Digital

Filipe Sambado

Três Anos de Escorpião em Touro

Altafonte Portugal / 2023

Texto de Joana Canela

Publicado a: 19/12/2023

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A degustação do hyperpop pode ser de difícil convencimento quando sabemos o passado musical de Filipe Sambado, mas e se ela fizesse depois todo o sentido? A liberdade do digital com a expressão da palavra e ela a carregar tudo o que a auto-exploração traz a esta evolução como artista e, com certeza, enquanto pessoa. São Três Anos de Escorpião em Touro, mais de metade deles durante a pandemia, e que na sua aparente estagnação trouxe, pelo contrário, tanta mudança: a parentalidade, a reafirmação de género e o ultrapassar das barreiras musicais para descobrir até onde pode ir (e a quem chegar) com a sua música. Sambado não é estanque, não se fecha, antes procura a manifestação do seu mundo para que outros se abram também. 

A primeira amostra do álbum chegou há dez meses atrás, com uma versão acústica do “Choro da Rouca” para a Antena 3, mesmo antes do seu concerto no B.Leza, onde algumas das canções deste vindouro longa-duração foram apresentadas ainda em bruto, em formato banda com Chinaskee na bateria e uma participação-surpresa de Conan Osiris. Mas o que “Choro da Rouca” tem em bruto é, na realidade, a preciosidade das palavras que fazem vingar a força do amor contra o peso da depressão e da incerteza. E não há marés vivas ou vento norte que o arrebatem. Vale dizer que, nem que seja por isso, talvez possa ser das mais bonitas canções de sempre? 

Foi já nos últimos dias de Setembro que apresentou este quarto disco, sucessor de Revezo (2020). São três anos (um a mais do que o previsto), mas porquê “de Escorpião em Touro”? Para os leigos de astrologia, Sambado explica a colisão entre a ligação familiar do signo Touro e a corrosão de Escorpião no seu mapa astral. Mas mais do que esoterismo, temos o tangível: a prática da mudança com a palavra, o som e a imagética. E se a poesia joga Macaquinho do Chinês com as harmonias, a cor expõe em quadro aberto a liberdade. Falamos do desprender de encaixotamentos musicais e de género, onde todas as tonalidades das canções e dos vídeos servem para representar esta mesma emancipação. 

No mesmo disco em que Sambado se assume como pessoa não-binária, há nele espaço para uma vasta comunidade queer e para muitas outras lutas, algumas mais escuras do que coloridas, mas sempre a favor de um mundo melhor, mais justo, mais inclusivo. Faz então sentido que “Talha Dourada” seja das faixas mais ouvidas deste disco. “Sou mais eu quando não tenho medo de ser” poderia ser um hino, mas é apenas um refrão, entre a pop, o rock e o tudo. E, nas bocas do mundo, um medo sem asas pronto a cair a pique — quando o ar que nos respira é o mesmo que nos sufoca. Precisamos de uma voz para o expor ao leito da compreensão, que ampara tantos corpos hirtos da solidão da existência. 

Se a pop — com ou sem hyper — domina o álbum, tal como em Revezo, há espaço sonante para um pouco de tudo, numa mescla que nunca se atropela. Em “Entre os Dedos da Mão” há tristeza abundante, palavras-poesia, guitarras sem autorização, mas será que estamos fora do julgamento da sociedade? Possivelmente ainda não, mas uma coisa que será sempre desta Sambado enriquecida é a disrupção com as normas, sejam elas de valores ou de sonoridades. “Serralha, Serralhinha” ousa trazer uma batida funk à sua voz (com e sem autotune) e “Caderninho” volta a trazer Conan Osiris, num cambalear entre a fervilhante fome de fazer mexer e o carinho confessional de “nem que eu perca meia vida/ nem que eu perca toda a vida”, talvez nesta mesma luta. 

Mas que Filipe não acredite nas palavras que cita em “Faço um Desenho”, pois música é, sim, trabalho. Trabalho esse que nos continua a dar consistentemente, numa forma diferente de intervencionismo a que até o seu timbre faz lembrar. Faz então sentido que se este ciclo se feche com “Um Lugar na Mouraria”, num regressar às origens com guitarra portuguesa e a sua voz a saber a Zeca. Fala-nos em “novos cravos, novas lutas” — e que elas se eternizem aqui, neste álbum, por um futuro mais aberto, onde todos tenhamos um cantinho dentro da mesma casa, e onde ninguém precise de se esconder atrás de paredes invisíveis. Talvez assim um dia nos possamos ver todos como iguais.


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