estúdio e de captação de palco, mas também trabalho de pós-produção que toma a matéria gravada não como fim em si, mas como ponto de partida para manipulações adicionais em termos de estrutura das peças, por exemplo.

Tudo junto, o que se obtém é um extraordinário momento na música que se produziu durante 2022 em Portugal, porventura até um dos seus melhores. Voltando à questão das tags, há uma que talvez seja a que melhor encaixa e menos questões levanta de todas as que foram listadas a propósito deste DOBRA: “Lisboa”. De facto, este álbum contém música que não poderia ter sido congeminada em nenhum outro lugar: a cidade gentrificada de que se fala tão inteligentemente na vibrante “Sap Sap” – que se faz de “paisagens amargas, salgados oceanos, montanhas picantes, nuvens de algodão doce” e onde “naves espaciais aterram turistas” que “vestem falsas conquistas” e que para cá vêm “saborear sem plantar” – é talvez o mais óbvio ingrediente deste trabalho. E não deixa de ser significativo gesto com espessura política que o ensemble oculte, na única foto oficial que retrata o seu núcleo central de cinco unidades, as identidades dos seus membros por trás de muito curiosas máscaras que parecem, elas mesmas, reimaginações dos ritualísticos artefactos africanos que tanto inspiraram artistas na Europa, de Picasso a José de Guimarães, ou na América, como aconteceu com Basquiat

Nesta Lisboa, parecem então dizer, somos de todo o lado e de lado nenhum, de aqui e agora e de outros sítios sempre. No texto com que apresentaram a data do passado dia 15 de Dezembro (no B. Leza, em Lisboa), os GUME dão-nos aliás algumas válidas chaves para os decifrarmos, tanto no plano iconográfico, como no sónico: “Continuando a exploração da síncope, da palavra e da melodia em diálogo com a cultura urbana e as tradições rítmicas originárias de África e da sua diáspora, GUME regressa às edições com o novo disco intitulado DOBRA”, começam por declarar. E depois: “O conjunto de músicos sediados em Lisboa manifesta aqui uma relação entre o real e o simbólico, balançando em direção a uma mitologia sonora em temas que ressoam os axiomas lançados por Sun Ra: ‘I do not come to you as a reality; I come to you as the myth!”. E Lisboa, como bem sabemos, é fértil laboratório de criação de mitos.

A vibração funda de “Sap Sap”, que em toda a sua urgência abre DOBRA, encontra eco directo em “Badjum”, a derradeira peça que o encerra – e em ambas há horas extras cobradas por Francisco Menezes que adiciona o som do seu barítono à convulsão geral. Em “Badjum”, o tenor de André Murraças também se deixa ouvir em todo o seu vigor, deixando claro que é perfeitamente possível solar livremente por cima de um groove estruturado. Ou seja, uma densamente ritmada moldura para as restantes cinco peças do alinhamento.

A dimensão “de câmara” do álbum proposta em “Vértice” é depois aprofundada na introdução de “Quartzo”, tema em que o tenor e o trompete voltam a brilhar, ressurge nos harmonicamente imaginativos arranjos de “Eribó”, com a flauta de Menezes em primeiro plano, e também ganha nuances mais relaxadas em “Gema de Pangu”, peça de múltiplas camadas em que a voz sugere também uma possível dimensão coral. “Paradóxido” justifica só por si a tag “experimental” que também é aposta a este lançamento: um drone, percussões em convulsão, um barítono que quer ser sirene de barco no meio do Tejo, e uma estrutura mais abstracta em que cordas e sopros e percussões parecem tentar traduzir o caos urbano em hora de ponta. E sobre a cacofonia, Tembe exclama que “o paradoxo do óxido quanto mais respira mais enferruja”. Uma certeza, no final: este GUME quanto mais dobra mais se afia. E talvez seja necessário, quanto mais não seja para cortar com o passado. Afropresentismo no seu melhor. Outra vez.


pub

Últimos da categoria: Críticas

RBTV

Últimos artigos